sexta-feira, 6 de setembro de 2024
Liberdade de expressão?
No tempo da ditadura, sinais de emissoras exóticas chegavam livremente aos rincões da pátria armada e fardada. Em ondas curtas, a Rádio Moscou ressoava com seu português escorreito em todo o território nacional, dos igapós amazônicos às roças de Nuporanga. E não era só ela. Junto, vinham também as locuções da Rádio Pequim, da Rádio Tirana e da Rádio Bulgária. Comunismo na carótida, calafrios na caserna. As autoridades se inquietavam: como bloquear a radiofrequência da Cortina de Ferro?
Não havia como. Veteranos da radiodifusão lembram até hoje que os militares tentavam usar engenhocas para atrapalhar o som das invasoras, ao menos nas regiões ditas estratégicas, mas a manobra não dava certo. Vetaram peças de teatro, canções de protesto, revistas de mulheres nuas, filmes sortidos, telenovelas picantes e romances de esquerda, mas fracassaram indigentemente no projeto de emudecer as estações alienígenas. Falta de vontade não foi.
Agora, o mundo é outro, já sabemos. Você quase não encontra mais aparelhos de rádio de ondas curtas, e, quando os encontra, não vê ninguém de ouvido colado na geringonça. Tudo ficou diferente. Só uma coisa não mudou: desafiando a lei da evolução natural das espécies, os apoiadores do golpe de 1964 ainda andam por aí, preservadíssimos, e não escondem de ninguém a saudade que sentem da ditadura, da tortura e da censura – ridícula, mas teimosa.
Essa turma andou alvoroçada ao longo da semana. Ao saber que a plataforma denominada X, antes conhecida como Twitter, foi banida de celulares e computadores por uma decisão judicial, voltou a enxergar fantasmas. As assombrações são as mesmas de antigamente, mas as aparições sobrenaturais vieram com os sinais trocados. Antes, o espectro do comunismo era externo, vinha de fora para dentro. Agora, é interno, vem da sede do Supremo Tribunal Federal (STF) e se irradia mundo afora. Antes, a proteção da liberdade marchava de coturno sobre o mármore branco do Palácio da Alvorada. Agora, mora longe e atende pelo nome de Elon Musk. Ectoplasmas reencarnados e revirados.
Fantasmagorias reversas. Nas suas alucinações miasmáticas, as viúvas do AI-5 são tragadas por mirações aterrorizantes. Veem a magistratura dos nossos tempos perpetrando à luz do dia a malvadeza que a magistratura de meio século atrás não foi capaz de perpetrar na escuridão: bloquear de uma canetada a comunicação do adversário exógeno. Mas como assim? Os saudosistas não se conformam e se contorcem de inveja: “Como é que os poderes da democracia são mais efetivos que os nossos na tirania de 1970?”. Não engolem o desaforo histórico: “Deram no X o sumiço que a gente não conseguiu dar na Rádio Moscou!”.
Para não passar recibo de que tudo não passa de dor de cotovelo auriverde, a claque tardia da ditadura extinta inventou que seu problema não é ciúme, mas o compromisso raivoso que ela teria com a “liberdade de expressão”. É isto mesmo: estamos vendo a bandeira da “liberdade” ser desfraldada pelas forças que sempre a conspurcaram. Não que os apoiadores do arbítrio mudaram – apenas repaginaram a própria vaidade. Eles, que ontem só admitiam a crítica se fosse “construtiva”, hoje se declaram favoráveis à manifestação do pensamento e até do não-pensamento. Principalmente do segundo.
É curioso, antropologicamente curioso. Você nunca vai ver este pessoal respaldando a liberdade de expressão dos moradores de rua, das mulheres pró-aborto, da população trans, dos trabalhadores pobres, dos quilombolas e dos indígenas, pois, segundo denunciam energicamente, esses setores, além de preconceituosos e intolerantes, são uns ongueiros mancomunados com as potências que só querem roubar nosso nióbio e nosso grafeno. Não, os saudosistas não se deixam engrupir. Eles têm lado. Defendem a liberdade de gente desprotegida, das vítimas indefesas da brutalidade togada. Combativos, prestam sua solidariedade pungente ao estropiado mártir da democracia: Elon Musk, este, sim, um injustiçado.
Os nostálgicos do arbítrio se converteram em musketeiros aguerridos. São todos por Musk, e estão convencidos até o bolso de que Musk sempre será por todos eles. Embalados pelos pesadelos das mil e uma noites de aquecimento global, não se lembraram de acordar para os fatos e para a realidade. Fatos: o ex-Twitter saiu do ar porque se negou a cumprir uma decisão judicial – decisão ratificada, por unanimidade, pela Primeira Turma do STF. Realidade: nenhum Poder Judiciário, em nenhum país conhecido ou desconhecido, poderia ter tomado outra atitude. Era preciso resguardar a autoridade judicial de um país soberano. Fato e realidade: isso não teve nada que ver com ataque à “liberdade de expressão”.
No mais, você pode – e deve – criticar o STF. Há muito o que questionar na corte. Só o que não dá para dizer é que o que aconteceu com o Twitter foi mordaça. Não há ninguém censurado aí, nem o pobre perseguido Elon Musk, que segue discursando à vontade. Mais que discursando, segue abusando de seu poder econômico, mas isso é outra conversa.
Não havia como. Veteranos da radiodifusão lembram até hoje que os militares tentavam usar engenhocas para atrapalhar o som das invasoras, ao menos nas regiões ditas estratégicas, mas a manobra não dava certo. Vetaram peças de teatro, canções de protesto, revistas de mulheres nuas, filmes sortidos, telenovelas picantes e romances de esquerda, mas fracassaram indigentemente no projeto de emudecer as estações alienígenas. Falta de vontade não foi.
Agora, o mundo é outro, já sabemos. Você quase não encontra mais aparelhos de rádio de ondas curtas, e, quando os encontra, não vê ninguém de ouvido colado na geringonça. Tudo ficou diferente. Só uma coisa não mudou: desafiando a lei da evolução natural das espécies, os apoiadores do golpe de 1964 ainda andam por aí, preservadíssimos, e não escondem de ninguém a saudade que sentem da ditadura, da tortura e da censura – ridícula, mas teimosa.
Essa turma andou alvoroçada ao longo da semana. Ao saber que a plataforma denominada X, antes conhecida como Twitter, foi banida de celulares e computadores por uma decisão judicial, voltou a enxergar fantasmas. As assombrações são as mesmas de antigamente, mas as aparições sobrenaturais vieram com os sinais trocados. Antes, o espectro do comunismo era externo, vinha de fora para dentro. Agora, é interno, vem da sede do Supremo Tribunal Federal (STF) e se irradia mundo afora. Antes, a proteção da liberdade marchava de coturno sobre o mármore branco do Palácio da Alvorada. Agora, mora longe e atende pelo nome de Elon Musk. Ectoplasmas reencarnados e revirados.
Fantasmagorias reversas. Nas suas alucinações miasmáticas, as viúvas do AI-5 são tragadas por mirações aterrorizantes. Veem a magistratura dos nossos tempos perpetrando à luz do dia a malvadeza que a magistratura de meio século atrás não foi capaz de perpetrar na escuridão: bloquear de uma canetada a comunicação do adversário exógeno. Mas como assim? Os saudosistas não se conformam e se contorcem de inveja: “Como é que os poderes da democracia são mais efetivos que os nossos na tirania de 1970?”. Não engolem o desaforo histórico: “Deram no X o sumiço que a gente não conseguiu dar na Rádio Moscou!”.
Para não passar recibo de que tudo não passa de dor de cotovelo auriverde, a claque tardia da ditadura extinta inventou que seu problema não é ciúme, mas o compromisso raivoso que ela teria com a “liberdade de expressão”. É isto mesmo: estamos vendo a bandeira da “liberdade” ser desfraldada pelas forças que sempre a conspurcaram. Não que os apoiadores do arbítrio mudaram – apenas repaginaram a própria vaidade. Eles, que ontem só admitiam a crítica se fosse “construtiva”, hoje se declaram favoráveis à manifestação do pensamento e até do não-pensamento. Principalmente do segundo.
É curioso, antropologicamente curioso. Você nunca vai ver este pessoal respaldando a liberdade de expressão dos moradores de rua, das mulheres pró-aborto, da população trans, dos trabalhadores pobres, dos quilombolas e dos indígenas, pois, segundo denunciam energicamente, esses setores, além de preconceituosos e intolerantes, são uns ongueiros mancomunados com as potências que só querem roubar nosso nióbio e nosso grafeno. Não, os saudosistas não se deixam engrupir. Eles têm lado. Defendem a liberdade de gente desprotegida, das vítimas indefesas da brutalidade togada. Combativos, prestam sua solidariedade pungente ao estropiado mártir da democracia: Elon Musk, este, sim, um injustiçado.
Os nostálgicos do arbítrio se converteram em musketeiros aguerridos. São todos por Musk, e estão convencidos até o bolso de que Musk sempre será por todos eles. Embalados pelos pesadelos das mil e uma noites de aquecimento global, não se lembraram de acordar para os fatos e para a realidade. Fatos: o ex-Twitter saiu do ar porque se negou a cumprir uma decisão judicial – decisão ratificada, por unanimidade, pela Primeira Turma do STF. Realidade: nenhum Poder Judiciário, em nenhum país conhecido ou desconhecido, poderia ter tomado outra atitude. Era preciso resguardar a autoridade judicial de um país soberano. Fato e realidade: isso não teve nada que ver com ataque à “liberdade de expressão”.
No mais, você pode – e deve – criticar o STF. Há muito o que questionar na corte. Só o que não dá para dizer é que o que aconteceu com o Twitter foi mordaça. Não há ninguém censurado aí, nem o pobre perseguido Elon Musk, que segue discursando à vontade. Mais que discursando, segue abusando de seu poder econômico, mas isso é outra conversa.
O mundo dos admiradores de Deolanes e Marçais chega à política oficial
Talvez nunca antes tenhamos tido tanta informação a respeito de interesses e vontades mais gerais, do que se sabe agora por causa da voz do povo nas mídias sociais e dos meios de pesquisa de opinião nas redes. Sobre suas preferências quanto a políticas públicas ou programas socioeconômicos, continuamos a saber pouco. Porém, eventos ou ondas de mudanças sensacionais explodem nas nossas fuças e dizem algo de mudanças comportamentais e culturais.
Vide a maré de desgraça que vai sendo provocada por "bets", legais ou com a intenção de legalização: despesa bilionária, expansão do vício, oportunidades para o crime. Nesta quarta-feira, foi presa a advogada e influenciadora digital Deolane Bezerra, 36, acusada ainda de modo opaco de associação a uma quadrilha que recorria a "bets" e firmas de publicidade, de câmbio etc. a fim de lavar dinheiro.
Como se diz por aí, Deolane é "puro suco de Brasil". Tem 20,7 milhões de seguidores no Instagram. O jovem decano dos influenciadores do Brasil, Felipe Neto, tem 17,3 milhões, embora seu universo fosse mais o X-Twitter — um presidente da República pode se eleger com 60 milhões de votos. A foto da carta manuscrita em que Deolane se diz "vítima de grande injustiça" (sua prisão) teve 1,6 milhão de curtidas até a noite desta quarta.
Sabe-se de seus amores com "famosos", participou de um reality show de TV aberta em 2022, foi rainha da bateria de uma grande escola de samba do Rio de Janeiro em 2024. É admirada, recebe elogios e bênçãos na internet por expor sua riqueza, sua vida privada e seu corpo. A fama virtual facilita a criação de empresas no mundo real (muita vez de produtos de beleza, roupas, brinquedos, jogos e até bets). Estatísticas meio imprecisas dizem que haveria centenas de milhares de influencers profissionais no país. O sucesso virtual facilita colonização das mídias tradicionais (no entretenimento em especial).
A mudança religiosa, o avanço econômico e cultural do agro e do sertanejo, o prestígio de público de policiais e militares e a eficiência da ultradireita nas redes produzem efeitos político-eleitorais palpáveis faz uns 15 anos. Apesar da onda político-digital de 2018, o mundo influencer ainda não tem representação notável na política politiqueira. Por falar nisso, apesar de tantas novidades, o grosso da representação política é composto de homens dispostos a manter tudo como está (ou pior), o establishment mais rastaquera, negocista e fisiológico. Uma névoa de centrão cobre o país como fumaça das queimadas.
Esse mundo de influenciadores, no caso já com associações criminosas, tem agora ao menos um sério candidato ao poder, à Prefeitura de São Paulo. É, claro, Pablo Marçal, que encanta ultradireitistas, adeptos de seitas de prosperidade, aspirantes ao sucesso ou apenas a uma vida decente negada pela realidade socioeconômica; muitos são desencantados com governos, desesperados e niilistas populares em geral.
Por ora, a política costumeira fagocita esses (falsos ou não) "outsiders". Mas quem é capaz de conversa política racional com as pessoas que admiram influenciadores diversos, que vivem no mundo de Deolane e Marçais ou exemplares mais amenos da categoria? Esse mundo, "paralelo" na fantasia oficial e bem pensante, é a realidade brasileira.
Vide a maré de desgraça que vai sendo provocada por "bets", legais ou com a intenção de legalização: despesa bilionária, expansão do vício, oportunidades para o crime. Nesta quarta-feira, foi presa a advogada e influenciadora digital Deolane Bezerra, 36, acusada ainda de modo opaco de associação a uma quadrilha que recorria a "bets" e firmas de publicidade, de câmbio etc. a fim de lavar dinheiro.
Como se diz por aí, Deolane é "puro suco de Brasil". Tem 20,7 milhões de seguidores no Instagram. O jovem decano dos influenciadores do Brasil, Felipe Neto, tem 17,3 milhões, embora seu universo fosse mais o X-Twitter — um presidente da República pode se eleger com 60 milhões de votos. A foto da carta manuscrita em que Deolane se diz "vítima de grande injustiça" (sua prisão) teve 1,6 milhão de curtidas até a noite desta quarta.
Sabe-se de seus amores com "famosos", participou de um reality show de TV aberta em 2022, foi rainha da bateria de uma grande escola de samba do Rio de Janeiro em 2024. É admirada, recebe elogios e bênçãos na internet por expor sua riqueza, sua vida privada e seu corpo. A fama virtual facilita a criação de empresas no mundo real (muita vez de produtos de beleza, roupas, brinquedos, jogos e até bets). Estatísticas meio imprecisas dizem que haveria centenas de milhares de influencers profissionais no país. O sucesso virtual facilita colonização das mídias tradicionais (no entretenimento em especial).
A mudança religiosa, o avanço econômico e cultural do agro e do sertanejo, o prestígio de público de policiais e militares e a eficiência da ultradireita nas redes produzem efeitos político-eleitorais palpáveis faz uns 15 anos. Apesar da onda político-digital de 2018, o mundo influencer ainda não tem representação notável na política politiqueira. Por falar nisso, apesar de tantas novidades, o grosso da representação política é composto de homens dispostos a manter tudo como está (ou pior), o establishment mais rastaquera, negocista e fisiológico. Uma névoa de centrão cobre o país como fumaça das queimadas.
Esse mundo de influenciadores, no caso já com associações criminosas, tem agora ao menos um sério candidato ao poder, à Prefeitura de São Paulo. É, claro, Pablo Marçal, que encanta ultradireitistas, adeptos de seitas de prosperidade, aspirantes ao sucesso ou apenas a uma vida decente negada pela realidade socioeconômica; muitos são desencantados com governos, desesperados e niilistas populares em geral.
Por ora, a política costumeira fagocita esses (falsos ou não) "outsiders". Mas quem é capaz de conversa política racional com as pessoas que admiram influenciadores diversos, que vivem no mundo de Deolane e Marçais ou exemplares mais amenos da categoria? Esse mundo, "paralelo" na fantasia oficial e bem pensante, é a realidade brasileira.
Pela boca morre o peixe
Os barões de Silicon Valley apoiam Trump, escreve o Expresso. São os multimilionários, que se mantêm na lista da Forbes — onde esta semana, em tempo real, o nome de Amancio Ortega, o fundador da espanhola Inditex, voltou a constar entre os dez mais ricos, e que promovem a liberdade de pensarmos e de dizermos o que quisermos, mesmo que sejam insultos e mentiras; que se escudam na liberdade e se recusam a ter responsabilidades ou obrigações.
Os governos acordaram tarde para os perigos e para a necessidade de haver regulamentação. Por um lado, tementes ao argumento da liberdade de expressão, de poderem ser acusados de quererem impor a censura; por outro lado, aproveitando toda esta onda de desinformação para criarem as suas próprias narrativas — é ver a forma como tantos políticos se apresentam, baseando o seu discurso em mentiras mais ou menos descaradas, recontando os factos à sua maneira, descredibilizando ainda mais uma classe, desrespeitando toda a sociedade.
Falta sermos, todos, responsabilizados por aquilo que dizemos e foi isso que vimos acontecer no Reino Unido, depois dos tumultos, motins e manifestações da extrema-direita, há semanas, com homens e mulheres a serem condenados a penas efetivas por coisas que disseram nas redes sociais. Nesta semana, no Brasil, uma socialite foi condenada a oito anos de prisão pelo que disse nas mesmas redes sociais sobre uma criança que, na altura, tinha quatro anos. Que boa notícia esta a de não haver contemplações para mensagens de ódio, para mensagens racistas, para mentiras.
“Pela boca morre o peixe”, diz o povo. Sempre impulsiva, em pequena, o meu pai repreendia-me e dizia que eu deveria andar com um botão na boca. Assim, sempre que pensasse dizer alguma coisa, tirava o botão sete vezes. Nunca o fiz. Mas em circunstâncias mais formais, penso muito antes de agir, de escrever, de falar. E, quando olho para as redes sociais, para as declarações de políticos, comentadores ou figuras públicas, penso no conselho do meu pai. Um botão. Sete vezes. Se o fizessem, quão diferente seria tudo o que lemos, ouvimos e fazemos.
Se todos agíssemos com ponderação, Natalia Stichova poderia não ter caído de uma altura de 80 metros e perdido a vida para fazer uma selfie. A princesa Diana talvez ainda estivesse viva — vem aí um novo documentário, mas também não seguiríamos com tanta curiosidade a vida de Camila, que esta semana nos conta como é que lida com dias piores, lendo: “Quando temos um dia de loucura e tudo corre mal, podemos sentar-nos, respirar fundo, pegar num livro e pronto ─ somos transportados para outro mundo.” Faço parte do clube de Camila.
Os governos acordaram tarde para os perigos e para a necessidade de haver regulamentação. Por um lado, tementes ao argumento da liberdade de expressão, de poderem ser acusados de quererem impor a censura; por outro lado, aproveitando toda esta onda de desinformação para criarem as suas próprias narrativas — é ver a forma como tantos políticos se apresentam, baseando o seu discurso em mentiras mais ou menos descaradas, recontando os factos à sua maneira, descredibilizando ainda mais uma classe, desrespeitando toda a sociedade.
Falta sermos, todos, responsabilizados por aquilo que dizemos e foi isso que vimos acontecer no Reino Unido, depois dos tumultos, motins e manifestações da extrema-direita, há semanas, com homens e mulheres a serem condenados a penas efetivas por coisas que disseram nas redes sociais. Nesta semana, no Brasil, uma socialite foi condenada a oito anos de prisão pelo que disse nas mesmas redes sociais sobre uma criança que, na altura, tinha quatro anos. Que boa notícia esta a de não haver contemplações para mensagens de ódio, para mensagens racistas, para mentiras.
“Pela boca morre o peixe”, diz o povo. Sempre impulsiva, em pequena, o meu pai repreendia-me e dizia que eu deveria andar com um botão na boca. Assim, sempre que pensasse dizer alguma coisa, tirava o botão sete vezes. Nunca o fiz. Mas em circunstâncias mais formais, penso muito antes de agir, de escrever, de falar. E, quando olho para as redes sociais, para as declarações de políticos, comentadores ou figuras públicas, penso no conselho do meu pai. Um botão. Sete vezes. Se o fizessem, quão diferente seria tudo o que lemos, ouvimos e fazemos.
Se todos agíssemos com ponderação, Natalia Stichova poderia não ter caído de uma altura de 80 metros e perdido a vida para fazer uma selfie. A princesa Diana talvez ainda estivesse viva — vem aí um novo documentário, mas também não seguiríamos com tanta curiosidade a vida de Camila, que esta semana nos conta como é que lida com dias piores, lendo: “Quando temos um dia de loucura e tudo corre mal, podemos sentar-nos, respirar fundo, pegar num livro e pronto ─ somos transportados para outro mundo.” Faço parte do clube de Camila.
Seca e ribeirinhos revelam fósseis de gigantes na Amazônia
Debaixo de um limoeiro, uma peça rara aguarda seu destino. É um pedaço das vértebras de um Purussaurus, o maior jacaré que pisou no planeta e viveu na Amazônia há mais de 10 milhões de anos. Gerimar do Nascimento guardou a relíquia a poucos metros de sua casa, às margens do rio Purus, no sul do Amazonas. Ela estava à mostra num barranco quando foi avistada pelo ribeirinho do seu barco durante um trajeto corriqueiro que percorre sempre quando vai para Boca do Acre, cidade mais próxima.
"Eu vi aquela parte de osso e sabia que não era do nosso tempo", conta Geri, como é conhecido na região.
No quintal de sua casa, ele acompanha atentamente a explicação de tudo o que a ciência feita na Amazônia já registrou sobre aquela espécie. Quem relata as descobertas científicas é Carlos D'Apólito, professor do Centro de Ciências Biológicas e da Natureza da Universidade Federal do Acre (UFAC), que fez questão de ir até a comunidade resgatar o fóssil e compartilhar o conhecimento.
"São três vértebras articuladas. Não é comum achá-las assim, uma do lado da outra", diz D'Apólito sob o pé carregado de limão. "Isso pode ajudar a ciência a entender melhor a anatomia da espécie, entender em que parte da coluna vertebral ela estaria", continua.
Dali, a peça será transportada até o Laboratório de Pesquisas Paleontológicas da UFAC, em Rio Branco, será estudada minuciosamente e pode ajudar no avanço do conhecimento. O nome de Geri agora vai aparecer junto com aquela parte do Purussaurus. Esse é um dos raros casos em que a identidade de quem localizou um fóssil é conhecida e documentada, diz o pesquisador.
"Existe uma parcela do trabalho de campo que acaba sendo feito por pessoas que não são formalmente paleontólogos, que ficam como invisíveis, e que, às vezes, não aparecem nem nos agradecimentos", afirma D'Apólito.
Feliz com o reconhecimento e especialista na navegação daquele trecho do Purus, Geri diz ter certeza de que há mais para ser revelado de onde ele retirou aquelas vértebras.
Perto do local, um grupo de sete pesquisadores concentra as buscas por vestígios de vidas passadas. Eles fazem parte da expedição liderada por D'Apólito e se surpreendem a cada remexida na terra.
A temporada seca na Amazônia é a época em que os paleontólogos deixam os laboratórios e saem para a coleta com boas chances de localizarem fósseis nas margens expostas. O nível do Purus nesta temporada está bem abaixo da média, dizem os barqueiros que transportavam a equipe durante os três dias de campo. O Brasil enfrenta atualmente a maior seca da história, segundo o Centro Nacional de Monitoramento de Desastres Naturais (Cemaden).
Outras partes do jacaré gigante estão por ali: vértebras isoladas, crânio, dentes. A espécie, chamada de Purussaurus brasiliensis, o "réptil brasileiro do rio Purus", foi batizada pelo botânico João Barbosa Rodrigues, em 1892. Ele fez a descrição a partir de um pedaço de mandíbula encontrado nas barrancas, mas, até hoje, não se sabe bem em que circunstâncias o fóssil foi encontrado e sua localidade exata.
Os pesquisadores desta expedição sabem bem onde estão. As buscas acontecem perto de uma faixa de terra reivindicada pelo povo Apurinã. Acostumados a ver fósseis ali quando o rio baixa, os indígenas acreditam que são ossadas antigas despejadas por uma cobra gigante que devora animais e que se esconde no Purus.
Sentado no barranco, Edson Guilherme, professor da UFAC, se espanta com o que acaba de desenterrar. É o crânio de uma tartaruga com duas órbitas oculares, narina e mandíbula associada – uma espécie ainda desconhecida da ciência. "Somos os primeiros seres humanos a ver o crânio desta espécie no mundo. Isso é emocionante", diz Guilherme, embalando o fóssil com cuidado para que resista ao transporte.
Camila Inara Silva, aluna de mestrado da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), é a estreante da turma. As aulas em campo com os mais experientes fazem ela ter certeza de que a paleontologia é o caminho que quer seguir.
Portal para o tempo
O veterano Alceu Ranzi também se impressiona com o crânio inédito encontrado. Aposentado depois de atuar mais de trinta anos na UFAC, ele acompanha o grupo que reúne várias gerações de paleontólogos dedicados a decifrar as espécies extintas e soterradas debaixo da Floresta Amazônica.
O local onde Ranzi caminha é um afloramento de uma deposição do Mioceno, período geológico que a Terra viveu entre 23 milhões e 5 milhões de anos atrás. O planeta estava mais quente e esta região amazônica era um grande pantanal, com lagos imensos que abrigavam Purussaurus e outros gigantes. Com fragmentos fósseis na mão, Ranzi imagina o cenário em que esses animais conviviam – ou competiam. "Estamos caminhando no fundo de um grande lago. Aqui tinha uma fauna riquíssima: jacarés, tartarugas, preguiças, roedores, todos gigantes", diz Ranzi.
No Mioceno, os dinossauros tinham sido extintos há cerca de 40 milhões de anos. Os seres humanos ainda não existiam. Os crocodilos, que dividiram o terreno com os dinossauros e são parentes do Purussaurus, se adaptaram e sobreviveram, assim como os grandes mamíferos. A Floresta Amazônica exuberante, possivelmente, ainda não existia.
"Quando esta água dos grandes lagos drenou e os rios se formaram, se encaminharam descendo dos Andes até o Atlântico, esta área perdeu a umidade e a floresta cobriu tudo. Só ficou o caminho dos rios atuais", explica Ranzi.
Ele segura agora parte do fêmur de uma preguiça gigante. Ela pesava várias toneladas, caminhava pelo chão e era herbívora. Diversas espécies desses animais terrícolas gigantes existiram por milhões de anos, inclusive na época do Purussaurus.
"Ela possivelmente veio tomar água neste lago e um Purussaurus estava à espreita e a devorou. É por isso que aparecem fossilizadas dentro de um lago – porque esse não é o ambiente delas. Elas foram trazidas ou predadas aqui", imagina Ranzi.
De todas as preguiças conhecidas, a Eremotherium laurillardi foi a maior. Ela pesava cerca de cinco toneladas e media aproximadamente seis metros de comprimento. Em pé, alcançava quase cinco metros de altura. Essa espécie viveu num período mais "recente" da história da Terra, entre 2,6 milhões e 10 mil anos atrás.
São partes desse animal que D'Apólito recebe em caixas de papelão em Boca do Acre durante a expedição. Elas foram localizadas por um casal de idosos na comunidade de Maracaju 2, a cinco horas de barco da cidade na época seca. Eles encaminharam os fósseis para o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio), que guardou as peças até a chegada dos pesquisadores.
A tíbia bem conservada da Eremotherium laurillardi impressiona e intriga os moradores da cidade que assistem à cena da entrega às margens do Purus. D'Apólito explica à plateia curiosa que aquela preguiça gigante andou por ali e chegou a conviver com seres humanos. A reação em coro é: "Uau".
Desta vez, o pesquisador não consegue visitar os coletores desses fragmentos devido à distância, mas responde à curiosidade dos ribeirinhos. "É uma preguiça que estava aqui por volta de 20, 15, 10 mil anos atrás. E eles eram grandes, muito grandes. Muito obrigado pelos fósseis, pela coleta, nós recebemos o material", diz a mensagem de voz enviada ao casal ribeirinho.
Passado esclarecido para entender o futuro
Foram doações como essa que iniciaram a coleção que o laboratório da UFAC mantém desde meados dos anos de 1970. Muitas das atuais 10 mil peças foram recebidas por Jonas Pereira de Souza Filho, paleontólogo aposentado e ex-reitor da universidade.
Aluno de Ranzi, Souza Filho fez seu primeiro trabalho de campo em 1986 na fronteira com o Peru e teve uma grande estreia: encontrou o crânio de Purussaurus mais completo que se conhecia. O fóssil, hoje exposto no museu da universidade, foi retirado com ajuda das marteladas de Marinho, como o grupo chamava o barqueiro local que guiava a expedição.
"Até então, os fósseis na Amazônia eram explorados apenas por pessoas que vinham de fora, levavam as peças e não deixavam registros no local. Nós começamos a colocar a paleontologia da Amazônia no mapa do Brasil e do mundo", avalia o acreano Souza Filho, lembrando o trabalho pioneiro do professor Ranzi.
Na ânsia de decifrar a história da vida na Amazônia, os pesquisadores também conseguem compreender melhor o presente e até projetar o futuro. A ciência mostra, por exemplo, que mudanças climáticas ocorreram antes da presença do homem no planeta, mas nada se compara ao que tem acontecido na Terra desde a era industrial. A temperatura média global subiu 1,4°C nos últimos 200 anos e o clima está se alterando rápido demais.
"Não dá tempo de a natureza acompanhar a evolução e ir se adaptando. Aconteceu algo no tempo dos dinossauros tão grave que eles não conseguiram se adaptar. A mudança hoje é tão grande que tudo está sucumbindo. O perigo é de levar à extinção, e não à adaptação. E o que foi extinto não retorna mais", pontua Ranzi.
Em sua comunidade às margens do Purus, Geri se preocupa ao ver o rio tão seco, o calor excessivo e a fumaça constante das queimadas. Ele diz que a descoberta do fóssil do Purussaurus reacendeu nele o antigo desejo de estudar para entender como este passado se relaciona com o momento atual.
"É um sonho. Preciso fazer uma faculdade para me especializar na área. Terminei o ensino médio com mais de 30 anos e me sentia velho para fazer uma faculdade. Mas esse encontro fez eu voltar a ter esperanças", diz.
"Eu vi aquela parte de osso e sabia que não era do nosso tempo", conta Geri, como é conhecido na região.
No quintal de sua casa, ele acompanha atentamente a explicação de tudo o que a ciência feita na Amazônia já registrou sobre aquela espécie. Quem relata as descobertas científicas é Carlos D'Apólito, professor do Centro de Ciências Biológicas e da Natureza da Universidade Federal do Acre (UFAC), que fez questão de ir até a comunidade resgatar o fóssil e compartilhar o conhecimento.
"São três vértebras articuladas. Não é comum achá-las assim, uma do lado da outra", diz D'Apólito sob o pé carregado de limão. "Isso pode ajudar a ciência a entender melhor a anatomia da espécie, entender em que parte da coluna vertebral ela estaria", continua.
Dali, a peça será transportada até o Laboratório de Pesquisas Paleontológicas da UFAC, em Rio Branco, será estudada minuciosamente e pode ajudar no avanço do conhecimento. O nome de Geri agora vai aparecer junto com aquela parte do Purussaurus. Esse é um dos raros casos em que a identidade de quem localizou um fóssil é conhecida e documentada, diz o pesquisador.
"Existe uma parcela do trabalho de campo que acaba sendo feito por pessoas que não são formalmente paleontólogos, que ficam como invisíveis, e que, às vezes, não aparecem nem nos agradecimentos", afirma D'Apólito.
Feliz com o reconhecimento e especialista na navegação daquele trecho do Purus, Geri diz ter certeza de que há mais para ser revelado de onde ele retirou aquelas vértebras.
Perto do local, um grupo de sete pesquisadores concentra as buscas por vestígios de vidas passadas. Eles fazem parte da expedição liderada por D'Apólito e se surpreendem a cada remexida na terra.
A temporada seca na Amazônia é a época em que os paleontólogos deixam os laboratórios e saem para a coleta com boas chances de localizarem fósseis nas margens expostas. O nível do Purus nesta temporada está bem abaixo da média, dizem os barqueiros que transportavam a equipe durante os três dias de campo. O Brasil enfrenta atualmente a maior seca da história, segundo o Centro Nacional de Monitoramento de Desastres Naturais (Cemaden).
Outras partes do jacaré gigante estão por ali: vértebras isoladas, crânio, dentes. A espécie, chamada de Purussaurus brasiliensis, o "réptil brasileiro do rio Purus", foi batizada pelo botânico João Barbosa Rodrigues, em 1892. Ele fez a descrição a partir de um pedaço de mandíbula encontrado nas barrancas, mas, até hoje, não se sabe bem em que circunstâncias o fóssil foi encontrado e sua localidade exata.
Os pesquisadores desta expedição sabem bem onde estão. As buscas acontecem perto de uma faixa de terra reivindicada pelo povo Apurinã. Acostumados a ver fósseis ali quando o rio baixa, os indígenas acreditam que são ossadas antigas despejadas por uma cobra gigante que devora animais e que se esconde no Purus.
Sentado no barranco, Edson Guilherme, professor da UFAC, se espanta com o que acaba de desenterrar. É o crânio de uma tartaruga com duas órbitas oculares, narina e mandíbula associada – uma espécie ainda desconhecida da ciência. "Somos os primeiros seres humanos a ver o crânio desta espécie no mundo. Isso é emocionante", diz Guilherme, embalando o fóssil com cuidado para que resista ao transporte.
Camila Inara Silva, aluna de mestrado da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), é a estreante da turma. As aulas em campo com os mais experientes fazem ela ter certeza de que a paleontologia é o caminho que quer seguir.
Portal para o tempo
O veterano Alceu Ranzi também se impressiona com o crânio inédito encontrado. Aposentado depois de atuar mais de trinta anos na UFAC, ele acompanha o grupo que reúne várias gerações de paleontólogos dedicados a decifrar as espécies extintas e soterradas debaixo da Floresta Amazônica.
O local onde Ranzi caminha é um afloramento de uma deposição do Mioceno, período geológico que a Terra viveu entre 23 milhões e 5 milhões de anos atrás. O planeta estava mais quente e esta região amazônica era um grande pantanal, com lagos imensos que abrigavam Purussaurus e outros gigantes. Com fragmentos fósseis na mão, Ranzi imagina o cenário em que esses animais conviviam – ou competiam. "Estamos caminhando no fundo de um grande lago. Aqui tinha uma fauna riquíssima: jacarés, tartarugas, preguiças, roedores, todos gigantes", diz Ranzi.
No Mioceno, os dinossauros tinham sido extintos há cerca de 40 milhões de anos. Os seres humanos ainda não existiam. Os crocodilos, que dividiram o terreno com os dinossauros e são parentes do Purussaurus, se adaptaram e sobreviveram, assim como os grandes mamíferos. A Floresta Amazônica exuberante, possivelmente, ainda não existia.
"Quando esta água dos grandes lagos drenou e os rios se formaram, se encaminharam descendo dos Andes até o Atlântico, esta área perdeu a umidade e a floresta cobriu tudo. Só ficou o caminho dos rios atuais", explica Ranzi.
Ele segura agora parte do fêmur de uma preguiça gigante. Ela pesava várias toneladas, caminhava pelo chão e era herbívora. Diversas espécies desses animais terrícolas gigantes existiram por milhões de anos, inclusive na época do Purussaurus.
"Ela possivelmente veio tomar água neste lago e um Purussaurus estava à espreita e a devorou. É por isso que aparecem fossilizadas dentro de um lago – porque esse não é o ambiente delas. Elas foram trazidas ou predadas aqui", imagina Ranzi.
De todas as preguiças conhecidas, a Eremotherium laurillardi foi a maior. Ela pesava cerca de cinco toneladas e media aproximadamente seis metros de comprimento. Em pé, alcançava quase cinco metros de altura. Essa espécie viveu num período mais "recente" da história da Terra, entre 2,6 milhões e 10 mil anos atrás.
São partes desse animal que D'Apólito recebe em caixas de papelão em Boca do Acre durante a expedição. Elas foram localizadas por um casal de idosos na comunidade de Maracaju 2, a cinco horas de barco da cidade na época seca. Eles encaminharam os fósseis para o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio), que guardou as peças até a chegada dos pesquisadores.
A tíbia bem conservada da Eremotherium laurillardi impressiona e intriga os moradores da cidade que assistem à cena da entrega às margens do Purus. D'Apólito explica à plateia curiosa que aquela preguiça gigante andou por ali e chegou a conviver com seres humanos. A reação em coro é: "Uau".
Desta vez, o pesquisador não consegue visitar os coletores desses fragmentos devido à distância, mas responde à curiosidade dos ribeirinhos. "É uma preguiça que estava aqui por volta de 20, 15, 10 mil anos atrás. E eles eram grandes, muito grandes. Muito obrigado pelos fósseis, pela coleta, nós recebemos o material", diz a mensagem de voz enviada ao casal ribeirinho.
Passado esclarecido para entender o futuro
Foram doações como essa que iniciaram a coleção que o laboratório da UFAC mantém desde meados dos anos de 1970. Muitas das atuais 10 mil peças foram recebidas por Jonas Pereira de Souza Filho, paleontólogo aposentado e ex-reitor da universidade.
Aluno de Ranzi, Souza Filho fez seu primeiro trabalho de campo em 1986 na fronteira com o Peru e teve uma grande estreia: encontrou o crânio de Purussaurus mais completo que se conhecia. O fóssil, hoje exposto no museu da universidade, foi retirado com ajuda das marteladas de Marinho, como o grupo chamava o barqueiro local que guiava a expedição.
"Até então, os fósseis na Amazônia eram explorados apenas por pessoas que vinham de fora, levavam as peças e não deixavam registros no local. Nós começamos a colocar a paleontologia da Amazônia no mapa do Brasil e do mundo", avalia o acreano Souza Filho, lembrando o trabalho pioneiro do professor Ranzi.
Na ânsia de decifrar a história da vida na Amazônia, os pesquisadores também conseguem compreender melhor o presente e até projetar o futuro. A ciência mostra, por exemplo, que mudanças climáticas ocorreram antes da presença do homem no planeta, mas nada se compara ao que tem acontecido na Terra desde a era industrial. A temperatura média global subiu 1,4°C nos últimos 200 anos e o clima está se alterando rápido demais.
"Não dá tempo de a natureza acompanhar a evolução e ir se adaptando. Aconteceu algo no tempo dos dinossauros tão grave que eles não conseguiram se adaptar. A mudança hoje é tão grande que tudo está sucumbindo. O perigo é de levar à extinção, e não à adaptação. E o que foi extinto não retorna mais", pontua Ranzi.
Em sua comunidade às margens do Purus, Geri se preocupa ao ver o rio tão seco, o calor excessivo e a fumaça constante das queimadas. Ele diz que a descoberta do fóssil do Purussaurus reacendeu nele o antigo desejo de estudar para entender como este passado se relaciona com o momento atual.
"É um sonho. Preciso fazer uma faculdade para me especializar na área. Terminei o ensino médio com mais de 30 anos e me sentia velho para fazer uma faculdade. Mas esse encontro fez eu voltar a ter esperanças", diz.
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