quinta-feira, 22 de junho de 2023

Brasil, circo permanente

 




Brilhante Ustra e o câncer da ditadura

O Brasil gosta de se ver como uma nação tolerante e harmoniosa, como um caldeirão de culturas sul-americano, onde as pessoas mais diversas – sejam negras ou brancas, pobres ou ricas – convivem pacificamente. Essa autoimagem sempre foi mais mito que realidade, ainda que muitos brasileiros gostassem de acreditar nela.

O mito sempre serviu para as elites manterem o status quo em vigor desde os tempos coloniais, tendo ajudado a pintar a transformação social como uma ameaça. A classe média brasileira foi persuadida de que a luta por uma sociedade mais justa não levaria a uma convivência mais pacífica, mas ao tumulto. A classe política, composta em sua maioria por representantes dos interesses da classe alta, contribuiu para essa narrativa, assim como a mídia e o Judiciário. Em nome da harmonia e da paz, seria supostamente melhor não tocar em temas sensíveis.


Essa necessidade explica em parte o fato de o país até hoje não ter lidado juridicamente com os crimes da ditadura militar. Enquanto em países como Argentina e Chile, paralelamente assolados por ditaduras militares, ocorreram vários grandes processos contra membros do regime, e generais proeminentes foram até mesmo condenados à prisão perpétua, o assunto é tabu no Brasil. Prefere-se mantê-lo debaixo do tapete, para onde tem sido discretamente varrido.
Impunidade para militares

Em 1979, os militares decidiram por uma anistia geral para os crimes cometidos durante o regime. Concederam perdão aos perseguidos políticos, mas também asseguraram a impunidade para si mesmos. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou a validade da Lei da Anistia, e pedidos por sua revogação são frequentemente descritos como "revanchismo". Um verdadeiro movimento social para abolir a lei nunca existiu.

No entanto, houve exceções, como os processos contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Entre 1970 e 1974, ele comandou o Doi-Codi, um dos maiores centros de repressão da ditadura militar. Sob Ustra, ocorreram ali ao menos 502 casos de tortura e mais de 40 assassinatos. O coronel era conhecido por seu sadismo, sendo acusado de obrigar crianças a testemunhar a tortura de seus pais, por exemplo.

É importante observar que os processos contra Ustra, que morreu em 2015, se devem ao empenho de familiares de vítimas. Sem eles, nada teria acontecido.

Em 2008, Ustra foi condenado em São Paulo pelo sequestro e tortura de Maria Amélia Teles, seu marido César e sua irmã Crimeia. Entretanto, a sentença foi apenas de cunho declaratório, ou seja, teve o propósito de que o militar fosse somente reconhecido como responsável. Ustra recorreu com base na Lei da Anistia, mas o Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a decisão em 2014, declarando que a anistia se refere apenas a crimes, e não pode se estender a questões de natureza civil.

Em 2012, em outro processo, Ustra foi condenado a pagar R$ 50 mil à irmã e R$ 50 mil à ex-mulher do jornalista Luiz Eduardo Merlino, que foi torturado até a morte em 1971. Merlino tinha 23 anos na época. No processo, a defesa de Ustra negou a autoria das torturas e recorreu da condenação.

Em 2018, o veredicto no caso Merlino foi anulado em segunda instância. Os três juízes decidiram que o processo havia prescrito. Ao ler a decisão, tem-se a impressão de que eles estavam sob a influência do bolsonarismo. Um deles chama Ustra de "suposto torturador", outro escreve sobre a "chamada ditadura militar" e, ignorando relatos, afirma não haver testemunhas que indiquem que Ustra participou da tortura.

Além disso, os juízes desconsideraram documentos da Comissão Nacional da Verdade que confirmaram a responsabilidade de Ustra pela morte de Merlino. Criada em 2011, a comissão mais uma vez revelou seu principal problema: o fato de suas conclusões não terem consequências legais.
Abrir velhas feridas

A versão brasileira da revisão histórica funciona da seguinte maneira: um pouco de verdade, mas, por favor, sem consequências, porque poderiam incomodar os militares. A influência ininterrupta dos militares brasileiros é desproporcional aos benefícios sociais e aos privilégios anacrônicos desfrutados pelos membros dessa pomposa instituição. Para justificar a impunidade dos militares, diz-se que velhas feridas não devem ser abertas.

Na verdade, o contrário é válido. A falta de enfrentamento do câncer da ditadura fez com que suas metástases estivessem presentes em todos os cantos do Brasil e estabelecessem suas úlceras: no aparato de segurança, no Legislativo, em uma sociedade cada vez mais armada e agressiva, na presidência de Jair Bolsonaro.

Agora familiares esperam que o STJ declare ilegal a anulação da sentença no caso Merlino. A decisão deveria ter sido anunciada nesta terça-feira (20/06), mas foi adiada. A condenação de Ustra e o pagamento das indenizações por meio de seu espólio, já que ele morreu em 2015, fariam do Brasil um pouco mais moderno e justo. Finalmente o Brasil seria um país que leva a sério as convenções internacionais assinadas por ele mesmo e que classificam a tortura como um "crime contra a humanidade" que não prescreve nem é coberto por leis de anistia.

Medo é coisa boa

Os criadores da inteligência artificial e alguns dos maiores cientistas do mundo dizem que o negócio é perigoso. E pedem para parar. Que se suspenda o curso da ciência por seis meses. Justo quando um estudo da Universidade da Califórnia mostra que o ChatGPT dá respostas melhores a consultas médicas do que os doutores.

É bom ver esses ousados e intimoratos senhores com medo e com pudores que Oppenheimer – um dos criadores da bomba atômica – não teve, alegando que a ideia era “tecnicamente boa”.


Isso evita até desfechos trágicos como o suicídio de Santos Dumont, causado, dizem, por uma depressão profunda iniciada quando ele viu aviões sendo usados como armas na primeira grande guerra. Ele se sentia culpado pela atuação de homens como o alemão Manfred von Richthofen, o Barão Vermelho, que teria abatido 80 inimigos no ar.

Ao contrário do que muita gente pensa, medo é uma coisa boa. Impõe limites, sinaliza respeito – é o que nos impede de, por exemplo, enfiar a cabeça na boca de um leão (ainda que haja quem ganhe a vida fazendo isso ou coisa pior). Mas o medo não pode ser paralisante e por isso não faz nenhum sentido tentar para o mundo ou o avanço da ciência. Ou não?

Os livros de Isaac Asimov definiram as leis da robótica; a mais importante delas é a primeira: um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal. Pelo jeito, e pelo que diz Geoffrey Hinton, um bambambã do assunto e que ajudou a desenvolver a ideia, a inteligência artificial pode ser usada para “coisas ruins”.

Como tudo, poderíamos dizer. Como os aviões.

Já se sabe que a IA já é capaz de criar algoritmos e novos softwares. Mas qual o perigo disso?

Na dúvida, perguntei ao ChatGTP que mesmo sem ser essa inteligência toda – os cientistas acham que ainda é um embrião – respondeu:

“Essa é uma questão controversa e debatida por diversos especialistas no campo da inteligência artificial. A maioria dos especialistas concorda que a inteligência artificial tem o potencial de superar a capacidade humana em tarefas específicas. Por exemplo, algumas tecnologias de IA já superam os humanos em jogos de estratégia, reconhecimento de padrões e processamento de grande quantidade de dados”.

E continuou: “No entanto, alguns especialistas acreditam que a IA não será capaz de superar completamente a inteligência humana em todas as áreas, especialmente naquelas que requerem habilidades sociais e emocionais. Além disso, a maioria concorda que a IA não pode representar uma ameaça aos humanos, a menos que seja programada com intenções maliciosas”.

E ainda esticou o assunto: “No geral, o desenvolvimento da IA e seus efeitos na sociedade é um tema complexo que deve ser cuidadosamente considerado em termos de ética e responsabilidade. É importante garantir que a tecnologia seja usada de maneira segura e benéfica para a humanidade”.

Minha conclusão é que precisamos nos preocupar mesmo, porque a inteligência artificial está chegando lá; já aprendeu a enrolar, igual a uns políticos espertinhos.

Esta triste cidade

Tínhamos orgulho, principalmente do nosso povo. Éramos a gente mais hospitaleira da terra, gente sem preconceitos, com verdadeiro amor à liberdade e à justiça, e tão bem intencionada que escrevera na sua bandeira "Ordem e Progresso" - norma discreta e honesta, sem ênfase demagógica, sem exclamação retórica, simples definição de um programa de vida

(Então, então... é isso que se vê...)

Cecília Meireles, "Crônicas de viagem"

Restaurando a nobreza

É revoltante tomar conhecimento do Projeto de Lei que criminaliza quem “discriminar pessoas politicamente expostas”. Além de seu conteúdo despudoradamente despótico, revelador de um manifesto espírito de fidalguia, ele é impreciso.

De saída, cabe perguntar o que, para seus autores, significa ser uma “pessoa politicamente exposta” numa democracia. Seriam os professores, os padres, ministros e rabinos que pregam suas crenças, os que escrevem nos jornais e opinam contra ou a favor de algum assunto ou indivíduo, na tentativa de clarificar o que ocorre na esfera política? Quem não seria “politicamente exposto” num sistema cujo atributo inviolável é o direito de manifestar opiniões no sentido de tornar mais justo e equilibrado o cenário coletivo? Se, a partir de Montesquieu, Rousseau, Jefferson e Madison, consolidou-se uma cidadania aberta ao par igualdade e liberdade, quem não seria uma “pessoa politicamente exposta”?

Seria possível, num Estado Democrático de Direito, não ter papel político e assim ficar “exposto” como um ativista de determinadas preferências? Quem então seria esse vitimado “politicamente exposto” de que fala a lei, senão todo cidadão que, em qualquer arena, discuta, critique, acuse, denuncie ou simplesmente opine e analise o grande palco coletivo?

Pelo que entendi, esse projeto tem como objetivo discriminar para cima ou distinguir “políticos profissionais”. Os que vivem da política e fazem parte da imensa e doentia máquina do Estado brasileiro e que, como legisladores, já são discriminados (e como!!!) não como vítimas, mas por seus escabrosos salários (num país onde seus eleitores passam fome), regalias, prerrogativas, foro e formidáveis privilégios.

O que mais chama a atenção deste modesto e cancelado estudioso do permanente e ileso elitismo (de direita e esquerda) nacional é sua arquitetura moral. É a exibição, agora manifesta, de uma “ética de condescendência” que rotineiramente legisla em causa própria, ao lado da tentativa de hierarquizar mais claramente o sistema, sacralizando juridicamente o mandonato brasileiro.

Essa lei não chega do nada. Muito pelo contrário, ela é mais um aborto desta barafunda político-jurídica em que nos metemos, pois tal excrescência nada mais é do que a legalização do “você sabe com quem está falando?”.

Se aprovada, ela criminalizará o direito de discordar e de exercer a cidadania, impedindo os “comuns” que elegem os “politicamente expostos” de honrar os papéis de servidores para os quais foram eleitos. Horroriza saber que a Câmara tenha engendrado uma lei que bloqueia justamente um dos elementos-chaves da democracia: o direito de representação digna e coerente.

Num outro nível, trata-se, como indica o título destas indignadas linhas, de uma real e reacionária tentativa de restauração da nobreza. De um corpo social e juridicamente acima dos cidadãos comuns. Uma “ordem” protegida das vigilâncias igualitárias responsáveis pela invenção reacionária do popular VSCQEF como ritual. De um segmento singular, sujeito a leis privadas (privilégios) extensivas aos integrantes de suas dinastias. Eis o familismo, o velho patriarcalismo e o adorado baronato de volta, estabelecendo por lei que “políticos expostos” podem fazer todas as falcatruas, dispensar todas as normas éticas porque, como nobres, estão acima e isentos das normas deste horrível igualitarismo chamado democracia!

Restaurada a nobreza, já temos rei, rainha e corte. Será, talvez, um pouco triste dispensar o eventual VSCQEF, porque os novos nobres, eleitos pelo povo pobre, desvalido e faminto, surgirão em toda a sua corrupta grandeza, devidamente emblemados a ouro e prata, Chanel e BMWs, de modo que todos saberão quem são e o poder de que dispõem: o poder de impedir a mudança.

Afinal, ficar no mesmo lugar neste mundo globalizado, mas em plena destruição, já é alguma coisa...

Abulia de Bolsonaro frustra seus aliados

Os livros mais lidos nas bibliotecas das cadeias brasileiras são clássicos da literatura. O campeão é Crime e Castigo, do escritor russo Fiodor Dostoiévski (1821-1881), por motivos óbvios. Fazem parte desse ranking Incidente em Antares, do gaúcho Érico Veríssimo (1905-1975); Sagarana e Grande Sertão: Veredas, do mineiro Guimarães Rosa (1908-1967); e Dom Casmurro, do carioca Machado de Assis (1839-1908), considerado um clássico da literatura universal. A razão é simples: com base na legislação penal, cada livro resenhado vale por quatro dias de cadeia. Apesar de um certo oportunismo, muitos presos acabam adquirindo o saudável hábito da leitura.

Poderia haver preferência pelos livros de autoajuda. Sem preconceito, Poder do Hábito (Charles Duhigg) ajudaria a recuperar estelionatários, traficantes, homofóbicos, racistas e até homicidas, concomitante ao cumprimento das penas, é claro. Esse livro explica a formação dos hábitos e comportamentos e como mudá-los. Há outros: Hábitos Atômicos (James Clear), pequeno manual para transformação de hábitos; Mude seus horários, mude sua vida (Suhas Kshirsagar), ajuda a sintonizar o relógio biológico com os afazeres do dia a dia; e Pequenas Atitudes, Grandes Mudanças (Caroline R. Arnold), decisões que criam novas rotinas.
Mas a preferência nas cadeias por Crime e Castigo, e não por livros de autoajuda, tem explicação: o sentimento de culpa. O protagonista é Raskólnikov, um ex-aluno brilhante, que por razões econômicas não pode mais estudar e tenta se manter em São Petersburgo. Quando o seu desespero aumenta, surge a ideia de matar a velha agiota Alyona Ivanovna, que lhe aluga um quarto e ameaça colocá-lo para fora, se não lhe pagar o que deve.

Seus pertences mais valiosos foram entregues como pagamentos de suas dívidas. Não sobrou nada. O que fazer? Raskólnikov dividia os indivíduos em ordinários e extraordinários, numa tentativa de explicar a quebra das regras em prol do avanço humano. Seguindo esse preceito, Raskólnikov planeja e executa o crime. Flagrado pela sobrinha da vítima, comete mais um assassinato. Rouba joias, mas não chega a se beneficiar disso; com medo de ser descoberto, as esconde.

Para ele, não houve crime, não matou um ser humano, matou um “princípio”. No entanto, aos poucos, cai numa ciranda de culpa e insanidade. O gatilho é um maluco inocente, em busca de notoriedade e realização, que assume o crime. Até então insuspeito, Raskólnikov é tomado de remorsos, influenciado pela descrição da ressurreição de Lázaro no Novo Testamento. Acaba por confessar o crime. O peso da própria consciência e as suspeitas de parentes foram insuportáveis. Não era uma daquelas pessoas que julgava extraordinárias, porque seriam capazes de tudo sem culpa alguma. Graças à confissão, ao arrependimento e à falta de antecedentes criminais, porém, sua pena é reduzida a oito anos em uma cadeia na Sibéria.

Curiosamente, Recordações da Casa dos Mortos, o livro de Dostoiévski que fala da cadeia, não faz o mesmo sucesso nos presídios. Seria como falar de corda em casa de enforcado. Ele havia passado quatro anos encarcerado na Sibéria, dos 10 em que esteve no exílio. Como os prisioneiros eram proibidos de escrever memórias e relatos, Dostoiévski disfarçou a obra como ficção, dizendo-a ser o diário de um homem preso por assassinar a esposa em crise de ciúmes.

Aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro estão inconformados com a sua abulia, isto é, a falta de interesse pela sua própria situação política, diante da iminente condenação pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por atentar contra a realização das eleições presidenciais do ano passado. Segundo eles, o ex-presidente deveria esbravejar e mobilizar seus apoiadores. Grosso modo, a abulia se traduz pela falta de atividade e a ausência de respostas emocionais.

Quando uma pessoa sofre de abulia, perde a vontade de agir, é tomada por indecisão e sentimento de impotência. Sente apatia e indiferença por questões que antes lhe costumavam proporcionar satisfação. Na psicologia, a abulia pode ser um sintoma de doenças mentais, como a depressão, a esquizofrenia, o transtorno bipolar e a distimia.

Relator do processo de Bolsonaro, o ministro Benedito Gonçalves já tem apoio da maioria dos colegas do TSE à tese de que é preciso levar em conta, no julgamento, as “circunstâncias relevantes ao contexto dos fatos, reveladas em outros procedimentos policiais, investigativos ou jurisdicionais ou, ainda, que sejam de conhecimento público e notório”. Entre eles, estão as revelações constantes no relatório da Polícia Federal sobre o celular do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid, que preparava um golpe militar. Ninguém ainda sabe qual o verdadeiro envolvimento de Bolsonaro nos fatos, mas ele sabe. Puro Dostoiévski.