sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Pensamento do Dia

 


Livro de general Villas Bôas é um histórico lixo golpista

O general Mark Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto dos EUA, militar mais poderoso da Terra, enfrentou as delinquências de Donald Trump recorrendo à Constituição americana. Por aqui, um general da reserva resolve narrar, em tom que aspira ao pudoroso, a ameaça golpista que fez para intimidar o Supremo.

No dia 3 de abril de 2018, véspera do julgamento de um habeas corpus impetrado pela defesa de Lula, o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, escreveu no Twitter: "Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem d e repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais".

Os que dele discordavam não eram "homens de bem". Comandar tanques corresponderia a ter razão. O general ainda distinguiu os que pensavam "no bem do País" dos que estariam preocupados "com interesses pessoais". Adivinhem em que lado ele se via. A propósito: quantas divisões tinha o adversário?
Lembro: cinco dos seis ministros que votaram contra a concessão do habeas corpus foram indicados por Lula ou por Dilma. Três dos cinco favoráveis, por outros presidentes.


Villas Bôas concedeu um depoimento a Celso Castro, diretor do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da FGV. A fala está condensada no livro "General Villas Bôas: Conversa com o Comandante".

Não é exatamente novidade. O próprio militar já havia tratado do assunto em entrevista, mas fica ainda mais claro desta feita que seus tuítes ameaçadores reproduziam o pensamento do Alto Comando do Exército —ao menos é isso o que diz. Não havendo contestação, assim é. Querem passar um paninho na biografia do general e nas tentações golpistas?

Então fiquem com a versão de que, ao mandar um ultimato ao Supremo, Villas Bôas evitou coisa pior —quem sabe uma tentativa de quartelada, à revelia do Alto Comando, estimulada por pijamas inflamados. Conhecemos, desde Castello Branco, a cascata do militar honrado, que resiste à quebra da hierarquia, mas acaba cedendo a contragosto... A versão vale uma dose de cloroquina contra o coronavírus, ministrada por Eduardo Pazuello, general da ativa.

Uma mentira essencial constitui o pano de fundo do relato de Villas Bôas: a de que Lula poderia concorrer à Presidência se deixasse, então, a cadeia. Falso. Tivesse acontecido, tratar-se-ia apenas de cumprir o que dispõe o inciso LVII do artigo 5º da Constituição.

O petista continuaria inelegível segundo a Lei da Ficha Limpa. Ainda que elegível fosse, a suposta legitimidade da intervenção, à qual o militar pretende emprestar dimensão constitucional, emana de que título legal?

Estou enganado, ou ele pretende legitimar com as baionetas a leitura do artigo 142 da Constituição no esforço de impedir o cumprimento de disposição do artigo 5º, que é cláusula pétrea?

Os militares teriam seus motivos para tanto rancor: estavam revoltados com as conclusões da Comissão da Verdade —jamais um golpista sofreu qualquer prejuízo pessoal--; viam a Amazônia submetida à cobiça de organizações estrangeiras, consideravam a demarcação de terras indígenas um risco à soberania...

Pouco me importam os fantasmas que povoam a imaginação criativa do golpismo. Fato: Lula foi o presidente que mais investiu no reaparelhamento das Forças Armadas desde a redemocratização. E desafio que se evidencie o contrário. A ideia de que se forjou um espírito antipetista num ambiente de penúria e de política entreguista (ao onguismo internacional) vale uma dose do vermífugo do astronauta.

Não tenho apreço por quem me ameaça. Os tuítes de Villas Bôas marcaram o engajamento explícito das Forças Armadas na candidatura de Bolsonaro. Um dos generais do poder organizou uma lista de compra de votos para eleger o presidente da Câmara. Outro, da ativa, poderá, no fim de fevereiro, discursar sobre 250 mil cadáveres.

Seriam esses os "anseios dos cidadãos de bem?" O depoimento de Villas Bôas tem óbvio interesse histórico. Merece um lugar na prateleira do lixo golpista.

Receita de golpe

Na Folha de quarta última, o ministro do STF Edson Fachin analisou com preocupação a cena nacional e listou fatos cuja soma me faz farejar uma receita de golpe de Estado, em preparo por um já declarado candidato em 2022 caso as eleições não o favoreçam. Os ingredientes dessa receita, com meus comentários, são:

1. Remilitarização do goveno civil. Milhares de militares de patentes inferiores, da ativa e da reserva, foram infiltrados na administração. Ensaio de compra das Forças Armadas. 2. Instigação ao fechamento dos demais Poderes. O Executivo tenta intimidar o Judiciário e o Legislativo com mobilizações populares e ameaça de tropa na rua. 3. Declarações acintosas de depreciação do valor do voto. Permanente pregação com fundo antidemocrático, sedimentando o terreno para uma possível alternativa totalitária.

4. Palavras e ações que atentam contra a liberdade de imprensa. Campanha incessante de desmoralização da imprensa livre, aliada à compra descarada do apoio de certos canais de TV —a velha e boa "mamata". 5. Incentivo às armas e à violência. A ideia é armar seus seguidores no caso de as forças da legalidade resolverem intervir no sentido de um impeachment ou interdição. 6. Recusa antecipada de resultado eleitoral adverso. Insinuações de fraude eleitoral, ao estilo Donald Trump, e tentativa de impor o voto por escrito, fácil de viciar, para levar o eleitorado a insurgir-se contra o resultado.

7. Corrupção de agentes administrativos. Inúmeros funcionários e aliados do governo, sem falar nos filhos, são investigados, denunciados ou réus por corrupção. O empenho em corromper atinge também juízes, procuradores, promotores, a Abin, o Coaf, a Polícia Federal, a Receita Federal etc., para controlá-los.

Os golpes desprendem seu mau cheiro muito antes de serem postos em marcha. Não é sensato tapar o nariz. Ainda mais quando já há um em marcha.

Sede ao pote

O exagero, a precipitação e a autoconfiança excessiva são inimigos mortais de quaisquer estratégias. Adver­sários na vida de modo geral, traduzidos no dito segundo o qual quebram-se os potes de água quando a eles se vai de modo atabalhoado para matar a sede, na política a velocidade desmedida e a imoderada segurança na corrida aos meios e modos do poder são fatais.

Podem até render vitórias imediatas, mas semeiam derrotas ao longo do tempo porque nada que extrapola dá bom resultado de modo perene. O que é demais não apenas enjoa como enoja e provoca reações no sentido contrário tão ou mais fortes que a ação abusiva.

A ascensão e queda do PT por exorbitâncias cometidas na falta de compreensão do que seria legal ou ilegal no, digamos, acesso à coisa pública é o exemplo mais eloquente no qual os parlamentares do Centrão poderiam e, sobretudo, deveriam mirar para fugir do risco da debacle anunciada no assalto que o grupo faz ao Planalto e adjacências.

Os rapazes e moças dessa banda não querem nada além do domínio total do governo. Chegaram já pretendendo desalojar os ditos ideológicos e dar um chega para lá nos militares.



Fosse pelos motivos corretos, o déficit de bom senso dos obscurantistas e o excesso de gente oriunda das Forças Armadas em regime de comando civil, ainda vai. Mas a ofensiva visa apenas à ocupação de espaços em ministérios, nas áreas de infraestrutura país afora, na coordenação política e até nas agências reguladoras, como demonstrado na ousada tentativa de enquadrar a Anvisa.

A sofreguidão contraria a celebrada competência política do grupo. Isso talvez se explique pelo fato de os mais experientes e habilidosos personagens do Centrão original, surgido na Assembleia Constituinte de 1987/1988, estarem hoje fora do jogo. Mortos, aposentados ou no ostracismo. Fato é que a nova geração, em boa medida à época integrante do baixo clero, não faz jus ao colégio de cardeais que a antecedeu.

Dos maus conselhos fornecidos pela voracidade desatenta ao real tamanho das próprias pernas deu notícia recente o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Ao se enxergar maior do que era, fez uma manobra dúbia sobre a reeleição ao posto, apostou no apoio do Supremo Tribunal Federal e só colheu perdas. Perdeu tempo para elaborar um plano B, perdeu força dentro do próprio partido, que pulou para fora do barco dele a fim de garantir ganho no Senado, e perdeu prestígio externo.

O governador João Doria é outro que flerta com os riscos da ansiedade. Agora, forçando uma definição pelo domínio do PSDB irritando adversários internos, e antes, quando viu o que uma viagem a Miami em pleno aperto de restrições à população de São Paulo pode causar de estragos no capital positivo amealhado por sua gloriosa atuação em prol das vacinas.

Para fechar o rol, temos o rei dos açodados, o imperador dos exacerbados, na figura de Jair Bolsonaro. Tantas o presidente fez, tamanhos foram os erros que cometeu nesse campo das demasias desmedidas que não lhe restou alternativa a não ser negar uma a uma as suas proposições de campanha e até suas bandeiras junto aos fiéis mais fanáticos.

Da aludida nova política ao combate à corrupção, passando pela recente tentativa de sair à francesa do negacionismo em relação à pandemia, Bolsonaro foi sendo obrigado pela realidade a trocar de casca e ainda amargar o carimbo de estelionatário das urnas. Apesar desses pesares, saiu-se até agora sem maiores danos, embora esse tira-teima eleitoral esteja em aberto para ser resolvido em outubro de 2022.

Já os adeptos da seita do “mito” contabilizam prejuízos graves. No Congresso a deputada Bia Kicis não sofreria tanta contestação à indicação para a presidência da Comissão de Constituição e Justiça não fosse seu histórico de extremismos. Dessa doença senil do sectarismo entusiasmado padeceram outras estrelas agora cadentes. Onde estão as saras winters, os allan dos santos, os olavos de carvalho, os weintraubs?

Em casa de tornozeleira eletrônica, bloqueados nas redes sociais, condenados a pagar indenizações milionárias, em exílios mais ou menos voluntários, longe dos seus, sem palanque nem tribunas, processados, investigados, desacreditados e, sobretudo, ridicularizados.

Pergunte-se a qualquer um se valeu a pena. Na fala dirão que sim, mas na alma carregarão a paga das pragas incivilizadas por eles rogadas.

De volta ao pântano

Semana passada cometi um sincericídio do qual acabei sendo vítima, ao lembrar dos grandes cronistas que divertiam e emocionavam falando com leveza e elegância de tudo e de qualquer coisa, menos de política. Levei uma gozação do Diogo Mainardi, revoltado porque trabalha 18 horas por dia no lodaçal da política e inveja minha liberdade temática. Em compensação, recebi um e-mail estimulante de minha colega de caderno Martha Batalha sobre a missão da crônica, ela mesma uma cronista iniciante, mas brilhante romancista de “A vida invisível de Eurídice Gusmão” e “Nunca houve um castelo”, que me divertiram e emocionaram muito. Até ela, tão imaginativa, diz que muitas vezes fica tão revoltada que cai no lodaçal da política, arrastando junto o leitor, como já fiz muitas vezes, como fazem até cronistas de plantas, animais e comidas, levados pela fúria incontrolável que a política atual desperta.

O governo Bolsonaro se tornou assunto quase único de todos os cronistas, enchendo o saco dos leitores e chovendo no molhado dos comentaristas políticos. Mas nos tempos de pandemia e horror que vivemos, ele oferece diariamente novos motivos com suas mentiras, ofensas e descalabros.

Dizem que o destino dos que não gostam de política é ser dominado pelos que gostam. Faz sentido e é um bom pretexto para um mergulho no pântano, na esperança vã de contribuir para algum esclarecimento e transformação, que é pura ilusão, nós cronistas não fazemos a menor diferença. Há muito tempo já desisti de “fazer a cabeça”, como diziam os hippies, de qualquer pessoa sobre qualquer coisa. Apenas dou minha opinião e tanto faz se concordam ou não, mas não por arrogância, por realismo.

Com todas as desculpas esfarrapadas já alinhadas, vamos ao que interessa, o que é importante: 2022.

Uma das raras vezes que concordei com Bolsonaro foi quando ele disse: “Fora Bolsonaro, mas pra botar quem?” Todo mundo já desconfia que, por ser mais inteligente e preparado, o general Mourão pode ser ainda pior do que Bolsonaro.

Mas quem pode enfrentar Bolsonaro, numa oposição dividida e paralisada entre o culto da personalidade, ideias antigas e desastres recentes ? Guilherme Boulos falou certo, antes de escolher um nome, é preciso escolher um projeto de governo. Mas só uma grande coligação de partidos pode viabilizá-lo.

Por exemplo, um quadro político da qualidade, da integridade e da experiência de Fernando Haddad pode ser dessa vez um adversário competitivo. Desde que seja por uma coligação de partidos do centro à esquerda, inclusive o PT, mas sem liderança. Uma coligação só faz sentido se contemplar todos os partidos que a integram, democraticamente, harmonizando um projeto mínimo de governo.

Conhecendo nossos partidos e a vaidade de seus líderes, sabemos que eles não conseguem se unir nem em casa, imaginem em uma coligação da esquerda ao centro, como na campanha das Diretas Já. Bolsonaro confia na antiga máxima “a esquerda só se une na cadeia”.

Brasil e a 'solução final'

 


Bolsonaro, sem compromisso com o que diz e faz

De tanto ir e vir, dizer algo hoje e amanhã o seu oposto, o presidente Jair Bolsonaro criou as condições para escapar impune aos efeitos do seu comportamento errático. Salvo um bando cada vez menor de jornalistas incômodos, ninguém se espanta mais com o que ele diz ou faz. O país limita-se a observar entediado.

Normalizou-se o absurdo. Em novembro último, descobriu-se que um total de 7 milhões de testes da Covid-19 mofava em armazéns de Guarulhos, na Grande São Paulo, e que seu prazo de validade expiraria no final de dezembro. O que fez o Ministério da Saúde? Prorrogou o prazo para o final de abril próximo. Simples.

Agora, incapaz de aplicá-los em sua totalidade, decidiu doar parte dos testes ao Haiti. Um gesto humanitário de um governo que pouco se importa com a preservação de vidas, como cansou de demonstrar ao longo da pandemia. Dos 7 milhões de testes, os armazéns ainda acumulam 5 milhões. Melhor doá-los, pois.

Quem mais do que Bolsonaro pregou contra a vacinação e desqualificou as vacinas pondo em dúvida a sua eficácia? Quantos milhões de brasileiras não tomaram horror à vacina por acreditarem na palavra do presidente da República? Por que se vacinarem se Bolsonaro já disse e repetiu que não se vacinará?

Mas, em entrevista à Rede Bandeirantes de TV, Bolsonaro revelou que está sendo realizada uma votação entre seus irmãos para decidirem se vacinam ou não a mãe, Olinda Bonturi Bolsonaro, de 93 anos. E que ele votou a favor “mesmo com uma vacina que não está comprovada cientificamente”.


Se não há comprovação científica por que ele como presidente da República não se opôs à liberação de vacinas pelo Ministério da Saúde? E por que mesmo admitindo que drogas como a cloroquina e outras carecem de comprovação científica, no entanto as recomendou para tratamento precoce da doença?

No final de janeiro passado, Bolsonaro descartou a volta do pagamento do auxílio emergencial aos brasileiros mais pobres atingidos pela pandemia “porque isso quebraria o país”. Na entrevista à Band, afirmou que a volta do pagamento do benefício “é para ontem”, embora possa trazer “problema” para a economia.

Nada demais. Está em linha com ele mesmo. Não jurou que se fosse eleito não governaria com o Centrão e nem lotearia cargos entre os partidos? Rendeu-se ao Centrão para ganhar o comando da Câmara e do Senado e tentar se reeleger. Prometeu combater a corrupção e acabou com a Lava Jato.

Pelos filhos encrencados com a Justiça, fará qualquer coisa. José Vicente Santini, amigo dos garotos, foi demitido por Bolsonaro em 28 de janeiro de 2020 de um cargo na Casa Civil por ter viajado sem necessidade para o exterior em um avião da FAB. Foi para dar exemplo de que o seu era e seria um governo austero.

"Inadmissível o que aconteceu, tá? Já está destituído da função. Decisão minha. O que ele fez não é ilegal. Mas é completamente imoral", decretou Bolsonaro à época.

No dia seguinte, a nomeação de Santini para outro cargo na Casa Civil foi publicada em edição extra do Diário Oficial. Como pegou mal para ele, Bolsonaro mandou anular a nomeação. Finalmente, ontem, Bolsonaro nomeou Santini para 

Vai trabalhar, vagabundo


A vida continua, temos que enfrentar as adversidades. Não adianta ficar em casa chorando, não vai chegar a lugar nenhum. Vamos limitar o vírus, voltar a trabalhar, porque sem economia não tem Brasil
Jair Bolsonaro

A crise do presidencialismo

Desde a sessão de promulgação da Assembleia Constituinte, marcada por brincadeiras, despedidas emocionadas e pelo impressionante discurso de Ulysses Guimarães, até o dia de hoje se passaram 33 anos. Neste período, a democracia brasileira, jovem e frágil, assistiu de tudo.

Dois impeachments, escândalos de bom tamanho na área da corrupção, prisões de gente importante, desmandos e conflitos entre políticos e partidos. Consequência do sistema partidário caótico, com mais de trinta siglas, dentro de um regime de governo indefinido, com seu corpo parlamentarista e prática presidencialista. Não é nenhuma coisa, nem outra.

A resposta tem sido a crise. Houve inflação elevadíssima na casa de cem por cento ao mês. Surgiram vários planos econômicos, antes de a economia encontrar sua estabilidade. A frequente intromissão do Judiciário na área do Legislativo que se esquiva de tomar decisões profundas. Vive na superfície dos problemas.

As reformas essenciais, seja a tributária ou a administrativa, não caminham. Enfim existe a percepção, interna e externa, de que o estado precisa diminuir seu tamanho e aumentar sua eficiência. Mas nada se faz para corrigir essa anomalia. O resultado é a instabilidade.

Pior do que a instabilidade, é o fim das esperanças. O jovem no Brasil encontra enormes dificuldades para encontrar emprego no nível de suas capacidades. Melhor se arriscar no exterior. O Brasil está perdendo seus melhores cérebros.

Quem pode, pega o primeiro avião e caminha para o mundo desenvolvido. Encontrei em Harvard, há mais de ano, um surpreendente contingente de estudantes brasileiros. O Brasil mergulha na direção de níveis africanos. Isso não é derrotismo. É realismo.

A Argentina frequentou o clube dos países mais ricos do mundo, com povo alfabetizado, boa oferta de grãos, petróleo e carne de primeira linha. No início do século vinte, a economia do vizinho chegou perto de ser o dobro do Brasil. Hoje, o produto interno bruto deles está próximo de um terço do brasileiro.

O vizinho regrediu. Deixou o mundo desenvolvido e passou a figurar entre os emergentes. Os hermanos continuam a viver o inferno econômico sul-americano. Juros elevados, inflação alta, reservas internacionais escassas e desemprego feroz. Moeda sem valor. O mercado é indexado ao dólar.

No Brasil a crise é anunciada. O regime presidencialista é um desastre. Só deu certo nos Estados Unidos, porque lá funciona uma confederação de verdade. Houve a guerra da secessão no século 19 quando os estados do sul tentaram deixar a confederação. O presidente Lincoln salvou a União, libertou os escravos e por causa disto foi assassinado.

Na eleição seguinte, através de um acerto entre partidos, tudo retornou à situação anterior. Os negros perderam seus direitos. O sistema eleitoral, indireto, prevaleceu. Ou seja, fizeram questão de reafirmar sua própria autonomia. É a confederação.

Os exemplos recentes daqui são eloquentes. O governo de Dilma Rousseff vinha fazendo água a olhos vistos. Ela perdeu a capacidade de se articular com o Congresso e inventou uma política econômica anticíclica desastrosa. Surgiu o impeachment. O processo foi duro, difícil, provocou crises, queda da bolsa de valores, disparada do dólar, xingamentos de parte a parte e grandes traições. Um desastre.

Nos dias que correm, de novo, a ameaça de remover o presidente de sua cadeira aparece no horizonte. A resposta do governo é distribuir cargos e benesses para comprar alianças e se manter no poder. Não há projeto, a não ser permanecer dentro do Palácio do Planalto, mesmo que seja sangrando em praça pública pelos próximos dois anos.

Os partidos políticos se amoldam aos problemas. O Brasil bordeja o abismo. Se o regime fosse parlamentarista a crise seria menor. O parlamento aprovaria o voto de desconfiança, um novo primeiro-ministro assumiria o cargo e a vida continuaria. É assim no mundo todo. A Itália fica meses sem governo. O mesmo acontece na Bélgica ou em Israel. Nestes países exercício da política é distante do comando da administração.

O governo se defende praticando o conhecido toma lá, dá cá. Podem surgir novos ministérios. Farta distribuição de benesses, verbas e empregos. O impeachment pode ou não acontecer, mas a crise está anunciada. Os brasileiros não perdem a oportunidade de perder mais tempo, de se afastar do mundo desenvolvido, de regredir nos níveis de escolaridade e padecer do pesado desemprego.

Os jovens preparam seus passaportes. Especuladores esfregam as mãos. Já apostam na elevação de juros, no retorno do capital especulativo que produz lucros extravagantes sobre populações empobrecidas. Este foi o pano de fundo na eleição dos presidentes do Senado e da Câmara.

É comovente o esforço do governo Bolsonaro para transformar o Brasil num pária internacional

Não é nada fácil governar um país como o Brasil, o quinto maior do mundo, sexto em população e com a nona economia. O próprio presidente Jair Bolsonaro já fez um desabafo, dizendo: “Não consigo governar”. O motivo dessa incompatibilidade é que não é o presidente da República que governa diretamente, quem o faz é seu primeiro escalão.

O problema é que Bolsonaro escolheu o pior ministério da História, com algumas exceções, é claro, e o conjunto da obra do governo está transformando o Brasil num pária internacional ou “pária diplomático”, como prefere o chanceler Ernesto Araújo, que é destaque apadrinhado pelo filósofo Olavo de Carvalho e desfila na Comissão de Frente da irresponsabilidade institucional.



Entre os 22 ministros, somente quatro escapam da mediocridade reinante – o titular da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, engenheiro de formação militar; a ministra da Agricultura, Teresa Cristina, engenheira agrônoma e produtora rural; o presidente do Banco Central, economista Roberto Campos Neto; e o corregedor-geral da União, Gilberto Waller Júnior, procurador federal .

Aliás, o tão competente no combate à corrupção que a Agência Brasileira de Informação (Abin) já pediu a demissão dele, por considerá-lo um obstáculo às manobras para inocentar o senador Flávio Bolsonaro, denunciado por prevaricação, lavagem de dinheiro e outros crimes, vejam só a que ponto chegamos.

Como diria o estadista Oswaldo Aranha, o atual governo é um deserto de homens e ideias, incluindo o multiministro da Economia, Trabalho, Previdência etc., Paulo Guedes, cujo prazo de validade está mais do que vencido.

O pior dessa situação é que o próprio Guedes sabe que o Brasil vai mesmo se transformar num pária internacional, em termos econômicos e diplomáticos, caso não interrompa imediatamente a perseguição à Lava Jato, à Receita Federal, ao Ministério Público, à Polícia Federal e ao Conselho de Controle de a Atividades Financeiras (Coaf).

Organismos internacionais, como o Banco Mundial (Bird), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Organização Mundial do Comércio (OMC) e Transparência Internacional (TI), monitoram atentamente o combate à corrupção, lavagem de dinheiro, improbidade e enriquecimento ilícito em todos os países.

Os Estados Unidos, por exemplo, mantêm quatro instituições monitoradoras de atividades financeiras. O Brasil só tem a Coaf, que chegou a ser blindada pelo governo e o Supremo interveio, através do ministro Alexandre de Moraes.

Pauta do atraso de Lira começa com jornalistas

Não se trata de saudosismo, nem interesse corporativo. Passei uns bons e felizes anos da minha vida ali naquele comitê de imprensa da Câmara, um olho no plenário, outro na vista do gramado e da rampa, exibida pela ampla fachada envidraçada. Mas jornalista está acostumado a trabalhar onde precisa. Já escrevi muito no chão, sentada em calçadas das mais diversas cidades do país e do mundo, passei matéria por orelhão, telefone de padaria, telex e rádio – sobrevivíamos antes dos fantásticos processadores de texto, celulares, WiFi, etc. Sob o ponto de vista estrito da prática diária, não haveria grandes prejuízos à liberdade de expressão com uma mudança de sala do comitê como a que foi determinada pelo novo presidente da Câmara, Arthur Lira, além da perda do conforto de uma porta dando diretamente no plenário. Mas o problema não é esse.

A coisa muda de figura diante das razões de Lira, reveladas pelos próprios aliados: está transferindo seu gabinete para o lugar onde hoje é o comitê a fim de ter passagem direta para o plenário e escapar às abordagens dos jornalistas a cada vez que atravessar o Salão Verde rumo às sessões, como ainda ocorre hoje – e, diga-se, ocorreu com todos os seus antecessores. Ulysses Guimarães, que às vezes acumulava três presidências (da Câmara, da Constituinte e da República, como substituto de José Sarney), atravessava o Salão Verde todos os dias, frequentemente de quatro a seis vezes no mesmo dia.

>Enche a paciência? Enche. O próprio Ulysses às vezes fazia cara feia para nós. Outros presidentes bem que tentaram implementar o projeto arquitetônico que Lira está agora autorizando, que é antigo. Um a um, porém, foram desistindo, alertados por colegas e assessores, sob o argumento de que desalojar os jornalistas teria um simbolismo muito ruim, passando a ideia de desrespeito ao trabalho da imprensa. Responder perguntas de jornalistas, afinal, é um ritual da democracia, sobretudo para quem chegou naquele Salão pelo voto popular.

Lira parece não ligar a mínima para simbolismos, e muito menos para a prestação de contas de seus atos à sociedade, através da mídia, com a qual não tem boas relações. No seu caso, o que mais preocupa é a facilidade com que decidiu remover os jornalistas para uma sala no subsolo, sem explicações ou conversas, de forma autoritária e irreversível. É um comportamento que prenuncia outras ações do tipo – e não apenas contra jornalistas, mas principalmente contra ritos e direitos da democracia.

Um presidente da Câmara não pode tudo, mas pode muito. Não aprova projetos sozinho, mas os coloca em pauta e nomeia relatores e dirigentes de comissões. Todo mundo sabe que o Centrão, grupo que Lira lidera, não é reformista, e que boa parte da agenda liberal da economia vai acabar engavetada. É na pauta ideológica e de costumes que o novo presidente da Câmara pretende mostrar seus serviços ao Planalto. Armar a população, acabar com as leis do trânsito que salvam vidas, liberar policiais e militares para matar em serviço, dificultar ainda mais o aborto em casos de estupro&... Tudo isso, e muito mais, está na lista. Salve-se quem puder.

Em tempo: Arthur Lira pode pensar que ficou livre dos jornalistas. Não ficou, nem ficará. O pessoal já está se preparando para cercá-lo, na entrada e na saída, na Chapelaria da Câmara, onde o presidente é obrigado a passar para entrar e sair do carro. Não há como escapar. Fácil ou difícil, é preciso seguir correndo atrás da notícia. Assim como os projetos da agenda obscurantista só terão sucesso se a sociedade não se movimentar nos espaços e brechas que a democracia ainda nos oferece para agir contra o autoritarismo.

Helena Chagas

Bolsonaro sofre espancamento verbal e Pazuello evita defendê-lo no Senado

Jair Bolsonaro foi submetido a um espancamento verbal durante a audiência convocada pelo Senado para ouvir explicações do ministro Eduardo Pazuello (Saúde). O general escutou calado o capitão ser chamado de "genocida", "patético", "incompetente" e "negacionista".

Pazuello deixou que o chefe apanhasse indefeso. Mal conseguiu defender a si mesmo. Articulada com o propósito de esvaziar um requerimento de instalação de uma CPI sobre a pandemia, a audiência revelou-se constrangedora..

O mais embaraçoso não foi o lote de críticas e interrogações formuladas pelos senadores, mas as respostas que o general não foi capaz de prover. Restou a impressão de que o Planalto terá de ralar mais do que gostaria para deter a CPI.

Num dos ataques que Pazuello suportou em silêncio, o senador Fabiano Contarato (Rede-ES) bateu abaixo da linha da cintura: "Eu tenho fé em Deus que tanto o senhor como o presidente da República irão responder por genocídio, seja aqui no Brasil, seja no Tribunal Penal Internacional."

Contarato prosseguiu: "O senhor deve ser responsabilizado criminalmente, como o presidente, porque vocês estimularam aglomeração, o não distanciamento social, a não utilização de máscaras e o uso de medicação sem nenhuma comprovação científica".

Desculpando-se por usar "palavras duras", o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) disse ter identificado na exposição feita por Pazuello na abertura da sessão "um misto de ignorância e mentira." O general não esboçou reação..

Para Alessandro, Pazuello soou ignorante ao declarar que o governo surpreendeu-se com a escalada de contágio que provocou o colapso do sistema hospitalar de Manaus. "Não surpreendeu a quem estava acompanhando o cenário técnico", declarou. "Fazia parte do roteiro traçado pelo vírus inclusive na Europa."

O senador considerou mentiroso o trecho em que Pazuello declarou que o governo agiu com rapidez e proatividade. Só houve agilidade no instante em que o governo minimizou a pandemia, avaliou Alessandro. Ele tachou de "patética" a previsão de Bolsonaro segundo a qual a pandemia seria uma "gripezinha".

Médico sanitarista, o senador Rogério Carvalho (PT-SE) também mirou em Bolsonaro. Declarou que a "incompetência vem do centro do poder, da forma criminosa como, do ponto de vista sanitário, o presidente se conduziu." Na sua avaliação, o "grande responsável" pelo elevado número de mortos "foi o presidente, que não foi capaz de assumir a ciência". Pazuello reagiu com um silêncio de cemitério.

No comando da sessão, o novo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), adotou um formato que favoreceu a fuga de Pazuello. Divididos em blocos de cinco, os senadores empilharam críticas e indagações. Ao responder coletivamente, o ministro desviou de interrogações incômodas e desconversou quando lhe pareceu mais cômodo.

Mesmo parlamentares com tendência governista crivaram Pazuello de críticas. Após ouvir a explanação em que o ministro negou ter sido alertado com antecedência sobre o colapso no fornecimento de oxigênio hospitalar no Amazonas o senador amazonense Eduardo Braga, do MDB, rodou a baiana:

"Não está tudo bem, não está tudo certo, e não foi feito tudo o que poderia ter sido feito", declarou Braga a Pazuello. "Eu estive com vossa excelência no seu gabinete, em dezembro. Eu já dizia que nós iríamos enfrentar uma onda no Amazonas muito grave."

Evitando fazer menção explícita à CPI da pandemia, Pazuello fez um "alerta". Traçou uma analogia inusitada entre o Brasil do coronavírus e a Alemanha de Adolf Hitler. Evocando os infortúnios de Hitler, insinuou que a abertura de uma frente de batalha política pode produzir mais mortes.

"Queria fazer o meu alerta: A Alemanha perdeu a guerra duas vezes porque ela abriu a frente russa", declarou o general. "Todo mundo avisou ao ditador que não devia abrir a frente russa - e ele abriu. Não há como manter duas frentes."

Pazuello engatou uma segunda marcha e foi adiante: "Nós temos uma guerra, é contra a covid. Ela é técnica, de saúde, não é política. Se abrir uma segunda frente, política e técnica, vamos apertar. Se nós entrarmos numa nova frente nessa guerra, que é a frente política, nós vamos ficar fixados. Se fixarmos a tropa que está no combate, vai ser mais difícil ganhar a guerra. O resultado disso é morrer mais gente."

Autor do pedido de CPI, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) deu de ombros para o "alerta" do general: "A fala do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, aqui no Senado, não convence", anotou no Twitter. "O país ainda precisa de muitas respostas e soluções. A CPI da Covid-19 continua sendo INDISPENSÁVEL!".

Guindado ao comando do Senado com o apoio de Bolsonaro, Rodrigo Pacheco planeja cozinhar o pedido de CPI em banho-maria até pelo menos quinta-feira da semana que vem.

Pacheco parou o relógio para matar o tempo e oferecer ao Planalto a oportunidade de convencer senadores a retirarem suas assinaturas do requerimento. Até a noite desta quinta-feira (11), havia no documento 31 jamegões. Para enviar a CPI ao arquivo, o Planalto precisa passar na lâmina pelo menos quatro assinaturas.