segunda-feira, 26 de julho de 2021
Chutando o futuro
Desde as cavernas, o homem sente a necessidade de prever o futuro. Lendo as sombras da fogueira, jogando ossos no chão ou interpretando os sinais da natureza, tentando adivinhar o dia de amanhã para se sentir no controle de seu destino.
Hoje evoluímos um pouco e usamos desde astrologia até big data para traçarmos nossos caminhos de vida com alguma segurança. A taxa de acertos era aceitável até março de 2020, quando a pandemia foi decretada e jogou para o alto os planos de bilhões de pessoas e zilhões de empresas.
Logo prever o futuro se tornou um campeonato de chute. A ignorância sobre o vírus fez de governantes, médicos e cientistas meros videntes tentando adivinhar números de fatalidades nos próximos meses. Os curandeiros de Facebook misturando remédios milagrosos e vitaminas com cúrcuma para evitar o contágio.
No meio da catástrofe, começamos a acreditar nas previsões de um homem novo nascendo na adversidade. Um novo homem espiritualizado, empático, generoso começa a rever seus valores para sobreviver. O rabino inglês Jonathan Sacks definiu a pandemia como “o mais perto de uma revelação divina a que um ateu poderia chegar”. Fé é o que não falta nas trincheiras ou nas UTIs.
Na Itália, as pessoas trancadas em casa foram para as varandas cantar em coro unindo o mundo todo numa corrente de alegria e compaixão. Profissionais da saúde desbancaram os fantasiados da Marvel para se tornar nossos super-heróis. As doações de cestas básicas e respiradores ajudaram a aliviar o desespero. A natureza se recuperou longe do homem e suas fumaças, e, apesar da dor indescritível das mortes solitárias, tudo indicava que havia uma semente de um renascimento da humanidade no meio da tragédia.
O tempo passou, e a ciência tomou as rédeas novamente. Menos chutes e mais dados deixaram claro que máscaras e distanciamento eram as únicas armas para controlar o volume de doentes nos hospitais enquanto as vacinas não ficavam prontas.
Mas a ciência perdeu a sua aura de confiabilidade. Tantas previsões conflitantes geraram a disputa entre fechar tudo para proteger a vida e abrir para proteger a economia, a guerra de sempre entre as coisas do coração e as do bolso. Revoltas contra máscaras e lockdowns estouraram incentivadas pelos Trumps e Bolsonaros do mundo, que parecem adorar ver o circo pegar fogo e ouvir os gritos de quem ficou preso dentro.
As vacinas chegaram muito antes do previsto, e o que deveria ser festejado como uma conquista milagrosa da humanidade é tratado com desdém por quem acredita nas imbecilidades propagadas pelos piromaníacos de circo.
Enquanto a Índia, o Brasil, o Equador e a África do Sul sofriam de falta de vacina, oxigênio e leitos, o Primeiro Mundo nadava em imunizantes que, muitas vezes, não eram usados por ideologia ou pura paranoia de uma gente mimada pela fartura.
Globalizamos mercadorias, mas não mais a empatia. Mesmo com a falta de vacinas no Terceiro Mundo, parece que hoje não há mais espaço nos países ricos para movimentos solidários como o Live Aid, organizado por Bob Geldof em 1985, que coletou milhões de dólares para combater a fome na Etiópia.
A pandemia deixou claro: a previsão que importa para os próximos anos não será sobre o trabalho remoto, nem o ensino domiciliar, ou o fim do turismo de negócios. Será como conseguiremos medir e remediar o abismo que se formou entre pobres e ricos. No mercado de trabalho, entre os homens e as mulheres obrigadas a abandonar seus empregos para cuidar das crianças. Será sobre a escalada da desigualdade que aumentou a distância entre quem tem e quem não tem. Seja internet para poder estudar em casa, seja comida, emprego ou acesso a um sistema de saúde decente.
Já dá para prever que a tendência do mundo é se tornar menos global, mais fechado e tribalista. Mas não dá para saber se sairemos dessa motivados para a busca do bem comum, mais generosos uns com os outros ou se precisamos aceitar nossa condição de seres egoístas e autocentrados que sempre fomos. Para mim, é ingênuo buscar no outro um ser humano que faça jus ao adjetivo. Vamos procurar esse novo homem, menos egoísta e mais solidário, dentro de nós mesmos.
Não precisamos de videntes para nos dizer que tentar controlar o destino é enxugar gelo. Melhor seguir o grande Zécrates Pagodinho, o “filósofo de Xerém”, tradutor de Carpe Diem para o samba: “Deixa a vida me levar, vida leva eu / Sou feliz e agradeço, por tudo que Deus me deu”.
Hoje evoluímos um pouco e usamos desde astrologia até big data para traçarmos nossos caminhos de vida com alguma segurança. A taxa de acertos era aceitável até março de 2020, quando a pandemia foi decretada e jogou para o alto os planos de bilhões de pessoas e zilhões de empresas.
Logo prever o futuro se tornou um campeonato de chute. A ignorância sobre o vírus fez de governantes, médicos e cientistas meros videntes tentando adivinhar números de fatalidades nos próximos meses. Os curandeiros de Facebook misturando remédios milagrosos e vitaminas com cúrcuma para evitar o contágio.
No meio da catástrofe, começamos a acreditar nas previsões de um homem novo nascendo na adversidade. Um novo homem espiritualizado, empático, generoso começa a rever seus valores para sobreviver. O rabino inglês Jonathan Sacks definiu a pandemia como “o mais perto de uma revelação divina a que um ateu poderia chegar”. Fé é o que não falta nas trincheiras ou nas UTIs.
Na Itália, as pessoas trancadas em casa foram para as varandas cantar em coro unindo o mundo todo numa corrente de alegria e compaixão. Profissionais da saúde desbancaram os fantasiados da Marvel para se tornar nossos super-heróis. As doações de cestas básicas e respiradores ajudaram a aliviar o desespero. A natureza se recuperou longe do homem e suas fumaças, e, apesar da dor indescritível das mortes solitárias, tudo indicava que havia uma semente de um renascimento da humanidade no meio da tragédia.
O tempo passou, e a ciência tomou as rédeas novamente. Menos chutes e mais dados deixaram claro que máscaras e distanciamento eram as únicas armas para controlar o volume de doentes nos hospitais enquanto as vacinas não ficavam prontas.
Mas a ciência perdeu a sua aura de confiabilidade. Tantas previsões conflitantes geraram a disputa entre fechar tudo para proteger a vida e abrir para proteger a economia, a guerra de sempre entre as coisas do coração e as do bolso. Revoltas contra máscaras e lockdowns estouraram incentivadas pelos Trumps e Bolsonaros do mundo, que parecem adorar ver o circo pegar fogo e ouvir os gritos de quem ficou preso dentro.
As vacinas chegaram muito antes do previsto, e o que deveria ser festejado como uma conquista milagrosa da humanidade é tratado com desdém por quem acredita nas imbecilidades propagadas pelos piromaníacos de circo.
Enquanto a Índia, o Brasil, o Equador e a África do Sul sofriam de falta de vacina, oxigênio e leitos, o Primeiro Mundo nadava em imunizantes que, muitas vezes, não eram usados por ideologia ou pura paranoia de uma gente mimada pela fartura.
Globalizamos mercadorias, mas não mais a empatia. Mesmo com a falta de vacinas no Terceiro Mundo, parece que hoje não há mais espaço nos países ricos para movimentos solidários como o Live Aid, organizado por Bob Geldof em 1985, que coletou milhões de dólares para combater a fome na Etiópia.
A pandemia deixou claro: a previsão que importa para os próximos anos não será sobre o trabalho remoto, nem o ensino domiciliar, ou o fim do turismo de negócios. Será como conseguiremos medir e remediar o abismo que se formou entre pobres e ricos. No mercado de trabalho, entre os homens e as mulheres obrigadas a abandonar seus empregos para cuidar das crianças. Será sobre a escalada da desigualdade que aumentou a distância entre quem tem e quem não tem. Seja internet para poder estudar em casa, seja comida, emprego ou acesso a um sistema de saúde decente.
Já dá para prever que a tendência do mundo é se tornar menos global, mais fechado e tribalista. Mas não dá para saber se sairemos dessa motivados para a busca do bem comum, mais generosos uns com os outros ou se precisamos aceitar nossa condição de seres egoístas e autocentrados que sempre fomos. Para mim, é ingênuo buscar no outro um ser humano que faça jus ao adjetivo. Vamos procurar esse novo homem, menos egoísta e mais solidário, dentro de nós mesmos.
Não precisamos de videntes para nos dizer que tentar controlar o destino é enxugar gelo. Melhor seguir o grande Zécrates Pagodinho, o “filósofo de Xerém”, tradutor de Carpe Diem para o samba: “Deixa a vida me levar, vida leva eu / Sou feliz e agradeço, por tudo que Deus me deu”.
Privilégios políticos são abraço de urso para a Igreja
Muitos se questionam por que razão a fé cristã cresce nalguns países e áreas do mundo e diminui noutros. A verdade é que o extremo desenvolvimento da ciência e da tecnologia, assim como a difusão do conhecimento e a democratização do ensino superior parecem ter concorrido para o decréscimo da influência social das igrejas cristãs. Além disso o processo de secularização e o aumento da sociedade do bem-estar nos países desenvolvidos também não serão alheios ao fenómeno. Durante muito tempo, acreditava-se que o aumento da prosperidade impediria os indivíduos de procurar um poder superior para responder às suas necessidades quotidianas, pelo que haveria uma ligação entre riqueza e ateísmo.
Porém, um estudo realizado com uma amostra global de 166 países de 2010 a 2020, revisto por pares e publicado na revista Sociology of Religion (Universidade de Oxford) desafia tais tentativas de explicação, e aponta antes para um fator aparentemente surpreendente. Afinal o que determina a vitalidade cristã nas sociedades estará relacionado com a medida em que os governos dão apoio oficial às igrejas em termos legais e políticos. Ou seja, quanto maior for esse apoio governamental mais se reduz o número de cristãos, uma relação que se mantém mesmo levando em conta as tendências demográficas gerais.
Note-se, porém, que tal apoio dos governos não deve ser confundido com liberdade religiosa ou direitos decorrentes da cidadania, mas apenas com privilégios atribuídos pelo estado às confissões.
Os autores do estudo, Nilay Saiya e Stuti Manchanda, falam em três paradoxos que ajudam a explicar o fenómeno. O primeiro é o do pluralismo. Embora em diversos setores da fé cristã se acredite que a melhor forma de ela prosperar seja a exclusão do espaço social das outras religiões, a verdade é que o cristianismo revela-se mais forte nos países em que se vê obrigado a competir com outras tradições de fé em igualdade de oportunidades. Adam Smith ajudaria a explicar o paradoxo através do exemplo da economia de mercado que estimula a competição, a inovação e o vigor entre empresas concorrentes. De igual modo seria de esperar que o mercado religioso não regulamentado tivesse efeito idêntico nas instituições religiosas. A pesquisa revela que em sete dos dez países do mundo nos quais a população cristã cresce mais rapidamente não existe praticamente apoio oficial ao cristianismo.
O segundo paradoxo é o do privilégio. Nove dos dez países que revelam o declínio mais rápido da população cristã no mundo oferecem os maiores apoios públicos às igrejas. Esses privilégios podem incluir financiamento do estado para fins religiosos, acesso especial a instituições do estado e isenções de regulamentos impostos a grupos religiosos minoritários. Portanto, se a competição entre religiões estimula a vitalidade cristã, o favoritismo estatal às igrejas compromete essa vitalidade, decerto contra a intenção dos governos.
As igrejas favorecidas podem até utilizar a sua posição de privilégio para exercer influência sobre a sociedade, mas isso apenas sucede por via de rituais e símbolos, como uma religião civil e não pelo fervor espiritual. Os casos históricos no âmbito do protestantismo são imensos na Europa, desde o Reino Unido com a Igreja de Inglaterra aos países escandinavos com o luteranismo. Mas o fenómeno verifica-se igualmente nos países de tradição católica como Portugal, Espanha, Bélgica e Itália, onde durante o século vinte os governos discriminaram ativamente os não católicos nas áreas de direito da família, radiodifusão religiosa, política tributária e educação. Coisa semelhante acontece na Rússia com a igreja ortodoxa.
O terceiro paradoxo é o da perseguição. Já no século II Tertuliano dizia que “o sangue dos mártires é a semente da igreja”. A fé cristã cresce rapidamente em diversos países muçulmanos, como o Irão e o Afeganistão, onde sofre uma perseguição duríssima. Também a China vive um crescimento exponencial. O sociólogo das religiões Fenggang Yang afirma que desde a década de 50 o cristianismo protestante cresceu 23 vezes, prevendo que em 2030 a China terá mais cristãos do que qualquer outro país no mundo e em meados do século metade da China poderá ser cristã.
É por isso que os partidos populistas de direita, apesar de alcançarem ganhos eleitorais momentâneos em nome duma defesa da “nação cristã” (resta saber o que será isso…), a prazo estarão apenas a contribuir para um declínio mais acentuado da fé na Europa.
Porém, um estudo realizado com uma amostra global de 166 países de 2010 a 2020, revisto por pares e publicado na revista Sociology of Religion (Universidade de Oxford) desafia tais tentativas de explicação, e aponta antes para um fator aparentemente surpreendente. Afinal o que determina a vitalidade cristã nas sociedades estará relacionado com a medida em que os governos dão apoio oficial às igrejas em termos legais e políticos. Ou seja, quanto maior for esse apoio governamental mais se reduz o número de cristãos, uma relação que se mantém mesmo levando em conta as tendências demográficas gerais.
Note-se, porém, que tal apoio dos governos não deve ser confundido com liberdade religiosa ou direitos decorrentes da cidadania, mas apenas com privilégios atribuídos pelo estado às confissões.
Os autores do estudo, Nilay Saiya e Stuti Manchanda, falam em três paradoxos que ajudam a explicar o fenómeno. O primeiro é o do pluralismo. Embora em diversos setores da fé cristã se acredite que a melhor forma de ela prosperar seja a exclusão do espaço social das outras religiões, a verdade é que o cristianismo revela-se mais forte nos países em que se vê obrigado a competir com outras tradições de fé em igualdade de oportunidades. Adam Smith ajudaria a explicar o paradoxo através do exemplo da economia de mercado que estimula a competição, a inovação e o vigor entre empresas concorrentes. De igual modo seria de esperar que o mercado religioso não regulamentado tivesse efeito idêntico nas instituições religiosas. A pesquisa revela que em sete dos dez países do mundo nos quais a população cristã cresce mais rapidamente não existe praticamente apoio oficial ao cristianismo.
O segundo paradoxo é o do privilégio. Nove dos dez países que revelam o declínio mais rápido da população cristã no mundo oferecem os maiores apoios públicos às igrejas. Esses privilégios podem incluir financiamento do estado para fins religiosos, acesso especial a instituições do estado e isenções de regulamentos impostos a grupos religiosos minoritários. Portanto, se a competição entre religiões estimula a vitalidade cristã, o favoritismo estatal às igrejas compromete essa vitalidade, decerto contra a intenção dos governos.
As igrejas favorecidas podem até utilizar a sua posição de privilégio para exercer influência sobre a sociedade, mas isso apenas sucede por via de rituais e símbolos, como uma religião civil e não pelo fervor espiritual. Os casos históricos no âmbito do protestantismo são imensos na Europa, desde o Reino Unido com a Igreja de Inglaterra aos países escandinavos com o luteranismo. Mas o fenómeno verifica-se igualmente nos países de tradição católica como Portugal, Espanha, Bélgica e Itália, onde durante o século vinte os governos discriminaram ativamente os não católicos nas áreas de direito da família, radiodifusão religiosa, política tributária e educação. Coisa semelhante acontece na Rússia com a igreja ortodoxa.
O terceiro paradoxo é o da perseguição. Já no século II Tertuliano dizia que “o sangue dos mártires é a semente da igreja”. A fé cristã cresce rapidamente em diversos países muçulmanos, como o Irão e o Afeganistão, onde sofre uma perseguição duríssima. Também a China vive um crescimento exponencial. O sociólogo das religiões Fenggang Yang afirma que desde a década de 50 o cristianismo protestante cresceu 23 vezes, prevendo que em 2030 a China terá mais cristãos do que qualquer outro país no mundo e em meados do século metade da China poderá ser cristã.
É por isso que os partidos populistas de direita, apesar de alcançarem ganhos eleitorais momentâneos em nome duma defesa da “nação cristã” (resta saber o que será isso…), a prazo estarão apenas a contribuir para um declínio mais acentuado da fé na Europa.
Meia-volta, volta e meia, os militares no Brasil
Civis que ocuparam o cargo de ministro da Defesa garantem que as Forças Armadas não embarcam numa aventura golpista. Eles sabem mais do que eu. No entanto tenho algumas dúvidas.
Não são dúvidas turbinadas pelo preconceito ou pelo ressentimento. Como jornalista, sempre destaquei ações positivas dos militares; no Congresso, mantive as melhores relações com assessores parlamentares das Forças Armadas, entre eles o general Villas Bôas.
Os fatos abalam qualquer certeza. Desde a não punição do general Pazuello até as recentes notícias sobre ameaças do ministro da Defesa, o curso dos acontecimentos nos leva à desconfiança. É difícil imaginar como uma sucessão de pequenas atitudes autoritárias pode conduzir a uma firme decisão democrática, no dia D e na hora H, como diz Pazuello.
Outro dia, um general ficou bravo comigo porque critiquei Pazuello por sua audácia ao assumir um cargo para o qual não tinha a mínima competência. Mencionei sua obediência cega a Bolsonaro, e o general entendeu minha crítica como uma tentativa de minar o conceito de disciplina dos militares. E disse que era capaz de matar ou morrer pela pátria.
Na verdade, peço muito menos que matar ou morrer: simplesmente pensar. Bolsonaro não merece uma obediência cega. Ninguém merece. O que está em jogo é uma noção de dignidade dos militares, discussão importante, pois, do seu prestígio, depende parcialmente a consistência da defesa nacional.
O perigoso esporte de humilhar generais, título do artigo que provocou a ira dos generais, continua a ser praticado. O general Ramos soube de sua saída da chefia da Casa Civil pela imprensa e confessou que se sentiu atropelado por um trem.
O general Mourão é enviado numa missão a Angola para defender, em nome do Brasil, a política da Igreja Universal do Reino de Deus. Isso não é política de Estado, e a tarefa não deveria ser aceita por um general.
Tenho muita tranquilidade em discutir o conceito de obediência na política. Não acho que seja uma extensão do conceito de disciplina militar. Nisso, sempre discordarei dos generais da direita, assim como discordei dos generais da esquerda nos longos debates sobre o chamado centralismo democrático.
O melhor instrumento que a sociedade tem para tratar da questão militar que aparece volta e meia é precisamente determinar uma meia-volta: aprovar o projeto que impede militares da ativa de ocupar cargos civis no governo. Votar logo essa proposta de voto impresso, decidir democraticamente se o teremos ou não.
Isso não basta. Concordo com o ex-ministro da Defesa Raul Jungmann: o Congresso é omisso ao não discutir os grandes temas da defesa nacional. A omissão dos parlamentares passa aos militares uma sensação de irresponsabilidade ou mesmo de ignorância em relação à dimensão do tema. Impede que a variável ambiental tenha a importância estratégica que merece, atrasa uma solução negociada para o futuro da Amazônia.
A fragilidade da representação política contribui também para que os militares tenham uma visão resignada do Congresso. Nos Anos de Chumbo, seus aliados eram da Arena, partido dos coronéis nordestinos; na eleição indireta à Presidência, o candidato dos militares era Paulo Maluf.
Não me espanta que o governo atual tenha se transformado numa associação entre militares e o Centrão. A escolha ideológica sempre foi mais importante que uma sempre anunciada recusa à corrupção.
Durante a Guerra Fria, a ideia de se unir com qualquer um para evitar o comunismo tinha um poder maior de atração. De lá para cá, a sociedade brasileira evoluiu, o comunismo fracassou, apesar da sobrevivência autoritária do PC chinês.
Resistir aos impulsos autoritários de Bolsonaro dará à sociedade brasileira mais força contra qualquer nova ameaça aos fundamentos da democracia. O argumento ganha um peso maior se for aceito pelos militares. Ele é a base real da conciliação.
Fernando Gabeira
Não são dúvidas turbinadas pelo preconceito ou pelo ressentimento. Como jornalista, sempre destaquei ações positivas dos militares; no Congresso, mantive as melhores relações com assessores parlamentares das Forças Armadas, entre eles o general Villas Bôas.
Os fatos abalam qualquer certeza. Desde a não punição do general Pazuello até as recentes notícias sobre ameaças do ministro da Defesa, o curso dos acontecimentos nos leva à desconfiança. É difícil imaginar como uma sucessão de pequenas atitudes autoritárias pode conduzir a uma firme decisão democrática, no dia D e na hora H, como diz Pazuello.
Outro dia, um general ficou bravo comigo porque critiquei Pazuello por sua audácia ao assumir um cargo para o qual não tinha a mínima competência. Mencionei sua obediência cega a Bolsonaro, e o general entendeu minha crítica como uma tentativa de minar o conceito de disciplina dos militares. E disse que era capaz de matar ou morrer pela pátria.
Na verdade, peço muito menos que matar ou morrer: simplesmente pensar. Bolsonaro não merece uma obediência cega. Ninguém merece. O que está em jogo é uma noção de dignidade dos militares, discussão importante, pois, do seu prestígio, depende parcialmente a consistência da defesa nacional.
O perigoso esporte de humilhar generais, título do artigo que provocou a ira dos generais, continua a ser praticado. O general Ramos soube de sua saída da chefia da Casa Civil pela imprensa e confessou que se sentiu atropelado por um trem.
O general Mourão é enviado numa missão a Angola para defender, em nome do Brasil, a política da Igreja Universal do Reino de Deus. Isso não é política de Estado, e a tarefa não deveria ser aceita por um general.
Tenho muita tranquilidade em discutir o conceito de obediência na política. Não acho que seja uma extensão do conceito de disciplina militar. Nisso, sempre discordarei dos generais da direita, assim como discordei dos generais da esquerda nos longos debates sobre o chamado centralismo democrático.
O melhor instrumento que a sociedade tem para tratar da questão militar que aparece volta e meia é precisamente determinar uma meia-volta: aprovar o projeto que impede militares da ativa de ocupar cargos civis no governo. Votar logo essa proposta de voto impresso, decidir democraticamente se o teremos ou não.
Isso não basta. Concordo com o ex-ministro da Defesa Raul Jungmann: o Congresso é omisso ao não discutir os grandes temas da defesa nacional. A omissão dos parlamentares passa aos militares uma sensação de irresponsabilidade ou mesmo de ignorância em relação à dimensão do tema. Impede que a variável ambiental tenha a importância estratégica que merece, atrasa uma solução negociada para o futuro da Amazônia.
A fragilidade da representação política contribui também para que os militares tenham uma visão resignada do Congresso. Nos Anos de Chumbo, seus aliados eram da Arena, partido dos coronéis nordestinos; na eleição indireta à Presidência, o candidato dos militares era Paulo Maluf.
Não me espanta que o governo atual tenha se transformado numa associação entre militares e o Centrão. A escolha ideológica sempre foi mais importante que uma sempre anunciada recusa à corrupção.
Durante a Guerra Fria, a ideia de se unir com qualquer um para evitar o comunismo tinha um poder maior de atração. De lá para cá, a sociedade brasileira evoluiu, o comunismo fracassou, apesar da sobrevivência autoritária do PC chinês.
Resistir aos impulsos autoritários de Bolsonaro dará à sociedade brasileira mais força contra qualquer nova ameaça aos fundamentos da democracia. O argumento ganha um peso maior se for aceito pelos militares. Ele é a base real da conciliação.
Fernando Gabeira
Ossos de boi, arroz e feijão quebrado formam cardápio de um Brasil que empobrece
Em Cuiabá, a capital de Mato Grosso e do milionário agronegócio brasileiro, uma fila se forma na rua lateral do Atacadão da Carne antes das 9h desta quarta-feira. O açougue é conhecido pelo preço “mais em conta”. Mas na última semana ganhou uma involuntária fama nacional justamente por causa dessa fila, onde centenas de pessoas esperam horas debaixo do sol quente, sentados na calçada, até que uma porta lateral se abra às 11h e um funcionário comece a distribuição do que restou da desossa do boi. São, de fato, ossos com resquícios da carne vendida e que servem de uma improvisada fonte de proteína da população mais humilde. “É a maior felicidade a gente conseguir um ossinho aqui, porque está feia a crise! Eu estou desempregado e não tem para onde a gente recorrer. Faz tempo que eu não como carne, se não fosse o ossinho. Tudo está caro!”, conta Joacil Romão da Silva, de 57 anos.
A pandemia de coronavírus aprofundou ainda mais a situação precária vivida por milhões de brasileiros. O desemprego aumentou, os preços subiram e a fome explodiu. São mais de 19 milhões de brasileiros passando fome, segundo a última pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN). Em 2018, eram 10,3 milhões. A perda de poder aquisitivo deixou, ainda, mais da metade do Brasil sem acesso pleno e permanente a alimentos. São 116,8 milhões de brasileiros (55,2% da população) que não necessariamente comem as três refeições por dia (insegurança alimentar). Três anos atrás, o IBGE registrava 36,7% da população nesse status, o que já era alto em comparação com 2013: 22,9%.
A ação do açougue de Cuiabá já ocorre há mais de 10 anos. Mas, antes da pandemia, a fila reunia entre 20 e 30 pessoas, segundo Edivaldo Oliveira, de 58 anos, dono do local. “Agora, triplicou ou mais. Hoje são 200 pessoas. Estamos com dificuldade para atender e a gente está se esforçando ao máximo. Mas é muita gente mesmo”, conta. Os sinais de desarranjo estão por toda parte. Nos preços, que saltaram 15,3% entre julho de 2020 e junho 2021 somente no caso dos alimentos (IPCA). No alto desemprego, que já atinge cerca de 15 milhões de pessoas no Brasil. No aumento da população morando nas ruas e nas filas de doação de marmita vista em qualquer ponto de São Paulo.
Os supermercados já oferecem opções mais baratas inclusive para substituir o arroz e o feijão, os dois principais alimentos da dieta brasileira. Um pacote de cinco quilos de arroz ficou 48% mais caro no último ano e pode chegar a 30 reais em alguns locais. Assim, algumas marcas oferecem nos supermercados os chamados “fragmentos de arroz”, opção mais barata, por vezes usada como ração para animais. Uma das empresas que passou a oferecer é a Rampinelli, que colocou esse produto no cardápio em 2016. Os mercados também já têm disponível a “bandinha de feijão” —feijão quebrado. O preço do feijão preto subiu 22% no último ano e o pacote de um quilo chega a custar 10 reais em alguns supermercados, enquanto que as bandinhas de feijão valem metade do preço.
Ana Paula dos Anjos, de 38 anos, também busca ajuda no Atacadão da Carne. O preço do alimento subiu 38% no último ano. Além disso, ela conta que há um ano e dois meses está afastada do trabalho por causa de um acidente que sofreu na empresa. Sem assistência do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e sem auxílio da empregadora, virou rotina frequentar a fila em busca de doação. “Estou me virando, passando por necessidade. Sou eu quem sustento a casa e muitas vezes deixo de comer para alimentar meus filhos. Três vezes na semana estou aqui”, conta ela, que cuida dos quatro filhos sozinha. “Meus filhos choram querendo as coisas para comer e o jeito é pedir ajuda.”
Além de recorrer ao Atacadão da Carne para a alimentação diária, Celina Mota, de 56 anos, também consegue no mercadinho do bairro legumes e frutas que não foram vendidos e seriam descartados. “Conversei com o rapaz lá e ele me arranjou essas verduras, que eu cozinho um pedaço a cada dia. Com os ossinhos vai ajudar. Dá para ir vivendo”, garante ela, que também está desempregada. É com a ajuda que recebe que ainda consegue alimentar os netos. “Eu faço ensopado, frito, corto tudinho e congelo para ir comendo durante a semana. E assim vou me virando”, complementa, mostrando tomates, banana e batata doce que conseguiu arrecadar.
O açougue não atende somente pessoas dos bairros periféricos da região. De acordo com Edvaldo Oliveira, o dono do local, já houve registro de pessoas de cidades vizinhas enfrentando a chamada “fila dos ossinhos”. “Eu vejo que a fome e a necessidade dessas pessoas são muito grandes. Para pegar uma sacolinha de um quilo ou um quilo e meio de ossinho, elas chegam antes das 9h e ficam às vezes até 13h esperando. E elas são gratas por isso, por algo que as pessoas que têm mais estabilidade não dão valor algum”, comenta. A esposa do comerciante, Samara Oliveira, de 38 anos, espera que a exposição que o açougue ganhou inspire outros empresários a serem solidários. “Não é só de carne que eles precisam, eles precisam de arroz, feijão, precisam de uma farmácia que venha aqui ajudar com remédios, de roupas. É um ‘oi, como vai, você está bem?’”, afirma.
A fila tornou-se um ícone da pobreza do Brasil de hoje e foi noticiado em todo o país. Gente, como Gustavo da Silva Costa, de 25 anos, se solidarizou e levou mais de 20 quilos de frango para doar. “É uma quantidade que, infelizmente, foi pouco devido à quantidade de pessoas aqui”, afirma. A distribuição dos frangos não demorou nem um minuto, as pessoas correram até onde o rapaz estava para receber um pacote. “Eu vi uma reportagem e decidi ajudar. Muita gente pode somar e ajudar essas pessoas, que realmente precisam. No mercado de trabalho, infelizmente, não tem mais oportunidades”, afirma o motoboy.
A pandemia de coronavírus aprofundou ainda mais a situação precária vivida por milhões de brasileiros. O desemprego aumentou, os preços subiram e a fome explodiu. São mais de 19 milhões de brasileiros passando fome, segundo a última pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN). Em 2018, eram 10,3 milhões. A perda de poder aquisitivo deixou, ainda, mais da metade do Brasil sem acesso pleno e permanente a alimentos. São 116,8 milhões de brasileiros (55,2% da população) que não necessariamente comem as três refeições por dia (insegurança alimentar). Três anos atrás, o IBGE registrava 36,7% da população nesse status, o que já era alto em comparação com 2013: 22,9%.
A ação do açougue de Cuiabá já ocorre há mais de 10 anos. Mas, antes da pandemia, a fila reunia entre 20 e 30 pessoas, segundo Edivaldo Oliveira, de 58 anos, dono do local. “Agora, triplicou ou mais. Hoje são 200 pessoas. Estamos com dificuldade para atender e a gente está se esforçando ao máximo. Mas é muita gente mesmo”, conta. Os sinais de desarranjo estão por toda parte. Nos preços, que saltaram 15,3% entre julho de 2020 e junho 2021 somente no caso dos alimentos (IPCA). No alto desemprego, que já atinge cerca de 15 milhões de pessoas no Brasil. No aumento da população morando nas ruas e nas filas de doação de marmita vista em qualquer ponto de São Paulo.
Os supermercados já oferecem opções mais baratas inclusive para substituir o arroz e o feijão, os dois principais alimentos da dieta brasileira. Um pacote de cinco quilos de arroz ficou 48% mais caro no último ano e pode chegar a 30 reais em alguns locais. Assim, algumas marcas oferecem nos supermercados os chamados “fragmentos de arroz”, opção mais barata, por vezes usada como ração para animais. Uma das empresas que passou a oferecer é a Rampinelli, que colocou esse produto no cardápio em 2016. Os mercados também já têm disponível a “bandinha de feijão” —feijão quebrado. O preço do feijão preto subiu 22% no último ano e o pacote de um quilo chega a custar 10 reais em alguns supermercados, enquanto que as bandinhas de feijão valem metade do preço.
Ana Paula dos Anjos, de 38 anos, também busca ajuda no Atacadão da Carne. O preço do alimento subiu 38% no último ano. Além disso, ela conta que há um ano e dois meses está afastada do trabalho por causa de um acidente que sofreu na empresa. Sem assistência do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e sem auxílio da empregadora, virou rotina frequentar a fila em busca de doação. “Estou me virando, passando por necessidade. Sou eu quem sustento a casa e muitas vezes deixo de comer para alimentar meus filhos. Três vezes na semana estou aqui”, conta ela, que cuida dos quatro filhos sozinha. “Meus filhos choram querendo as coisas para comer e o jeito é pedir ajuda.”
Além de recorrer ao Atacadão da Carne para a alimentação diária, Celina Mota, de 56 anos, também consegue no mercadinho do bairro legumes e frutas que não foram vendidos e seriam descartados. “Conversei com o rapaz lá e ele me arranjou essas verduras, que eu cozinho um pedaço a cada dia. Com os ossinhos vai ajudar. Dá para ir vivendo”, garante ela, que também está desempregada. É com a ajuda que recebe que ainda consegue alimentar os netos. “Eu faço ensopado, frito, corto tudinho e congelo para ir comendo durante a semana. E assim vou me virando”, complementa, mostrando tomates, banana e batata doce que conseguiu arrecadar.
O açougue não atende somente pessoas dos bairros periféricos da região. De acordo com Edvaldo Oliveira, o dono do local, já houve registro de pessoas de cidades vizinhas enfrentando a chamada “fila dos ossinhos”. “Eu vejo que a fome e a necessidade dessas pessoas são muito grandes. Para pegar uma sacolinha de um quilo ou um quilo e meio de ossinho, elas chegam antes das 9h e ficam às vezes até 13h esperando. E elas são gratas por isso, por algo que as pessoas que têm mais estabilidade não dão valor algum”, comenta. A esposa do comerciante, Samara Oliveira, de 38 anos, espera que a exposição que o açougue ganhou inspire outros empresários a serem solidários. “Não é só de carne que eles precisam, eles precisam de arroz, feijão, precisam de uma farmácia que venha aqui ajudar com remédios, de roupas. É um ‘oi, como vai, você está bem?’”, afirma.
A fila tornou-se um ícone da pobreza do Brasil de hoje e foi noticiado em todo o país. Gente, como Gustavo da Silva Costa, de 25 anos, se solidarizou e levou mais de 20 quilos de frango para doar. “É uma quantidade que, infelizmente, foi pouco devido à quantidade de pessoas aqui”, afirma. A distribuição dos frangos não demorou nem um minuto, as pessoas correram até onde o rapaz estava para receber um pacote. “Eu vi uma reportagem e decidi ajudar. Muita gente pode somar e ajudar essas pessoas, que realmente precisam. No mercado de trabalho, infelizmente, não tem mais oportunidades”, afirma o motoboy.
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