sexta-feira, 31 de maio de 2019

Uma comédia de ministro

Não fosse incompetente para o cargo que ocupa, nem fizesse tanto mal a professores, alunos e, por tabela, aos seus pais, do ministro Abraham Weintraub, da Educação, até se poderia dizer que é um bom e surpreendente piadista. Ou uma comédia de ministro.

A última dele foi gravar um vídeo imitando o ator Gene Kelly, protagonista de um dos mais famosos musicais de todos os tempos, “Singin In The Rain” (Cantando na Chuva), para desmentir que cortara o dinheiro que serviria à reconstrução do Museu Nacional.

Ao som da música composta por Arthur Freed e Nacio Herb Brown, portando um guarda-chuva, Weintraub entra em cena dançando no seu gabinete, olha para a câmera e dá o seu recado. Culpa deputados pela falta da grana. Foi engraçado, mas não convincente.


Os números vividos por ele antes despertaram menos risos. No primeiro, Weintraub reuniu 100 chocolates sobre uma mesa para explicar o corte de 30% na verba para as universidades. Na ocasião, quem fez sucesso foi Bolsonaro ao comer metade de um chocolate.

No número seguinte, o ministro chamou o escritor polonês Franz Kafka, autor de “A Metamorfose”, de Kafta, uma iguaria árabe. Depois, para justificar as notas baixas que tirou como estudante gravou um vídeo mostrando uma cicatriz no ombro direito.

O expediente de Weintraub, ontem, poderia ter terminado sem que ele tivesse praticado mais uma maldade: soltou uma nota incentivando pais de alunos a denunciarem professores de escolas e universidades que estimulem manifestações políticas.

"O MEC está fazendo um esforço muito grande para que o ambiente escolar não seja prejudicado por uma guerra ideológica”, afirmou Weintraub. Ora. Ninguém mais do que ele anima a guerra ideológica no país. Talvez só Bolsonaro. Arriscam-se a dançar.

Natureza, capital nacional e da humanidade

Absoluta na Pré-História, ainda grande – pequena nunca será –, a natureza foi e continuará sendo o alicerce das civilizações. Essa dependência é inexorável e atemporal.

No passado, quando a população do mundo era fração da atual – um décimo há apenas três séculos –, não se pensava em razões que justificassem preocupação. A destruição das florestas da Europa reflete essa visão negligente, compreensível naquela época. Mas as necessidades da população hoje já imensa e crescendo, dia a dia mais consumista, recomendam a inclusão da proteção na moldura legal reguladora do uso da natureza, formulada pelos Estados. E a natureza e suas manifestações (clima, meteorologia... ) não respeitam fronteiras: a proteção deve atentar também para o preceituado em acordos supranacionais que visam o interesse da humanidade, imediato e no maior prazo – atenção comumente em conflito com o nacionalismo exacerbado e o conceito de soberania.

Como o Brasil vem se conduzindo nesse contexto?


Nossos macrociclos econômicos, que se deram em épocas de despreocupação com a natureza, aqui e no mundo, implicaram custos cobrados a ela. O ciclo do açúcar devassou grande de parte da Mata Atlântica no Nordeste. O do ouro exauriu as jazidas do Centro-Oeste. No Brasil já independente, o do café foi menos agressivo, mas também sacrificou áreas da Mata Atlântica no Sudeste – é bem verdade que com excelente contribuição para o desenvolvimento do País. O breve ciclo da borracha foi um caso singular: ocorreu sem agressão sensível à Floresta Amazônica e, como o transporte era essencialmente fluvial, não houve abertura de estradas, as quais incentivam a ocupação desordenada e predatória.

Precisamos rever e ajustar à realidade hoje reconhecida a cultura de descaso pela natureza, que contaminou por séculos (e ainda resiste, embora sujeita a alguma contestação) nossa atividade econômica dependente do exuberante capital natural brasileiro. Vivemos atualmente duas questões que complicam essa correção:

1) A excelente participação agropecuária na nossa economia induz pressão por mais território, atendida principalmente pelo desmatamento, nem sempre criterioso, quando não ilegal. Se a ciência e a realidade confirmarem (estão confirmando) a influência do desmatamento no clima global, o que substituirá as florestas destruídas? A expansão agropecuária e a exploração da madeira, comumente irregular e naturalmente predadora, inspiram preocupação.

2) A exploração do capital não renovável é influência positiva relevante na nossa agenda de exportação, em realce hoje o ferro, mas vem causando problemas, até dramáticos, como foi a ruptura das represas em Mariana e Brumadinho. E a exploração do ouro, hoje sem peso expressivo, tem criado garimpos clandestinos e predatórios em regiões remotas (frequentemente áreas de proteção ambiental) e alimenta o comércio ilegal.

Esses problemas só terão solução quando encontrarmos o equilíbrio sensato e responsável entre, de um lado, o desenvolvimento do País, as necessidades da população brasileira e a nossa contribuição às da população global – o lucro da agropecuária, desde que em limites ponderados, incide no equilíbrio – e, de outro, a proteção da natureza, a segurança da continuidade da sua contribuição por milênios à frente.

Precisamos desenvolver tecnologia e procedimentos que aumentem a produtividade e permitam moderar, sem prejudicar a população, o uso do capital renovável, até porque sua renovação, em tese sempre viável, pode ser política e/ou tecnicamente difícil e cara. A Embrapa é agente importante nesse processo, mas a rentabilidade da agropecuária justifica participação privada.

Quanto ao capital natural não renovável, importam essencialmente as inovações que reduzam seu consumo (no mundo). No maior prazo serão imprescindíveis as que o substituam pelo renovável – a exemplo da substituição do petróleo pelo vento e pelo sol na geração de energia elétrica, já em curso, mas ainda modesta. Outras inovações desse tipo virão (estão acontecendo) se houver pesquisa e desenvolvimento tecnológico adequados – tema em que desponta Israel, país sem petróleo e sem rios com potencial hidrelétrico, mas competente no desenvolvimento tecnológico.

Vivemos no passado recente uma tentativa de revisão do paradigma de desenvolvimento da Amazônia: no início dos 1990 a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, dirigida pelo visionário Eliezer Batista, deslanchou um projeto de levantamento ecológico-econômico que pretendia identificar a(s) atividade(s) econômica(s) ecologicamente menos agressiva(s) nas sub-regiões amazônicas. O apoio público (infraestrutura, BNDES, Banco do Brasil, exonerações...) passaria a considerar a coerência entre empreendimento econômico e vocação regional; já a incompatibilidade justificaria restrições. O projeto não prosperou.

Projetos e inovações inspirados em pesquisas de nossos vários ecossistemas (pesquisas de campo) e em laboratórios, que visem a orientar políticas e procedimentos úteis ao uso sensato e à proteção do capital natural, serão, evidentemente, bem-vindos. É possível? Difíceis na atual conjuntura, em que o tema ecologia é visto como secundário, quando não atentatório à soberania nacional, e chega a ser associado à ideia de complô global, os judeus dos “Protocolos dos Sábios do Sião” substituídos pela ideologia política. Difíceis enquanto persistir a cultura interesseira que vê como inesgotável nosso capital natural e como irrelevante seu uso desordenado. Difíceis na conjuntura fiscal em que recursos para pesquisas vêm sendo reduzidos – redução compreensível no atual quadro de ameaça econômica apocalíptica, mas lastimável sob a perspectiva do Brasil como país capaz de se afirmar no cenário internacional usando responsavelmente seu imenso capital natural.

Bolsonaro é inteligente?

Bolsonaro, afinal, é inteligente ou não? Ele estabelece objetivos e se vale de uma estratégia pensada para alcançá-los ou apenas vai se posicionando meio caoticamente diante das questões que se lhe apresentam? As opiniões se dividem.

Um bom argumento pró-inteligência é o de que ele venceu a eleição mais disputada do país. Velhas raposas da política, algumas com lustrosos títulos acadêmicos, já tentaram e fracassaram.

Admito que o presidente fez coisas certas durante a campanha, mas desconfio um pouco do uso de resultados discretos como métrica de capacidades individuais. O acaso e outras forças que não controlamos são muito mais decisivos para o desfecho de eventos do que nossas mentes fascinadas por comando estão prontas a admitir.

No caso em tela, não me parece despropositado afirmar que, em 2018, o que vimos foi mais o PT perdendo a eleição do que algum candidato a vencendo. Bolsonaro beneficiou-se de ter a imagem de ser o que de mais afastado do PT existia, além de, devido à facada, ter sido poupado de apresentar suas ideias e submetê-las a escrutínio.

Já os que advogam pela vacuidade presidencial apontam como prova principal a gratuidade das polêmicas em que ele se envolve. Via de regra, são questiúnculas com as quais ele tem pouco a ganhar e muito a perder.

Concordo em parte. A desnecessidade dos ataques bolsonaristas é de fato chocante, mas os defensores da hipótese de vida inteligente têm uma resposta fácil: a aparente superfluidade é parte da estratégia; o presidente é tão inteligente que está sempre alguns lances à frente dos que tentam interpretá-lo. Até que surja um momento no qual se possa carimbar o governo como definitivamente fracassado, não há como refutar essa possibilidade.

Isso vale só no plano teórico. No mundo real, quando vejo os despautérios presidenciais, fica difícil acreditar que sejam mais do que simples despautérios.

Banho de água fria

A expectativa de que esta fosse a melhor semana do presidente Jair Bolsonaro, em seus cinco meses de governo, ruiu ontem com o anúncio do PIB negativo e o despertar de um velho ator da política brasileira: a estudantada. Uma nova fase de recessão entrou no radar e o bolsonarismo conseguiu acionar o antibolsonarismo.

Desde as manifestações de domingo a seu favor, Bolsonaro andava saltitante e feliz. Propôs um “pacto” ao Legislativo e ao Judiciário (aliás, alvos dos atos bolsonaristas), aprovou sem dificuldade a MP que reformou a Esplanada dos Ministérios e foi a pé, simpaticamente, ao Congresso.

Dizem que “alegria de pobre dura pouco”, mas, desta vez, foi a alegria do presidente que durou apenas três dias. Já na quinta-feira, o desânimo voltou a turvar o ambiente político, econômico e, consequentemente, social. Agora, com uma novidade: o intocável Paulo Guedes começa a ser arranhado. Só a promessa de reforma da Previdência não está mais dando para o gasto.


A queda de 0,2% do PIB no primeiro trimestre não surpreendeu o mercado, mas contém alguns dados de doer. Foi o primeiro recuo desde 2016 e escancarou a dificuldade do País em garantir investimento. Por quê? Porque os erros políticos do governo Bolsonaro afetam a confiança e a economia. Quem investe num ambiente desses, cheio de trapalhadas e incógnitas?

Um dos erros é provocar, sistematicamente, um setor com alto poder de mobilização, a educação. O primeiro ministro, Vélez Rodríguez, foi engolido por um redemoinho ideológico. O segundo, Abraham Weintraub, já assumiu cutucando a onça com vara curta.

Ambos veem esquerdistas por todos os lados, mas Weintraub foi das palavras aos atos, com cortes no orçamento das universidades, desdém pela área de Humanas e redução das pesquisas (sem falar na desconfiança de órgãos de excelência como IBGE e Fiocruz, que têm fortes laços com a academia). De tanto insistir, o governo conseguiu devolver os estudantes às ruas, depois de anos e anos de preguiça, leniência e alegre promiscuidade da UNE com o poder na era PT.

Bolsonaro teve uma inegável vitória com as manifestações de domingo. Agora, está zero a zero. Os atos a favor dele tinham pauta genérica, com público aberto, e os de ontem tinham foco específico, reunindo estudantes, professores e suas famílias, mas também ocorreram em todos os Estados e no DF. Fazendo as contas, o resultado é que os times entraram em campo e não vão sair tão cedo. É bom para o governo ter “povo” nas ruas o tempo todo? Difícil achar que sim.

Foi embalado pelo apoio de domingo que o presidente resgatou a proposta de um “pacto nacional” feita pelo presidente do Supremo, Dias Toffoli. Fala-se em pacto quando o ambiente político e econômico não é bom, recorre-se à “governabilidade” e o grande beneficiário é sempre o mesmo: o presidente da República.

Todos os presidentes pós-redemocratização tentaram articular em algum momento um pacto em torno de si, mas o único grande pacto realmente efetivo no País foi o governo Itamar Franco, na base do “quem pariu Mateus que o embale”. Todas as forças políticas relevantes, exceto o PT, cumpriram o compromisso de garantir uma travessia tranquila de dois anos após o impeachment/renúncia de Collor.

Para qualquer pacto é preciso uma disposição de acertar e de somar, não dividir. Se a previsão do PIB cai pela 13.ª semana, a sensação é de que o governo não está acertando. E os atos de ontem funcionam como um banho de água fria. Os bolsonaristas vão ter de fazer muita manifestação para tentar reverter o desânimo, mas nem eles nem Paulo Guedes podem tudo. O presidente precisa dar uma forcinha.

No céu do Brasil

Luc Descheemaeker

Ruas, corredores e gabinetes

Vivemos um momento de manifestações, de um lado e de outro, até com a velha disputa: a minha é maior que a sua. Não sou teórico no assunto, mas o fato de ter vivido muitas manifestações ao longo de 60 anos me autoriza a especular sobre elas de modo geral.

Para começar, sei que observadores de fora sempre são vistos com desconfiança. Há uma constante tensão entre manifestações e os modos de calcular seu alcance: técnicas aritméticas de contá-las, diferenças entre o que viram os manifestantes e a PM, os cálculos nunca coincidem. Enfim uma constante sensação de que os movimentos não foram devidamente reconhecidos.

Falando sobre o falso dilema entre governar com conchavos e obter o que o governo quer apenas com pressão popular, ouvi de uma leitora que estava equivocado. Ela parou de ler o texto supondo que condenaria as manifestações pró-governo. Pena, porque alguns parágrafos adiante descrevia as condições em que essas manifestações são perfeitamente possíveis: quando há convergência de propósitos entre manifestantes e governos, um momento em que é preciso mostrar a demanda social por um tema em debate.

Manifestar-se, para mim, é uma forma de autoexpressão válida em si. Jamais analiso as manifestações apenas por seu tamanho. Existem outros critérios decisivos. Até que ponto elas transcendem a pura autoexpressão e contribuem para a solução real do problema?



Neste último caso, elas são medidas por seu grau de eficiência. E isso não depende apenas dos manifestantes, mas de como as forças políticas que eles apoiam vão aproveitar seu impulso positivo.

Tanto nas manifestações pró-governo como nas contrárias a ele procuro encontrar essa lógica. Um pouco como no futebol: a equipe cria condições de gol, mas são os atacantes, em geral, que o completam. Nas manifestações pelas reformas era de esperar que, dentro das instituições, as aspirações coincidentes fossem levadas adiante.

Bolsonaro deu um passo, parecendo compreender a complementaridade política-manifestantes: a assinatura de um pacto com o Congresso e o STF. Acho o pacto inócuo. Não exclui as negociações específicas para que as pautas de reforma caminhem, o que significa obter de fato os votos necessários à sua aprovação.

No caso do Coaf nas mãos de Sergio Moro, houve um curto-circuito entre o que as pessoas pediam nas ruas e alguns políticos do governo prometiam. A realidade é que os prazos e ritos parlamentares tornariam muito arriscado devolver o Coaf ao Ministério da Justiça. Era possível perder toda a reforma do Ministério apenas para salvar um aspecto dela.

Em outro plano, as manifestações pela educação são ainda defensivas. Trata-se de não perder verbas essenciais para seu funcionamento. Mas um tema dessa dimensão para o País sempre se alarga quando entra em debate.

Não se trata apenas de verbas, mas da necessidade de manter a educação no topo da agenda. Nesse caso, cabe uma questão básica: estamos satisfeitos com a qualidade da educação? Como virar esse jogo?

Manifestantes trazem calor, despertam a esperança de uma grande ação para valorizar realmente esse tema no Brasil. Mas quem pode utilizar esse impulso são os grupos políticos.

A oposição apoia o que acontece nas ruas, mas não propõe ainda uma saída. Os dois ministros da Educação que vi passar pelo Congresso foram questionados sobre um plano estratégico. Não tinham. Senti que alguns deputados se contentaram em mostrar que a discussão, da parte do governo, está limitada ao marxismo cultural e ao método Paulo Freire. Não há ao menos um esboço do que deve ser feito nessa frente, a partir do olhar da oposição.

São espaços abertos. Assim como o governo, fortalecido com as manifestações, precisa aprimorar seus métodos de negociação para conseguir as reformas, a oposição será forçada a pensar o tema educacional com mais amplitude. E tentar algumas vitórias.

Quando as equipes jogarem com um mínimo de coordenação entre rua e Parlamento, o ritmo político no Brasil deixará de ser erradio e ineficaz.

A sociedade está dando régua e compasso. Apoiar uma ou outra manifestação, tirar selfies e louvá-las nas redes e mesmo votar de acordo com o prometido não basta. É preciso algo mais que demonstrações isoladas.

É possível argumentar que essa sintonia entre ruas e Parlamentos deveria ser pensada por partidos. Mas a verdade é que eles não existem como intérpretes e realizadores das aspirações. Em ambos os casos, nas reformas e na educação, será preciso criar frentes suprapartidárias para responder com algo mais profundo que um simples tapa nas costas ou um like nas redes sociais.

Possivelmente ainda encontraremos nas ruas grupos antidemocráticos nas suas propostas, como o fechamento do Congresso, ou mesmo na prática, como a violência ou o vandalismo. Essas forças ainda são minoritárias e insignificantes. Mas o que as alimenta é precisamente a ideia de que as manifestações não mudam nada.

Se houver sintonia entre instituições e as ruas, resultados práticos, a tendência é de manifestações cada vez mais pacíficas. E talvez menos frequentes.

Ser parlamentar com as ruas constantemente cheias é uma experiência interessante. Não há o que temer, apenas vislumbrar a oportunidade histórica que não tiveram mandatos em fases de indiferença.

Ali dentro do Parlamento, sozinho ninguém avança. O passo é descobrir quem está percebendo a mesma realidade ou vivendo a mesma ilusão. Só a prática vai mostrar.

Tudo isso acontece num momento difícil. Índices de crescimento baixos, perigo de recessão, gastos nas alturas. O governo depende de um crédito suplementar de R$ 249 bilhões. Isso dá à palavra experiência um interessante sotaque chinês da velha maldição: que vivam tempos interessantes.

Não há narrativa crível de aprovação da Previdência

Incutir no país o senso de urgência requerido para que a reforma da Previdência seja aprovada tem sido o grande desafio da equipe econômica do governo. E é natural que a campanha de persuasão tenha exigido certo grau de atemorização da opinião pública e do Congresso com as perspectivas desoladoras com que se defrontará o país, caso uma reforma abrangente, com potência fiscal adequada, se mostre, afinal, inviável.

Ao dar força redobrada à campanha conduzida pela equipe econômica do governo anterior, Paulo Guedes vem obrigando o país a fazer uma reflexão incômoda, procrastinada há décadas, sobre a insustentabilidade do quadro fiscal. E é inegável que boa parte da quebra de resistência à reforma adveio da disseminação de uma compreensão mais clara do que poderá ocorrer, caso os gastos previdenciários não possam ser contidos.


A esta altura do jogo, contudo, seria um erro supor que o segredo da viabilização de uma reforma da Previdência com potência fiscal adequada seja nova escalada de atemorização do país com cenários de fiasco da reforma. De um lado, há boas razões para crer que a tática de amedrontamento já tenha passado do ponto. Que seus efeitos colaterais já a tornaram disfuncional. De outro, parece claro que o verdadeiro entrave remanescente à aprovação da reforma não será removido pela aterrorização da opinião pública com os possíveis desdobramentos da não aprovação.

Na sexta-feira passada, o país foi alvoroçado pela divulgação de uma entrevista de Paulo Guedes à revista “Veja”. Tendo alertado que “se não fizermos a reforma, o Brasil pega fogo”, o ministro ameaçou: “Se só eu quero a reforma, vou embora para a casa... pego o avião e vou morar lá fora”. As reações de Bolsonaro não tardaram. De início, em tom defensivo: “Paulo Guedes está no direito dele. Ninguém é obrigado a ficar como ministro meu.” E, em seguida, fazendo coro com Guedes: “Se for uma reforminha ou não tiver reforma, não precisa mais de ministro da Economia, porque o Brasil pode entrar em um caos econômico. Ele vai ter que ir para a praia, vai fazer o que em Brasília?” (O GLOBO, 25/5)

Não se sabe que propósito podem ter tido explicitações tão espalhafatosas da extensão da insegurança do governo com a aprovação da reforma. Certamente não ajudaram a torná-la mais provável. Mas seus efeitos colaterais danosos saltam aos olhos. Ao brandir a iminência do caos, ajudaram a atrofiar ainda mais o que restava do já raquítico crescimento da economia.

Levará algum tempo até que se possa entender com clareza por que o círculo virtuoso de recuperação da economia, antevisto no início do ano, se mostrou tão decepcionante. Mas, entre as possíveis explicações, não poderá deixar de constar o efeito deletério da atemorização exagerada do país a que o governo recorreu, para viabilizar a reforma da Previdência. Não tendo conseguido produzir uma narrativa crível de aprovação da reforma, o governo tentou compensar essa falha com uma atemorização desmesurada, que teve impacto devastador sobre decisões de investimento.

E por que o governo não conseguiu produzir uma narrativa crível? Porque não teve como explicar como seria contornado o verdadeiro entrave à aprovação da reforma. A principal dificuldade que vem sendo enfrentada pela reforma não advém mais da falta de senso de urgência da opinião pública e do Congresso e, sim, da gritante incapacidade do governo de mobilizar o vasto apoio parlamentar de centro direita com que poderia contar.

Bolsonaro ainda não conseguiu entender que, no Brasil, presidencialismo de coalizão não é opção. E, sim, a única forma possível de governar o país. É esta falha de entendimento que tem impedido o governo de construir uma narrativa crível de aprovação da reforma da Previdência.

Não adianta tentar compensar essa deficiência com uma escalada de aterrorização da opinião pública, dos investidores e do Congresso. Quem tem de ser assombrado com o espectro de uma reforma pífia é o próprio Bolsonaro. E é melhor que seja atemorizado intramuros. Não em público.

Weintraub virou animador de protestos estudantis

Para o movimento estudantil brasileiro, a chegada de Abraham Weintraub ao Ministério da Educação foi revigorante. O afilhado do polemista Olavo de Carvalho conseguiu o impensável. Além de devolver a rapaziada às ruas, ressuscitou uma entidade moribunda: a União Nacional dos Estudantes. Sempre que alça a fronte, limpa o pigarro, enche o peito como uma segunda barriga e solta a voz, Weintraub oferece matéria-prima para manifestações estudantis anti-Bolsonaro.

Há um mês, o ministro declarou: "Universidades que, em vez de procurar melhorar o desempenho acadêmico, estiverem fazendo balbúrdia, terão verbas reduzidas". Com essa frase, transformou um congelamento corriqueiro de verbas educacionais numa bravata ideológica que empurrou professores, estudantes e pais de alunos para o megaprotesto de 15 de maio. Com tempo e energia sobrando, os "idiotas úteis" tomaram gosto pela rua, convocando nova manifestação.

Em vídeo levado às redes sociais na noite de quarta-feira, véspera do segundo protesto de estudantes, Weintraub alçou a fronte. Declarou que manifestações democráticas e pacíficas "são um direito do cidadão". O ministro limpou o pigarro. "O que não pode acontecer é a coação de pessoas que, num ambiente escolar público, criem algum constrangimento aos alunos para participarem dos eventos."

Enchendo o peito, Weintraub arrematou: "Nós estamos aqui recebendo no MEC cartas e mensagens de muitos pais de alunos citando explicitamente que alguns professores, funcionários públicos estão coagindo os alunos ou falando que eles serão punidos de alguma forma, caso eles não participem das manifestações. Isso é ilegal, isso não pode acontecer."

Ao referir-se aos alunos como seres incapazes de raciocinar por conta própria, o ministro ecoou a pecha de "idiotas úteis" que Bolsonaro grudara nos manifestantes do dia 15. Suas palavras potencializaram os protestos desta quinta-feira. Foram menores do que aqueles de duas semanas atrás. Ficaram aquém do anti-protesto pró-Bolsonaro do domingo passado. Entretanto, graças ao estímulo de Weintraub, não foram manifestações negligenciáveis. Encheram as manchetes e a tela do televisor que despejou realidade sobre o tapete da sala de estar minutos antes do início da novela.

Como que decidido a converter os protestos de estudantes num moto-contínuo, Weintraub forneceu material para uma terceira incursão da rapaziada ao asfalto. Mandou divulgar uma nota oficial. Nela, o MEC diz ter recebido 41 reclamações de coação a estudantes. Realça que nenhuma escola pode incentivar movimentos político-partidários.

O texto do MEC contém algo parecido com uma censura prévia. Esclarece que professores, servidores das escolas, alunos e até os seus pais não estão autorizados a divulgar e estimular os protestos durante o horário escolar.

O MEC estimulou a deduragem: "Caso a população identifique a promoção de eventos desse cunho, basta fazer a denúncia pela ouvidoria do MEC." Faltou dizer onde estão as 41 reclamações que supostamente já chegaram ao ministério.

Levadas ao pé da letra, as regras de Weintraub deixariam mal o presidente da República. Se professor desafia a lei ao atiçar protestos, que dirá o chefe da nação. Bolsonaro andou despejando nas redes sociais posts de estímulo à participação no protesto de cinco dias atrás, a favor do seu governo. No limite, o próprio Weintraub deveria sofrer descontos no contracheque por desperdiçar nacos do seu horário de trabalho como fornecedor de material para protestos de estudantes.

Bolsonaro ainda não se deu conta. Mas Weintraub vai se revelando aos pouquinhos uma espécie de cavalo de madeira em cuja barriga Olavo de Carvalho transportou para dentro do Ministério da Educação um presente de grego: a ideologização de um setor que deveria ser técnico. Se a cilada não for desmontada, o Brasil acaba virando uma Troia hipertrofiada.

Pensamento do Dia

Ángel Boligán

Um governo na contramão

Caros brasileiros,

Admiro-me com a persistência de vocês que saem às ruas protestando contra os cortes na educação. Parece que o povo brasileiro está mais ciente do valor da educação para o futuro do país do que o seu próprio governo.

Atrás da hashtag #tsunamidaeducacao, que chama para novas manifestações, se revela a indignação justa com um governo no qual muitos membros usufruíram do privilégio de ter acesso aos mais altos níveis de educação, mas negam o direito de acesso à educação básica aos seus cidadãos.


O governo atual parece estar na contramão da globalização: enquanto no mundo inteiro países competem para atrair os cérebros mais inteligentes e superar a escassez de mão de obra especializada para sobreviver à quarta revolução industrial, o governo brasileiro está em marcha a ré. Manda médicos cubanos para casa, anuncia cortes em todos os níveis de educação e aposta na exportação de umas poucas matérias-primas.

Para um presidente que venceu as eleições com uma campanha eleitoral quase completamente digital, isso é mais estranho ainda. O "tsunami" da manipulação digital causou um terremoto político no Brasil. Será que o "tsunami da educação" pode causar mais um?

É provável. Pois o mundo digital é mais amplo que o universo das fake news. Antes da eleições, viralizou a raiva de bolsonaristas em torno de temas como o "kit gay" e as urnas eletrônicas que supostamente sugerem um candidato. Agora, é a raiva dos estudantes e alunos que não querem ser chamados de "idiotas úteis" por um presidente da República, e não querem precisar sair do seu país para poder se formar.

Sinto muito, ministro Abraham Weintraub, mas não concordo com a sua afirmação de que "o ensino superior é um setor onde o país está, entre aspas, bem". O Relatório de Competitividade Digital divulgado pelo Núcleo de Inovação e Empreendedorismo da Fundação Dom Cabral não deixa dúvidas: a defasagem educacional no Brasil está em todas as áreas.

O ensino superior não escapa: segundo o relatório, enquanto na Índia o percentual dos graduados nas áreas de ciências, tecnologia, engenharia e matemática alcança 31%, no Brasil somente chega a 15%. Mesmo em comparação com outros países latino-americanos esse desempenho é fraco. A taxa no México é 27%, no Chile é de 20%, e no Peru, de 18%.

No ensino fundamental, o cenário não é melhor: Segundo a OCDE, a média em matemática dos alunos brasileiros é bem inferior à média geral da avaliação (Brasil 377 pontos, média dos países avaliados: 490), ficando o Brasil próximo apenas de países como Peru (387 pontos), Indonésia (386 pontos) e Jordânia (380 pontos).

Diante dessas estatísticas, chego a uma certa desilusão: pessoas que tiveram acesso à educação não são necessariamente educadas e, infelizmente, nem sempre tomam sempre decisões baseadas no conhecimento. Mas isso não quer dizer que não vale a pena investir na área de educação.

Pelo contrário: para monitorar dirigentes e políticos que tomam decisões importantes e às vezes se baseiam mais em convicções ideológicas ou políticas do que em evidências científicas, é preciso um povo cada vez mais educado. E de uma educação que não se restrinja aos conhecimentos técnicos, mas se baseie em valores de cidadania e do bem comum. "Brasil acima de tudo"? Sem educação, o Brasil vai ficar abaixo de tudo e de todos.
Astrid Prange de Oliveira

Bom senso que falta

Pablo Picasso 
Parece que a tendência dos políticos é para desprezar as verdadeiras necessidades do povo, desbaratando os dinheiros públicos em gastos desnecessários e obras de injustificada realização. O bom senso parecer ser a faculdade que mais falta faz ao país
Antonio da Silva Mello

Estamos realmente salvando o mundo?

Hoje a pergunta com que nos confrontamos é simples: estamos nós realmente salvando o mundo? Não me parece que a resposta possa ser aquela que gostaríamos. O mundo só pode ser salvo se for outro, se esse outro mundo nascer em nós e nos fizer nascer nele.

Mas nem o mundo está sendo salvo nem ele nos salva enquanto seres de existência única e irrepetível. Alguns de nós estarão fazendo coisas que acreditam ser importantíssimas. Mas poucos terão a crença que estão mudando o nosso futuro. A maior parte de nós está apenas gerindo uma condição que sabemos torta, geneticamente modificada ao sabor de um enorme laboratório para o qual todos trabalhamos mesmo sem vencimento.

Se alguma coisa queremos mudar e parece que mudar é preciso, temos que enfrentar algumas perguntas. A primeira das quais é como estamos nós, biólogos, pensando a ciência biológica? Antes de sermos cientistas somos cidadãos críticos, capazes de questionar os pressupostos que nos são entregues como sendo «naturais». A verdade, colegas, é que estamos hoje perante uma natureza muito pouco natural.

E é aqui que o pecado da preguiça pode estar ganhando corpo. Uma subtil e silenciosa preguiça pode levar a abandonar a reflexão sobre o nosso próprio objecto de trabalho. Aos poucos cedemos ao comité de não mais colocarmos em causa quem somos, o que sabemos, o que fazemos. As últimas décadas tenderam a tecnicizar as ciências biológicas. De novo, insistem connosco em que as soluções virão de sofisticadas tecnologias e de que pouco vale questionarmos os desafios políticos e sociais do nosso tempo. À força de termos que sobreviver vamos aceitando encaixes, ofertas e arranjos. A ideia de que não vale a pena tentar uma outra utopia conduz à acomodação e ao conformismo intelectual.

A própria ideia de Ciência que nos parece isenta e acima de toda a suspeita é uma ideia tão exclusivista que pode ser entendida como uma ideia gulosa. Gulosa e glutona. Engorda não por comer mas por fazer dieta. E essa dieta consiste em ignorar outras sabedorias, outros sistemas de conhecimento.
Mia Couto, "Pensatempos"

Nem a galinha decolou

Até um voo de galinha, um crescimento sem fôlego, seria bem-vindo num país assolado pelo desemprego, mas nem isso os desempregados, subempregados e desalentados tiveram no primeiro trimestre do novo governo, quando a economia encolheu 0,2%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A atividade continuou fraca em abril e em maio, desanimando empresários e consumidores e derrubando as previsões para este ano. Até o governo cortou sua previsão. Com a confirmação oficial do péssimo começo, o ministro da Economia, Paulo Guedes, falou sobre a liberação de dinheiro do PIS-Pasep e do FGTS. Um sinal, enfim, de um empurrãozinho nos negócios e no emprego? Nada disso, por enquanto. Só depois de aprovada a reforma da Previdência, disse o ministro. Se essas torneiras forem abertas “sem as mudanças fundamentais”, explicou, o resultado será um voo de galinha. E os vinte e tantos milhões de desocupados e marginalizados do mercado de empregos?

Terão de esperar, porque o ministro e seus colegas de governo parecem pouco preocupados com essa gente. Ou, no mínimo, pouco atentos a detalhes do dia a dia, como as condições para comprar comida, remédios, sabonetes e também passagens para ir em busca de ocupação ou até a uma entrevista de emprego.


Tudo se passa, em Brasília, como se só o longo prazo importasse. De fato, crescimento duradouro só se alcança com previsibilidade, confiança, investimentos produtivos, educação e treinamento. A reforma da Previdência é importante para criar um horizonte mais claro. Mas as pessoas precisam comer no curto prazo. Além disso, até um voo de águia depende de um impulso inicial.

Por que deixar esse impulso para depois de aprovada a reforma? Para manter a sensação de urgência, como se os mais de 13 milhões de desempregados e milhares de empresários em risco de quebra fossem usados como reféns?

Nem mesmo um pequeno impulso moveu a economia nos primeiros três meses. Nesse período, o Produto Interno Bruto (PIB) foi 0,2% menor que nos meses de outubro a dezembro de 2018, quando a produção, já se arrastando, avançou apenas 0,1%. Os sinais de otimismo em relação ao novo governo logo se dissiparam.

O presidente se manteve ocupado com estranhas prioridades, como armas e mudança da embaixada em Israel. Ministros se atropelaram ou se meteram em confusões, faltou coordenação no Executivo, a base parlamentar falhou e a equipe econômica se concentrou em assuntos de longo prazo, como se o País, sem milhões em condições dramáticas, pudesse esperar as grandes mudanças institucionais.

Sem recursos e sem confiança, as famílias consumiram apenas 0,3% mais que no trimestre final de 2019. Consumidores em condições melhores poderiam ter dado um impulso a mais à produção. Nesse quadro de estagnação interna e exportações travadas, a indústria de transformação produziu 0,5% menos que no trimestre imediatamente anterior. Poderia ter tido um desempenho muito melhor, sem dificuldade, porque o setor trabalha com cerca de 30% de capacidade ociosa. Poderia também ter oferecido mais empregos – e empregos formais.

Com ampla capacidade ociosa, o setor empresarial teria pouco estímulo para investir em máquinas, equipamentos e obras, especialmente diante de um horizonte opaco. O governo, sem dinheiro e enrolado em confusões, pouco poderia contribuir para a formação de capital fixo. Somados esses fatores, o investimento foi 1,7% menor que no trimestre final de 2019. Investir em infraestrutura será crucial para um crescimento duradouro, mas para isso será preciso avançar em licitações e em mobilização de capital privado.

A aprovação da reforma da Previdência, embora essencial, será insuficiente para prover o impulso necessário à movimentação da economia. Ao anunciar a liberação de recursos para as famílias, o ministro Paulo Guedes parece endossar esse ponto de vista. Seria melhor – e mais humano – antecipar esse impulso. Além disso, o presidente ajudará se der atenção às questões mais prementes, parar de agir por impulso, deixar as picuinhas, tuitar menos e começar a governar para todos os brasileiros.

quinta-feira, 30 de maio de 2019

Diário de um brasileiro

O brasileiro convive bem com o escândalo moral.
Os ladrões infestam os salões de luxo,
os Bancos estouram, os banqueiros
são cumprimentados com reverência,
o Presidente do Congresso chama o senador
de bandido, sim senhor, vossa excelência.

O Presidente diz pela televisão
que “é preciso acabar com a roubalheira
nos dinheiros públicos”.
As pessoas das cidades grandes
vivem amedrontadas, qualquer
transeunte pode ser um assaltante.
As meninas cheiram cola. Depois
vão dar o que têm de mais precioso
ao preço de um soco na cara desdentada.

O brasileiro convive com o escândalo
como se fosse o seu pão de cada dia,
com uma indiferença letal.

Como se dormir na casa com um rinoceronte,
mas rinoceronte mesmo,
fosse a coisa mais natural do mundo,
chegando a cheirar a camélias.

O povo, um dia.
Do povo vai depender
a vida que vai viver,
quando um dia merecer.
Vai doer, vai aprender.
Thiago de Mello

Ordem e progresso

Disputas entre facções criminosas em quatro presídios no Amazonas deixam um saldo de 55 mortos. Ainda vamos ver muitas dessas tragédias. Na verdade, o problema tende a se agravar se o governo levar a cabo seus planos de endurecer penas e restringir benefícios de progressão de regime.


Gostamos de pensar os presos como valentões que resolvem tudo na base da violência. Se deixados à própria sorte, rapidamente entrariam numa espiral de caos e anarquia. Mas, como mostra o celebrado economista David Skarbek, essa imagem está errada.

Presos, como quaisquer seres humanos, preferem viver em ambientes organizados e previsíveis. O Estado até consegue propiciar um meio relativamente seguro em presídios pequenos ou enquanto a unidade conta com recursos adequados. Mas, se a população carcerária crescer sem que o número de celas, guardas etc. acompanhe, surgem instabilidades que os próprios presos tratarão de resolver. Está aí o embrião das organizações criminosas.

Elas começam administrando conflitos interpessoais e organizando o comércio ilegal intragrades, mas vão ganhando em sofisticação e capacidade e logo passam a comandar também o tráfico de drogas nas ruas. Três décadas antes de o PCC eclodir nas prisões paulistas, a Califórnia já conhecera a Máfia Mexicana de San Quentin, ou “La Eme”, que atua até hoje.

O poder vaza para fora da cadeia porque o bandido que está solto tem sempre uma boa chance de vir a ser preso amanhã e, mais importante, porque as gangues de fato entregam produtos, como os tribunais informais do crime, que aumentam a produtividade nos negócios. É o mesmo movimento que, fora das cadeias, criou Estados.

Para a segurança pública, tão importante quanto retirar bandidos de circulação é manter a população carcerária em níveis administráveis, o que exige prender muito mais seletivamente do que fazemos hoje.

Gente fora do mapa

Manila (Filipinas)

O poder da caneta

As pessoas que foram às ruas no domingo atendendo a chamado do presidente e as que vão às ruas nesta quinta-feira para protestar contra o governo deram uma demonstração de política real. Uma e outra sugerem a Jair Bolsonaro que ele teria prevalecido num teste de forças que, na verdade, está apenas no começo e no qual a caneta Bic do presidente é insuficiente para vencer.

Começa pelo tal “pacto” dos três Poderes que nem tem como existir (o STF assinando pactos?). A ênfase retórica no “pacto” é, em parte, o resultado da percepção de Bolsonaro de que os termos da vitória eleitoral e “as ruas” lhe teriam permitido enfrentar os outros dois Poderes, e que levou o ministro Paulo Guedes a dizer que “não há antagonismo” entre eles (os Poderes) – frase que só provocou risadas entre seus pares no mundo real da economia e finanças. Tudo bem, reconheça-se que um dos pilares do governo não poderia mesmo declarar outra coisa em público, ainda que fosse para segurar o dólar.


“As ruas” – ou o que Bolsonaro entende por isso – teriam também dito ao presidente que ele não precisa se esforçar muito em conseguir uma base estável no Congresso, pois o ronco das multidões que o apoiam superaria em caso de necessidade os cochichos dos participantes do nefasto conchavo que o impede de realizar os anseios do povo. O problema aqui é o de desafiar um dado estrutural do sistema de governo brasileiro (admita-se, o pior do mundo), que obriga Executivo e Legislativo a se entender de alguma maneira.

Nesse sentido, Bolsonaro está conseguindo o inverso do que pretende. O Congresso está caminhando até com certa rapidez para fortalecer suas prerrogativas e com pautas próprias (na área tributária, por exemplo). Mais complicado ainda para o presidente, o mundo parlamentar se impressionou menos do que ele acredita com as manifestações de rua. Ao contrário, está tomando a guerra deflagrada pelo bolsonarismo nas redes sociais como incentivo para reduzir as prerrogativas do Executivo em dois setores-chave: alocação de recursos pelo orçamento e uso de medidas provisórias.

Ao aderir a simplificações brutais da (admita-se) complexa e dificílima relação com o Legislativo, Bolsonaro ignora um outro dado relevante da realidade dos fatos. Parlamentares reagem, sim, não só “às ruas”, mas, também, a uma série de pressões políticas, sociais, econômicas e regionais que os empurram, por exemplo, para a aprovação de alguma reforma da Previdência – é o que explica, em parte, o entendimento relativamente muito mais fácil entre o próprio Guedes e os presidentes das casas legislativas, que estabeleceram há tempos linha direta com importantes segmentos da atividade econômica.

As elites da economia estão há tempos totalmente convencidas de que não há um plano B para a não aprovação de alguma reforma da Previdência. Mais ainda: clamam por algo que mexa com a sufocante questão dos impostos (nem estamos falando da carga). Alguma surpresa com o fato, mencionado acima, de o Legislativo querer seguir adiante com uma pauta “própria” de reforma tributária? Ou das expectativas dos agentes de mercado voltadas agora menos para Bolsonaro e mais para o Congresso?

Aos cinco meses de governo, está se ampliando a noção de que a formação de uma base coesa e estável de Bolsonaro no Legislativo não só continua distante, mas, talvez, nunca se concretize. O presidente não se mostra disposto a liderar nada nesse sentido, e já deixou a própria bancada mais de uma vez na mão. Confia estar na rota política correta. É a que vai ajudar a diminuir muito o poder da sua caneta.

Mitinho

O fato é que Bolsonaro é um Messias precário, que não está conseguindo lidar com os demônios que o perturbam. As “corporações” e a “velha política” que ele denuncia fazem parte do jogo democrático e não podem ser confundidas com Belzebu, Asmodeus ou Lúcifer. A verdade é que ninguém inviabiliza seu governo, a não ser ele mesmo. Quem está contra ele, está contra Deus é um raciocínio estranho e perigoso.
 
Bolsonaro quer estabelecer uma disputa do bem contra o mal, na qual ele representa o lado certo. E o inferno são os outros. Mentira. Tudo pode parecer misterioso, mas, no fundo, é só uma forma de esconder a própria incompetência
Vicente Vilardaga

A guerra das culturas

Não existe mais muita coisa capaz de me chocar no Brasil – mas uma cena acabou conseguindo. Em Curitiba, apoiadores de Jair Bolsonaro arrancaram uma faixa com os dizeres Em Defesa da Educação da fachada da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Centenas de pessoas aplaudiram.


Ficou evidente que o Brasil vive uma guerra de culturas. As forças do obscurantismo estão atacando o iluminismo. Este mês, duas grandes manifestações levaram milhares de brasileiros às ruas. Elas não poderiam ter sido mais distintas.

Da primeira, participaram sobretudo pessoas jovens, que protestaram pela educação, há duas semanas. Eram negras e brancas e tudo o que há no meio. São o Brasil do futuro. E é por esse futuro que lutam. Porque, se há algo com que se pode solucionar quase todos os outros problemas do Brasil, é a educação.

Através dela, é possível conter as pragas da violência, da desigualdade, da destruição ambiental e da corrupção. Para fazer mudanças no Brasil, seria preciso começar por aí. Os verdadeiros patriotas, portanto, são os estudantes do ensino médio e universitários que vão às ruas contra os cortes do governo.

Também está claro o motivo pelo qual muitos brasileiros são contra a educação para todos. Esses participaram da outra manifestação, que aconteceu no último domingo, com o intento de apoiar o presidente Bolsonaro, cujo governo está ameaçado de acabar em fiasco. Mas os fãs dele só veem o que querem ver. Em vez de um homem medíocre, misantropo, intelectualmente e moralmente fraco, eles reconhecem um "mito". Nos atos, houve até quem dissesse que Bolsonaro foi enviado por Deus. Que Deus cruel.

O ideal do movimento bolsonarista é um país no qual os papéis sociais (e sexuais) são claramente distribuídos. É um país onde há uma nítida definição de quem fica em cima e de quem fica embaixo. São os próprios apoiadores brancos de Bolsonaro que tiram proveito dessa desigualdade. Primeiro, por meio da legião de trabalhadores baratos e sem formação. E segunda, porque a existência dos pobres faz eles se sentirem superiores.

É assim que devem ser interpretadas as fotos sarcásticas tiradas com sem-teto pelos manifestantes. Eles lucram com as estruturas antigas do feudalismo, que ainda existem no Brasil e que só podem ser rompidas com a educação. Por isso, qualquer esforço de criar igualdade de oportunidades é chamado por eles de "socialismo".
O conflito entre o pensamento esclarecido e o antiesclarecimento fica mais evidente quando se trata de religião e racionalidade. A questão fundamental se debruça sobre o que deve ter mais influência nas decisões políticas. Nas sociedades modernas, a resposta costuma ser: a razão. Os novos direitistas brasileiros acham que isso está errado – desde Olavo de Carvalho, o ideólogo do antiesclarecimento, passando pelos ministros Damares Alves e Ernesto Araújo, até o próprio presidente ("Deus acima de todos").

Eles confundem sua fé com conhecimento. Por isso, desprezam o conhecimento dos outros e a ciência, que é complexa e cheia de nuances. Assim, pode-se explicar o fato de Bolsonaro acusar o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de disseminar "fake news" – apesar de ele não ser um especialista em estatística. A ministra da Família, Damares Alves, afirma que a Teoria da Evolução é errada – mas não tem noção de biologia. E o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, acha que as mudanças climáticas não estão acontecendo – contra o consenso de pesquisadores no mundo todo.

Enquanto isso, nas ruas, os direitistas pedem "o fim de Paulo Freire", que nunca leram. Esse desprezo por intelectuais e cientistas é uma característica fundamental de regimes autoritários. É ela, na verdade, que está por trás dos contingenciamentos financeiros na área da educação.

O cenário combina com a notícia de que o Brasil entrou para o grupo de 24 países no mundo que vivem uma "erosão" em suas democracias. A avaliação é do Instituto V-Dem (Varieties of Democracy, ou Variedades da Democracia), da Universidade de Gotemburgo, que tem o maior banco de dados sobre democracias no mundo. O Brasil, segundo os especialistas, está sendo afetado severamente por uma onda de autocratização.

Será que as pessoas que aplaudiram quando a faixa a favor da educação foi arrancada em Curitiba aplaudiriam amanhã, se os livros de Paulo Freire, Jorge Amado e Chico Buarque fossem queimados? Temo que a resposta seja "sim". Essas pessoas acreditam que sua ignorância vale mais do que o conhecimento dos outros. O Brasil está num caminho escuro e perigoso.
Philipp Lichterbeck

Veneno da política intoxica o PIB e derruba 2019

Nas pegadas de um final de semana em que o Posto Ipiranga de Jair Bolsonaro ameaçou fechar as portas —"Pego o avião e vou morar lá fora", disse Paulo Guedes—, o IBGE informa nesta quinta-feira que o PIB do primeiro trimestre de 2019 foi medíocre. É o prenúncio de um mal maior: o excesso de veneno na política intoxica a economia, comprometendo o crescimento do país pelo terceiro ano consecutivo.

A recuperação da economia está, por assim dizer, pendurada numa palavra: Confiança. Algo que os governos não conseguem inspirar. Após a ruinosa gestão de Dilma Rousseff, o impeachment e a pauta liberal de Michel Temer animaram a conjuntura. Súbito, o grampo do Jaburu carbonizou as expectativas. Em vez de salvar a Previdência e sanear as contas públicas, Temer priorizou o salvamento do próprio pescoço.


A eleição de Jair Bolsonaro, com Paulo Guedes a tiracolo, reacendeu o otimismo do mercado. A ilusão durou pouco. Em cinco meses de mandato, descobriu-se que a única coisa que cresce no Brasil é a capacidade do capitão de produzir crises contra si mesmo. Já seria o suficiente para potencializar o pessimismo. Nem precisava do auxílio externo proporcionado pelos ruídos da guerra comercial entre China e Estados Unidos.

Continua na ribalta ela, a reforma da Previdência. Até o asfalto já roncou pelo ajuste previdenciário —coisa inédita no mundo. Mas a ficha dos atores políticos demora a cair. Com sorte, Bolsonaro se autoimpõe uma abstinência de redes sociais. E a coisa se resolve até setembro. Com azar, novas polêmicas esticarão a corda até as vésperas do Natal, empurrando o pessimismo e a retração dos investimentos para dentro de 2020.

O brasileiro deve ser um dos sujeitos mais bombardeados por notícias econômicas do mundo. Aqui, a economia tem mais espaço no noticiário do que o futebol. Quanto mais a economia não dá certo, mais manchetes ela ocupa. Quanto mais o cidadão acompanha as novidades, mais percebe que entende apenas o suficiente para saber que precisa entender muito mais para descobrir o que leva um país com 13 milhões de desempregados a desperdiçar tanta energia com desavenças políticas.

Pensamento do Dia


Crítica da razão autoritária

É compreensível que a vitória nas urnas dê aos vitoriosos a sensação de que tudo podem, tudo devem, e de que a democracia é aquele regime em que eu venço, nós empatamos e você perde. A vontade popular se coagula em poder político e o poder político faz a vontade popular. Felizes para sempre.

Alguns interpelam, como se berrassem obviedades: “Acaso a vontade do povo pode ser confundida com ditadura?!” Infelizmente a reposta é sim, pode, e com frequência se confunde. Quem lê Jean-Jacques Rousseau sabe do que se trata.

A volonté générale é o adubo de muita manifestação autoritária e violenta. O autoritarismo, aliás, poucas vezes nasce contra o povo, quase sempre nasce em seu nome, e se funda na ideia de que o líder conduz o povo ao destino a que o povo aspira. Mais: na ideia de que as vontades de líder e povo se confundem ao ponto da indistinção.


Com isso quero dizer que essa é a intenção manifesta do clã Bolsonaro? Até onde a vista alcança, apesar de sua falta de jeito ou de gosto, Jair Bolsonaro parece estar de acordo com os termos do compromisso: Constituição, divisão de poderes, oposição, imprensa livre. Chatices.

Entretanto, essa aceitação não lhe é tão natural. Ele não toca de ouvido. Quilômetros de votos, declarações, atos e omissões ao longo dos anos, e de anos nem tão distantes assim, desmentem sua melhor educação política. Ninguém foge da própria biografia.

O que me preocupa, mais do que o presidente, é boa parte do eleitorado radical que o acompanha. Estes, sim, parecem assumir que democracia é a bigorna com a qual se amassa a cabeça dos perdedores. Podem não representar a maioria, mas não são poucos. E são entusiasmados.

Tudo se traduz na convicção de que, vencidas as eleições, a razão de quem venceu é a única razão a ser levada em conta, como se não houvesse outros debates, ideias, conflitos, visões e razões a se considerar. Como se o resultado das urnas fosse passe-livre para quaisquer efeitos e resultados depois delas – em nome do povo, para o povo, pelo povo.
No mundo civilizado, não é.

E perigosos...

Fanáticos são pontos de exclamação ambulantes
Amós Oz

Sorte e azar

Formam um idioma destinado a explicar eventos marginais as rotinas. Quando “a vida” nega ou dá mais do que se espera — uma loteria, por exemplo, entra em cena o dualismo azar ou sorte.

Travei conhecimento com essa linguagem quando minha avó Emerentina me pediu um palpite para o jogo do bicho. Vovó jogava no bicho diariamente e frequentava uma roda de pôquer de “gente educada” e “bem-vestida”, incapaz de uma “grosseria”. Um dia, ela me explicou essa aristocracia das cartas:

— Eles sabem perder, e só quem perde sabe ganhar. Ademais — continuou — é preciso jogar para se descobrir vivo ou morto. Minha avó sabia o que dizia. Seu primeiro marido foi assassinado à bala por um rival inconformado.

— Meu netinho — disse a um garoto de 8 anos — dê um palpite para o jogo do bicho.

— Como assim?

— Diga o nome de um bicho que você gosta, e eu vou jogar.

— Elefante! — pronunciei, orgulhoso porque estava usando na prática e na vida o que havia visto com admiração e alegria num filme de Tarzan no dia anterior.

No final da tarde, fui chamado por vovó e a encontrei na sala de visita muito bonita no seu austero vestido preto. Estava empoada e com cabelos cuidadosamente penteados. Fui recebido com um sorriso tão aberto como seus braços, nos quais eu caí para receber o incondicional afeto que nos abandona quando viramos adultos.

— Você acertou, deu elefante na cabeça! — disse, passando para minhas mãos uma moeda com a qual eu me entupi de chocolates comprados na esquina da nossa rua no Bar do Soares.


Criado num país no qual quem segue as leis, paga imposto e lê instruções é considerado um babaca, conforme ouvi numa pesquisa, confesso o meu inconformismo com a desobediência malandra e esperta como norma, vigente no espaço público. Quando atravesso uma rua movimentada e fico diante de um automóvel que aguarda minha passagem; ou entro numa fila na qual abrem caminho para o idoso que hoje sou, entendo que estou com sorte. Do mesmo modo e pela mesma regra, sinto-me azarado quando redescubro uma sistemática roubalheira pública desfigurando o sistema financeiro nacional.

Quando saio de casa para o trabalho, oscilo diante de um trânsito normal (quando tenho sorte) ou engarrafado (nos dias de azar). Ademais, enfrento a incerteza de não saber se as tais reformas sem as quais o Brasil vai acabar serão ou não aprovadas. Ou se o supremo magistrado da nação vai bosquejar mais uma crise. Aos 82 anos, eu ainda vivo num país que não se acertou com suas rotinas.

Sei, porém, do seguinte: minha vida em casa é mais previsível do que na rua. Em meio à pessoalidade, muitas vezes exagerada ao ponto de englobar o mérito, o lar ainda é mais seguro do que as decisões dos poderes da República. No nevoeiro das minhas dúvidas, não posso deixar de imaginar que a aprovação da reforma da Previdência será mais ou menos equivalente a acertar no elefante!

A experiência do menino transformou-se na obsessão profissional do estudante de sistemas culturais que são alternativos. Assim aprendi que nenhuma cultura suprime o idioma das coincidências, das fortunas e dos acidentes. Não existem sociedades perfeitas, aprendi, um tanto chocado, com um Lévi-Strauss que contrariava meus professores certos dos rumos da História Universal...

Poucas sociedades jogam tanto com a sorte como a brasileira. Poucas entram na nossa feroz jogatina com suas leis e instituições. E têm tanta familiaridade com a proximidade de um abismo social que é um flerte com o desastre. Somos, como diz meu ex-mentor, o brasilianista Richard Moneygrand, inimigos tenazes de nós mesmos.

Como não tenho e nem acredito que exista uma chave para o futuro — exceto a do risco e da boa-fé — sou um cultor da esperança.

Como tal, estou mais ou menos convencido de que, se fiz minha avó acertar no elefante, um dia vou ganhar na Mega-Sena. Então, entupido de dinheiro, irei inaugurar a Era da Filantropia no Brasil, tirando a pátria de uma piedosa e sovina caridade.

A quem possa interessar, informo que os diplomas de Harvard são escritos em latim.

Por que o tráfico de drogas entra no cálculo do PIB europeu

Às vésperas do anúncio oficial do Produto Interno Bruto (PIB), o Brasil enfrenta onda de revisões, feitas por instituições financeiras, que têm rebaixado a estimativa para o crescimento da economia do país em 2019.

O PIB é, segundo economistas, uma importante medida que indica o quanto a economia pode estar acelerando ou se contraindo com base na soma de todos os bens e serviços produzidos num país.

A origem desse indicador remonta a década de 1930, quando o economista Simon Kuznets, em busca de saídas para a Grande Depressão nos EUA, acabou criando uma forma de medir a economia contabilizando tudo que é produzido em determinado país.

A forma de calculá-lo, contudo, tem variado e a conta final depende do que se coloca na equação. Muitos países, entre eles todos os 27 membros da União Europeia, passaram a incluir atividades ilícitas como tráfico de drogas e contrabando no cálculo do PIB o que, na prática, ajuda a economia a parecer maior.

É uma decisão considerada controversa por muitos economistas porque atividades ilícitas são difíceis de mensurar e representam gastos adicionais por parte do Estado com, por exemplo, segurança e saúde. Por outro lado, contabilizar atividades ilegais é capaz de turbinar um dos principais indicadores econômicos do mundo.

Em 2014, países como a Itália, Reino Unido e Espanha anunciaram que iriam passar a contabilizar tráfico de drogas, prostituição, contrabando de cigarros e bebidas. A decisão atendia a uma exigência da União Europeia para que todos os países do bloco incluíssem atividades ilícitas no cálculo do PIB.

"Este não é apenas um requisito europeu, mas internacional – tem sido coberto pela metodologia desde a edição de 1993 do Sistema de Contas Nacionais da ONU [Organização das Nações Unidas]", informou à BBC News Brasil o Eurostat, o Gabinete de Estatísticas da União Europeia, por meio da assessoria de imprensa.


À época, segundo a imprensa britânica, o Reino Unido avaliou que a ação de prostitutas e traficantes iria incrementar em 9,7 bilhões de libras (o equivalente a R$ 497 bi em valores atuais) – ou em 0,7% – o PIB de 2009, ano em que o país tentava se recuperar de uma das piores crises econômicas da história recente.

O efeito na Europa, como um todo, parece ter sido mais modesto. Apesar de afirmar que não mantém estimativas regulares da quantidade das atividades ilegais, o Gabinete de Estatísticas da UE diz que a projeção feita em 2014 foi de aumento que corresponde a 0,38% do PIB do bloco.

De acordo com o Eurostat, além da inclusão das atividades ilícitas, outras mudanças na forma do cálculo feitas em 2014 resultaram num aumento total de em 3,67% no PIB da União Europeia.

As previsões para 2019 não são muito otimistas para o Brasil. O mercado financeiro vem reduzindo as expectativas de crescimento da economia neste ano. Divulgado no dia 20 de maio pelo Banco Central, o boletim de mercado, conhecido como relatório Focus, mostra uma redução na estimativa de crescimento deste ano de 1,45% para 1,24%, com base em levantamento feito junto a 100 instituições financeiras. No começo do ano, a expectativa era de um crescimento de mais de 2,5% no ano.

O indicador que representa uma prévia do PIB (IBC-Br) aponta uma retração de 0,68% no primeiro trimestre do ano.

Nesse cenário, a inclusão do tráfico de drogas, jogos de azar e contrabando de bebidas e cigarros poderia, em tese, inflar o PIB. Economistas apontam, contudo, que a medida é controversa e que o ideal seria ter um cálculo separado para as atividades ilícitas.

"Grande parte dos países que adotarem essa medida terão como resultado um grande aumento do PIB, inclusive o Brasil", afirma a economista Marcelle Chauvet, professora da Universidade da California Riverside e especialista em ciclos econômicos, que defende mensurar e divulgar o PIB com e sem as atividades ilegais.

"É importante haver um esforço orquestrado para contabilizar atividades ilegais. Essas atividades chegam a um percentual muito grande na economia de alguns países", diz Chauvet. "Isso permitirá uma comparação histórica da evolução da economia de cada país, como também comparação entre países que adotam ou não a inclusão de atividades ilegais", completa.

O economista e professor da Universidade de Brasília (UnB) Victor Gomes também acha "interessante" dimensionar esses mercados clandestinos, mas afirma que a inclusão no cálculo do PIB é uma questão complicada.

"Ter uma noção de qual é a produção, mesmo de coisas que a gente não goste ou não concorde, é sempre bom. Serviria inclusive como auxílio para várias políticas", justifica.

Quem calcula o PIB oficialmente no Brasil é o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que diz estar se esforçando para, além de encontrar um cálculo cada vez mais preciso, manter a comparabilidade internacional.

À BBC News Brasil, o IBGE informou que acompanha as discussões internacionais sobre contabilizar atividades ilegais ao medir o tamanho da economia. "Mas, por enquanto, não há projetos de incorporarmos essas atividades no cálculo do PIB", disse o órgão, por meio da assessoria de imprensa.

No Ministério da Economia, a atual forma de contabilizar o PIB parece agradar integrantes da pasta.

O secretário de política econômica do Ministério da Economia, Adolfo Sachsida, diz que o PIB é importante para verificar se as políticas estão funcionando e afirma que, da forma como é calculado hoje, "está valendo".

"No plano teórico, eu entendo que o PIB é a soma de todos os bens e serviços produzidos em uma economia em um período de um ano. Essa é a definição básica. Por essa definição, devia entrar tudo no cálculo. Mas não tenho ideia, não vejo vantagem", afirmou Sachsida.

"No fundo, para que precisamos do PIB? O PIB é uma medida pra verificar se as políticas estão funcionando, se o país está caminhando na direção correta. É isso que precisamos, de um indicador. Eu não tenho esse preciosismo que alguns têm, não. Pra mim, do jeito que está, está valendo", disse Sachsida, ao ser questionado pela BBC News Brasil sobre o tema.

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Consultores de investimentos

Certas notícias são de tirar o fôlego. Na semana passada, a Justiça bloqueou R$ 258 milhões da conta bancária do senador Fernando Bezerra Coelho, ex-PSB-PE, hoje MDB-PE, por suspeita de envolvimento nas aventuras da Petrobras com construtoras e refinarias durante os anos Dilma. Bezerra Coelho é o atual líder do governo Jair Bolsonaro no Senado. Apesar desse rombo nas suas economias, ele não parece estar perdendo o sono. Pelo menos, em foto tirada no mesmo dia ao lado do presidente, estava feliz da vida.

Dias depois, a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) aplicou uma multa de R$ 536 milhões no empresário Eike Batista, por uso de informação privilegiada para negociar ações de suas antigas empresas de petróleo e gás. Você se lembra de Eike. Há poucos anos, chegou a ser um dos homens mais ricos do mundo —hoje, não pega nem quinta divisão. Mas não se queixa. Em seu apogeu, quando lhe perguntavam como podia ser tão rico, ele respondia: “Eu faço riquezas do nada”. Sabemos agora que não estava mentindo.

E esta é a chave para quem quiser ficar rico —fazer dinheiro do nada. Fabrício Queiroz, ex-motorista do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, também explicou como conseguia movimentar milhões com seu miserável salário na carteira: “Eu sei fazer dinheiro”. E como era isto? Segundo ele, comprando e vendendo carros com lucros fabulosos. Mas, para outras correntes filosóficas, seria recheando o gabinete do chefe com funcionários fantasmas e dando interessantes destinos ao dinheiro.

O próprio Flávio Bolsonaro é outro que sabe fazer dinheiro. Por mais elásticos o salário e as verbas de gabinete de um deputado estadual, só mesmo a vocação para fazer dinheiro explica tantos imóveisnegociados em tão pouco tempo e com lucros de 400%.

Se não fossem tão ocupados, Bezerra, Eike, Queiroz e Flávio seriam insuperáveis como consultores de investimentos.
Ruy Castro

O golpismo continua no ar

Durante a campanha eleitoral, o general Hamilton Mourão falava em “autogolpe”. Pouco depois da vitória de Jair Bolsonaro, seu ministro da Economia sonhava com uma “prensa” no Congresso. Há pouco, o doutor Paulo Guedes queixou-se de uma imprensa “a fim só de bagunçar” e de uma oposição que quer “tumultuar, explodir e correr o risco de um confronto sério”. Quem ouviu a rua no domingo sabe que o sujeito oculto e às vezes explícito dos discursos e cartazes era a hostilidade ao Congresso. Esse é o nome do golpismo.

Nem todos os 58 milhões de pessoas que votaram em Jair Bolsonaro eram golpistas, mas todos os golpistas votaram no capitão. Passados cinco meses, a banda golpista encolheu na rua e no andar de cima. Como o sapo de Guimarães Rosa, não fez isso por boniteza, mas por precisão. Mesmo assim, escalou-se o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, para o papel de Pixuleco da vez.

De boa-fé, o mais ardente dos bolsonaristas haverá de reconhecer que Maia defende a reforma da Previdência há mais tempo e com mais ardor que Bolsonaro. O golpismo está sem ideias.

Tome-se o caso da reforma. Os dois pontos mais contestados são as mudanças no benefício aos miseráveis e a proposta do regime de capitalização. Paulo Guedes já disse que a primeira mudança poderá ser opcional e a segunda, além de opcional, poderá ficar para mais tarde. Admitindo-se que se crie um regime de capitalização opcional para quem entra no mercado de trabalho e que o cidadão possa optar por um fundo do Banco do Brasil ou da Caixa Econômica, onde está o problema?

A balbúrdia que ronda a reforma e outras iniciativas do governo não é alimentada por uma oposição tumultuante e explosiva. Ela vem de dentro de um governo desconexo onde brilha quem aposta no tumulto.

Bolsonaro tem quatro cavaleiros do Apocalipse. São os ministros Abraham Weintraub (Educação), Ernesto Araújo (Relações Exteriores), Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos). Basta compará-los a quatro ilhas de tranquilidade: Tereza Cristina (Agricultura), Tarcísio Gomes de Freitas (Infraestrutura), Bento Albuquerque (Minas e Energia) e Santos Cruz (Secretaria de Governo).

Weintraub foi a espoleta que explodiu a crise nas universidades. Sintomaticamente, enquanto ele jogava gasolina, Bolsonaro comportou-se como bombeiro. Aceitou a lista tríplice da Federal do Rio de Janeiro e nomeou a professora Denise Pires de Carvalho para sua reitoria. Pouco depois, mostrou-se contrário à cobrança de anuidades nas universidades públicas. Coisa de comunista, diria um golpista.

Ernesto Araújo meteu-se na armação de um golpe perfumado na Venezuela, Ricardo Salles encrencou-se com os financiadores internacionais do Fundo Amazônia e chamuscou a biografia de Joaquim Levy, presidente do BNDES, arrancando-lhe o afastamento da chefe do departamento de Meio Ambiente. Já a doutora Damares descobriu que Chico Buarque é um cantor.

Os Cavaleiros do Apocalipse estragam o serviço de ministros que trabalham sem bumbo. Tereza Cristina costurou uma trégua com a China. (Deve-se a ela o apoio do Brasil ao candidato chinês para a direção da FAO.) Tarcísio Gomes de Freitas dá nó em pingo d’água negociando leilões e concessões. Já o ministro de Minas e Energia cresce mantendo-se longe de debates inúteis.

No meio, está o Posto Ipiranga. Ainda não começou a vender berinjelas, e suas bagunçadas palestras são certamente um fator de desânimo para o empresariado. Ele ameaça ir embora do Brasil. Ninguém quer saber para onde vai. O que interessa é saber o que ele tem a oferecer, em 2019, para 13 milhões de desempregados. “Confronto sério” não gera emprego.

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