terça-feira, 9 de junho de 2020

Aliança da matança

Ele ( Bolsonaro) não tem estatura humana naquilo que a gente considera que são alguns traços mínimos para você ser considerado um homem. Um homem humano.

A pandemia talvez não fosse evitável, mas com algumas políticas públicas simples e de contenção, ela podia não ser tão catastrófica. E aí um presidente que diz "Ah, todo mundo morre, e daí?"... Como se as mortes fossem naturais. Não, são mortes por descaso.
Maria Rita Kehl, psicanalista e escritora

Bolsonaro dá caixão e enterro

Jair Bolsonaro resolveu torturar estatísticas sobre as mortes de brasileiros pela Covid-19 até que confessem só uma “gripezinha”. Liquida a própria credibilidade, pois se não é possível confiar nos dados oficiais sobre a vida e a morte, por que se deveria acreditar nos números da economia?

Governos em realidade paralela são casos clássicos na política.

George III, rei da Inglaterra, derrotou Napoleão e impôs a hegemonia britânica. No 4 de julho de 1776, registrou em diário: “Nada de importante aconteceu”. Nada, só a declaração de independência dos EUA. Morreu cego, surdo e louco, depois de falar horas sem parar aos cortesãos — a reunião ministerial da época.

Luis XVI, marido de Maria Antonieta, era obcecado pela morte. Também anotou um “nada aconteceu” no 11 de julho de 1789, ao demitir o ministro da Fazenda, Jacques Necker, fiador da estabilidade do reino. Três dias depois deu-se a Revolução Francesa. Ele perdeu a cabeça, literalmente.


A psicopatia de Bolsonaro com mortes merece estudo, mas obedece a uma lógica peculiar de luta pelo poder. Ele nega porque não admite seu desgoverno na pandemia.

A ruína é visível na Saúde. E é notável a inépcia no socorro a micros, pequenas e médias empresas, donas de 52% dos empregos no país onde 54 milhões estão sem renda.

O presidente-candidato teme a conta política dos mortos. Os 37 mil já superam a população somada das quatro cidades paulistas onde viveu (Glicério, Ribeira, Sete Barras e Eldorado) antes de ser premiado com a inscrição na Aman, em Resende (RJ). Terá de lidar com esse mundo real se chegar ao fim do mandato e tentar a reeleição.

Bolsonaro renega a pandemia, mas Onyx Lorenzoni, operador da sua campanha em 2018, acaba de abrir um guichê para ajudar prefeitos a “cobrir despesas” dos funerais da Covid-19. Está no Diário Oficial. O governo não reconhece a mortandade, mas, numa cortesia pré-eleitoral, topa pagar caixões e enterros.

A dor tem cor

Caros brasileiros,

às vezes, faltam palavras. Confesso que sinto certa dificuldade e inibição para escrever esta coluna. Porque depois da morte trágica do menino Miguel, o assunto levanta tristeza, constrangimento, e dor, muita dor.

Estou falando de empregadas domésticas no Brasil. Isso por si só já pode parecer pretensioso, pois eu nunca trabalhei como empregada. Mas queria compartilhar com vocês a minha singela experiência com esta profissão.

Quando cheguei no Brasil pela primeira vez, conheci a dona Teresinha. Ela trabalhava para meu marido brasileiro quando ele ainda morava sozinho. Morava longe, era separada, tinha uma filha com deficiência mental, que criava sozinha, e já estava com sintomas da doença Parkinson avançados.

A dona Teresinha não era de muita conversa, mas por pior que fossem os problemas dela, dizia sempre que estava "tudo bem". Queria lavar as roupas no tanque de sua casa em vez de colocar na máquina, queria passar as roupas mesmo com a mão tremendo, e dizia que se nos mudássemos para a Lua, ela iria trabalhar lá.

Na época, recém-chegada da Alemanha, me perguntava: como alguém com tanta amargura, pobreza e sofrimento, que não tem nada para comer na geladeira e nem geladeira tem, pode chegar no trabalho sorrindo e dizer que está "tudo bem"? A dona Teresinha me enchia de vergonha.

Depois da dona Teresinha veio a dona Roseane. Ela só tinha 27 anos e já era viúva. Tinha perdido o marido num acidente de carro. Também criava o filho sozinha. Como se isso não bastasse, alguns anos depois, a mãe dela que morava na Bahia, morreu de câncer.

É muita fatalidade, sofrimento e dor. Por que essas mulheres aguentam tudo isso em silêncio? Por que para empregadas domésticas uma vida dura e cruel parece ser a coisa mais normal do mundo? Quem inventou a lenda que mulheres negras suportam dores em doses maiores?

Quando vi a notícia sobre a morte do Miguel, me dei conta que esse sofrimento é simplesmente ignorado. Parece que empregadas são seres diferentes aos quais o famoso calor humano brasileiro não se estende.

Enquanto a patroa fica chateada quando o cachorro está mal, a empregada não pode se dar ao luxo de demostrar sinais de fraqueza, apesar de levar uma vida precária. Tem trabalhar mesmo estando doente, com filho fora da escola, ou com alguém da família passando mal. Mas está sempre "tudo bem". "Tudo bem?": a morte do Miguel mostra que nada está bem. Mostra que no Brasil ainda prevalece a mentalidade escravista de 500 anos atrás. Por que desmerecer, minimizar, ignorar o sofrimento de milhões de empregadas, que na grande maioria são mulheres negras, é tratar elas como escravas?

Percebi essa herança escravista quando encontrei, pela primeira vez nos anos 1990, a Nair Jane de Castro Lima, empregada desde os nove anos de idade que trabalhava na casa de uma família alemã no Rio de Janeiro. Ela me contou como se comoveu quando um dia, encontrou uma colega chorando na frente de uma igreja.

Essa colega tinha trabalhado 40 anos na casa de uma família e foi dispensada quando tinha a idade de se aposentar. Ela não tinha para aonde ir e não ia receber aposentadoria, porque nem certidão de nascimento tinha. Em outras palavras: ela simplesmente não existia.

Essa crueldade foi uma das razões que levaram a Nair Jane a fundar o Sindicato dos Trabalhadores Domésticos. No ano passado, reencontrei-a novamente no Rio de Janeiro. A orientadora da minha filha Stefanie tinha recomendado assistir ao documentário "Colcha de retalhos" que abordava a invisibilidade das trabalhadoras domésticas no Brasil por meio da história de Nair Jane. Quando terminou o filme, ela estava lá!

A minha filha, nascida no Rio de Janeiro, está escrevendo uma dissertação de mestrado sobre os direitos trabalhistas de empregadas domésticas e o debate sobre o legado da escravidão no Brasil. Ela conversou com Nair Jane, assim como também conseguiu entrevistar Benedita da Silva.

Inclino-me perante guerreiras como Benedita da Silva e Nair Jane, que lutaram por coisas tão básicas como o direito de ter uma certidão de nascimento. E conseguiram conquistas sociais como a PEC das Empregadas Domésticas que entrou em vigor há cinco anos.

Com isso, o Brasil mudou. Mas ao mesmo tempo ficou igual. A morte do Miguel mostra que a "Casa Grande e Senzala" ainda existe. Mas também revela que não dá mais para aguentar a dor de um tratamento desumano em silêncio.

Agradeço a minha filha por entrar nessa luta contra racismo. E agradeço a todos manifestantes que foram e ainda vão para rua para deixar claro: #vidasNegrasImportam!
Astrid Prange

Bolsonaro quer privatizar o golpe

O primeiro projeto claro de privatização desse governo parece ser a privatização do golpe. Na última sexta-feira, em uma inauguração em Goiás, Bolsonaro defendeu zerar o imposto de importação de armamentos e disse por que vai fazer isso: “É uma boa medida que vai ajudar a todo o pessoal dos artigos 142 e 144 da nossa Constituição”.

Como se sabe, o submundo do crime bolsonarista mente que o artigo 142 da Constituição autoriza uma intervenção militar.

Armar golpistas é parte do plano de “ucranizar” o Brasil, termo que os bolsonaristas usam para defender conflitos de rua como os que se seguiram às manifestações de 2013-2014 na Ucrânia.


Uma matéria do Washington Post de 30 de outubro de 2019 indicava a preocupação das autoridades americanas com o fluxo de extremistas de direita que iam lutar na do leste da Ucrânia para adquirir experiência de combate.

Em 2016, a polícia gaúcha descobriu que neonazistas estavam recrutando brasileiros para lutar contra a Rússia no infame Batalhão Azov, onde a infiltração neonazista era forte.

Nas últimas manifestações bolsonaristas havia bandeiras ucranianas. No caso da bandeira azul e amarela com o tridente do príncipe Vladimir, alguém poderia dizer que era só a bandeira de um país com seu brasão sobreposto. Mas, mesmo se for, o que ela está fazendo em uma manifestação brasileira? A bandeira de Cuba em uma manifestação de esquerda é só uma bandeira caribenha ou é um manifesto?

A Ucrânia poderia simbolizar várias coisas, mas, em caso de dúvida, os manifestantes também carregavam a bandeira vermelha e preta usada pela facção de extrema-direita ucraniana Pravy Sektor (“Setor Direito”), envolvida nos violentos conflitos de rua de 2014.

A tentativa de formar milícias bolsonaristas é sinal de que Bolsonaro não conta com o apoio do comando das Forças Armadas para tentar seu golpe. Vejam só o que conta como boa notícia no Brasil de hoje.

Mesmo assim, os militantes armados podem acirrar o conflito nas ruas para forçar uma intervenção militar “artigo 142” ou para tentar entusiasmar golpistas no Exército dispostos a desertar.

A radicalização de rua também acontece ao mesmo tempo em que Bolsonaro entrega o Orçamento federal aos políticos mais corruptos de Brasília. Na interpretação otimista, está fomentando (e armando) a radicalização para desviar atenção dessas transações e, de novo, veja o que é a interpretação otimista no Brasil de Bolsonaro.

Na interpretação pessimista, o centrão está sendo comprado para eleger um sucessor de Rodrigo Maia que ajude a mesma escalada autoritária que as milícias defenderão nas ruas.

A propósito, a Ucrânia, como o Brasil, vem tentando consolidar sua democracia, e não tem nada a ver com as maluquices de Bolsonaro.

Desde a revolta de 2014, sua posição no ranking da Transparência Internacional (126º), que lista os países segundo a percepção de corrupção (dos menos corruptos para os mais corruptos) melhorou, mas ainda é pior que a do Brasil (106º), mesmo com a piora de percepção brasileira após as revelações da Lava Jato.

Não somos nós que precisamos copiar os extremistas ucranianos, os democratas de lá é que precisam tentar uma Lava Jato que não acabe em Bolsonaro.
Celso Rocha de Barros