terça-feira, 4 de fevereiro de 2025
Os neorreacionários que vêm das trevas
Talvez muitos já tenham esquecido as utopias que dominaram o ambiente cibernético, no início da segunda década deste século, quando as manifestações na Praça Tahrir, no centro do Cairo, e noutras cidades árabes prenunciavam um crescimento revolucionário das liberdades, nomeado com uma metáfora: a “Primavera Árabe”.
A estimular e a fornecer os instrumentos necessários para a mobilização popular estavam as tecnologias digitais de informação e comunicação que – dizia-se – permitiam o movimento espontâneo e completamente horizontal, sem líderes, sem formações hierárquicas. Por todo o lado entoavam-se hinos a este novo potencial de revolta ou até de revolução. A jornalista americana Heather Brooke, a trabalhar em Inglaterra, consagrou este optimismo político-cibernético num livro de 2011 que assegurava no título: The Revolution Will Be Digitised. À “sociedade em rede”, teorizada por um famoso sociólogo espanhol, Manuel Castells, correspondia a revolta e a sublevação em rede, orientadas pela ideia de partilha recíproca, sem as guras da liderança e sem organização vertical.
A crença de que a tecnologia digital estava a promover a colaboração, a transparência e as reivindicações políticas e sociais de uma esquerda universal encantada com as redes e em desencanto com os partidos propagou-se por todo o lado e deu lugar a numerosos acontecimentos: o Occupy Wall Street, os acampamentos na Puerta del Sol, em Madrid, os movimentos hackers politizados, o Wikileaks, o Anonymous, etc. Quem se lembra ainda da máscara, adotada como símbolo, mimetizando o rosto de um soldado inglês do século XVI, Guy Fawkes, que lutou pela Espanha católica?
Todos esses poderes das redes que tinham dado origem às utopias cibernéticas de uma nova esquerda e passavam atestados de inutilidade aos media tradicionais estão hoje mais activos do que nunca e com bastantes provas dadas. Mas mudaram de sítio: foram apropriados por outros utilizadores, passaram a ser moldados por proprietários que investiram neles outros objetivos e ideais. Agora é a extrema-direita neorreacionária que usa esses poderes com grande sucesso.
A rede sem líderes, vista como uma outra forma de fazer política, instaurando uma esfera pública que levava às últimas consequências aquela que o Iluminismo tinha concebido, caiu nas mãos da extrema-direita. E o ideal da leaderlessness foi substituído por uma liderança que se parece cada vez mais com o comando de um Führer com várias cabeças. Estamos agora confrontados com as afecções e a estética do ciberfascismo. O Sieg Heil (a saudação nazi) de Elon Musk, no dia da investidura de Trump, foi a manifestação ostensiva dos instrumentos afetivos do fascismo que estão a ser restaurados.
Não foi esse o primeiro sinal da ascensão dos neorreacionários. No dia 5 de novembro do ano passado, na noite da segunda vitória de Trump, Elon Musk celebrou o seu triunfo partilhando na sua página da rede X esta mensagem que incitava à reunião das massas que tinham votado pelo MAGA, o Make America Great Again: “Dark MAGA Assemble!”. O dark adensava a mensagem, dava-lhe um tom esotérico (é sabido que o culto do esoterismo está na origem dos fascismos). E, repetindo mais tarde a mensagem, acrescenta-lhe outro elemento: “I’m Dark Gothic MAGA”. O imaginário e a estética dark gothic convoca o chamado Dark Enlightenment (isto é, as “Luzes Obscuras”, o “Iluminismo das Trevas”), proposto como doutrina por um neorreacionário inglês, escritor e blogger, chamado Nick Land.
O Dark Enlightenment é um paradoxo que funciona como um nome irónico: é um “Iluminismo” que visa não o progresso, mas o passado. É uma convergência entre as tecnologias do futuro e os valores do passado, cuja realização implica remontar às fontes míticas do Ocidente. E tudo isto fundado numa interpretação do destino da “raça” branca. A estética dark gothic está virada para uma archè, um mito das origens, muito embora se sirva das técnicas futuristas. O Iluminismo obscuro do neorreacionaríssimo de caráter esotérico e pagão é uma espécie de metapolítica que a extrema-direita de Silicon Valley segrega e aspira a difundir no mundo inteiro.
As manifestações e revoltas por volta de 2010 foram a expressão de um novo ambiente cibernético que acreditava em novas formas de mobilização e de organização das massas. O neorreacionaríssimo a que estamos a assistir dá às massas forma de expressão, mas seguindo o modo de as organizar próprio do fascismo. Já não exatamente como o fascismo histórico, mas com as características de um fascismo tardio, um “late fascism”, para usar uma categoria desenvolvida pelo filósofo italiano Alberto Toscano).
Quem imaginaria, em 2010, ou até mais recentemente, que seria esta a realidade do mundo em que vivemos?
A estimular e a fornecer os instrumentos necessários para a mobilização popular estavam as tecnologias digitais de informação e comunicação que – dizia-se – permitiam o movimento espontâneo e completamente horizontal, sem líderes, sem formações hierárquicas. Por todo o lado entoavam-se hinos a este novo potencial de revolta ou até de revolução. A jornalista americana Heather Brooke, a trabalhar em Inglaterra, consagrou este optimismo político-cibernético num livro de 2011 que assegurava no título: The Revolution Will Be Digitised. À “sociedade em rede”, teorizada por um famoso sociólogo espanhol, Manuel Castells, correspondia a revolta e a sublevação em rede, orientadas pela ideia de partilha recíproca, sem as guras da liderança e sem organização vertical.
A crença de que a tecnologia digital estava a promover a colaboração, a transparência e as reivindicações políticas e sociais de uma esquerda universal encantada com as redes e em desencanto com os partidos propagou-se por todo o lado e deu lugar a numerosos acontecimentos: o Occupy Wall Street, os acampamentos na Puerta del Sol, em Madrid, os movimentos hackers politizados, o Wikileaks, o Anonymous, etc. Quem se lembra ainda da máscara, adotada como símbolo, mimetizando o rosto de um soldado inglês do século XVI, Guy Fawkes, que lutou pela Espanha católica?
Todos esses poderes das redes que tinham dado origem às utopias cibernéticas de uma nova esquerda e passavam atestados de inutilidade aos media tradicionais estão hoje mais activos do que nunca e com bastantes provas dadas. Mas mudaram de sítio: foram apropriados por outros utilizadores, passaram a ser moldados por proprietários que investiram neles outros objetivos e ideais. Agora é a extrema-direita neorreacionária que usa esses poderes com grande sucesso.
A rede sem líderes, vista como uma outra forma de fazer política, instaurando uma esfera pública que levava às últimas consequências aquela que o Iluminismo tinha concebido, caiu nas mãos da extrema-direita. E o ideal da leaderlessness foi substituído por uma liderança que se parece cada vez mais com o comando de um Führer com várias cabeças. Estamos agora confrontados com as afecções e a estética do ciberfascismo. O Sieg Heil (a saudação nazi) de Elon Musk, no dia da investidura de Trump, foi a manifestação ostensiva dos instrumentos afetivos do fascismo que estão a ser restaurados.
Não foi esse o primeiro sinal da ascensão dos neorreacionários. No dia 5 de novembro do ano passado, na noite da segunda vitória de Trump, Elon Musk celebrou o seu triunfo partilhando na sua página da rede X esta mensagem que incitava à reunião das massas que tinham votado pelo MAGA, o Make America Great Again: “Dark MAGA Assemble!”. O dark adensava a mensagem, dava-lhe um tom esotérico (é sabido que o culto do esoterismo está na origem dos fascismos). E, repetindo mais tarde a mensagem, acrescenta-lhe outro elemento: “I’m Dark Gothic MAGA”. O imaginário e a estética dark gothic convoca o chamado Dark Enlightenment (isto é, as “Luzes Obscuras”, o “Iluminismo das Trevas”), proposto como doutrina por um neorreacionário inglês, escritor e blogger, chamado Nick Land.
O Dark Enlightenment é um paradoxo que funciona como um nome irónico: é um “Iluminismo” que visa não o progresso, mas o passado. É uma convergência entre as tecnologias do futuro e os valores do passado, cuja realização implica remontar às fontes míticas do Ocidente. E tudo isto fundado numa interpretação do destino da “raça” branca. A estética dark gothic está virada para uma archè, um mito das origens, muito embora se sirva das técnicas futuristas. O Iluminismo obscuro do neorreacionaríssimo de caráter esotérico e pagão é uma espécie de metapolítica que a extrema-direita de Silicon Valley segrega e aspira a difundir no mundo inteiro.
As manifestações e revoltas por volta de 2010 foram a expressão de um novo ambiente cibernético que acreditava em novas formas de mobilização e de organização das massas. O neorreacionaríssimo a que estamos a assistir dá às massas forma de expressão, mas seguindo o modo de as organizar próprio do fascismo. Já não exatamente como o fascismo histórico, mas com as características de um fascismo tardio, um “late fascism”, para usar uma categoria desenvolvida pelo filósofo italiano Alberto Toscano).
Quem imaginaria, em 2010, ou até mais recentemente, que seria esta a realidade do mundo em que vivemos?
O Neonazismo dos bilionários: quando a desigualdade é virtude
Joshua Haldeman, também conhecido como o avô materno de Elon Musk, esteve envolvido com o autodeclarado Movimento Tecnocrático Canadense durante as décadas de 1930 e 1940. A Technocracy Incorporated propunha que cientistas e engenheiros deveriam ser os governantes e os reais políticos, acreditando que isso também solucionaria todos os problemas sociais.
Os integrantes do movimento adotavam um “X” em seus nomes e utilizavam roupas e veículos cinzas, elementos que remetiam a movimentos fascistas da época. Com a entrada do Canadá na Segunda Guerra Mundial, o grupo foi proibido e classificado como uma ameaça à segurança nacional, o que levou à prisão de Haldeman por suas atividades políticas ilegais.
Após deixar o Canadá, Haldeman mudou-se para a África do Sul, onde manifestou apoio ao regime do Apartheid, declarando que o país representava a “liderança branca do mundo”. Em 2023, Elon Musk foi criticado por denunciar o que chamou de “genocídio branco” na África do Sul, após Julius Malema, líder do partido sul-africano Combatentes da Liberdade Econômica (EFF), entoar a música Kill the Boer em um comício. Malema reagiu chamando Musk de “ignorante” e afirmou que a canção fazia parte da resistência ao Apartheid.
Para título de esclarecimento, a música Kill the Boer (em tradução, Mate o Boer) tem origem no contexto da luta contra o Apartheid na África do Sul. Durante o regime segregacionista, que vigorou oficialmente de 1948 a 1994, muitas músicas de protesto foram compostas como forma de resistência contra a opressão racial. O termo Boer refere-se, historicamente, aos fazendeiros brancos de origem africâner, um grupo que desempenhou papel significativo na governança do Apartheid. Além disso, em novembro de 2023, a Casa Branca repreendeu Musk por divulgar teorias conspiratórias antissemitas em suas redes sociais, considerando as ações do bilionário uma “promoção deplorável” de opinião discriminatória, e logo, antissemitismo.
Em janeiro de 2024, em um ato evidente de mea-culpa, Elon Musk visitou o campo de concentração de Auschwitz acompanhado de personalidades como o comentarista político Ben Shapiro e o sobrevivente do Holocausto Gidon Lev. A visita ocorreu após críticas contundentes sobre como a plataforma X, anteriormente Twitter, lidava com conteúdos antissemitas. Durante a visita, Musk afirmou ter sido “ingênuo” sobre o antissemitismo, mas reiterou que não percebia o preconceito em seus círculos na plataforma.
Não há erro ou engano. Elon Musk pode negar ou ironizar com deboche a interpretação de que seu gesto, durante a posse de Trump, foi uma saudação nazista. Mas a história não mente. A filiação de seus avós ao Partido Nazista Canadense, o privilégio de seu pai com as minas de esmeralda em meio ao Apartheid sul-africano e o patrocínio pessoal de Musk ao partido alemão AfD, que defende a anistia para soldados da SS, não são coincidências isoladas. São fragmentos de um quebra-cabeça que revela uma afinidade ideológica preocupante.
Se há um manifesto por vir é uma doutrina que, tal como o nazismo original, se mascarará sob a ideologia dominante de seu tempo para legitimar o uso da força e a concentração de poder.
Assim como o nazismo hitlerista se autodenominava “nacional-socialista” para se apropriar da linguagem de um movimento de massa que contestava o establishment, o neonazismo contemporâneo pode se apropriar do libertarianismo, utilizando seu apelo à liberdade individual e ao livre mercado para se capilarizar em termos totalitários. Uma doutrina nazista libertária, patrocinada por bilionários, pode parecer, à primeira vista, uma contradição ideológica intrigante. No entanto, não é impossível, dado que ambas as vertentes compartilham elementos autoritários e hierárquicos que podem ser reinterpretados para justificar um modelo de controle elitista sob o véu da “liberdade”. Imagine uma fusão cibernética entre o autoritarismo racial e cultural do nazismo com o individualismo extremo e a desregulamentação promovida pelo libertarianismo. O resultado seria uma distopia tecnocrática conduzida por uma elite midiático-econômica, onde a liberdade é redefinida como dominação privada.
Esse princípio talvez já seja o mais palpável. As redes sociais estão contaminadas pelo ódio ao trabalhador. No discurso que apela ao “nós contra eles”, a ameaça sempre vem de fora: o imigrante, o latino, o bárbaro. É sempre o estrangeiro o culpado por todos os males, injustiças e doenças. O neonazismo “libertário” exalta uma versão deturpada do “mérito”, na qual a riqueza acumulada é vista como a expressão máxima da superioridade humana. A desigualdade não é apenas aceita, mas glorificada como evidência de que os mais ricos possuem direitos e capacidades inatas que os tornam líderes naturais. É um direito divino dos reis reinventados, onde bilionários são vistos como deuses que caminham entre nós, uma nova aristocracia tecnológica com o poder de definir o que é o ser humano.
O segundo passo parece distante, mas logo chegará às manchetes como uma boa nova. As pesquisas de implantes e próteses, como o Neuralink — dispositivo do guarda-chuva de empreendimentos de engenharia social de Musk —, propagandeado como capaz de curar doenças do sistema nervoso e aperfeiçoar habilidades cognitivas, são exemplos de como esse neonazismo libertário abraça a eugenia e o transumanismo. Sob o pretexto de eficiência econômica e inovação, justifica-se a exclusão de grupos “menos produtivos” ou “menos adaptáveis”. Inclusive, a recente política de Zuckeberg ao declarar que demitir 5% dos seus funcionários menos produtivos já demonstra isso.
Em seguida, veremos como os avanços em bioengenharia e inteligência artificial podem facilmente ser utilizados para criar uma elite cibernética, enquanto as massas periféricas são relegadas à própria sorte ou transformadas em mão de obra descartável. A disparidade educacional entre países ricos e pobres já é um prenúncio desse futuro distópico.
Em um texto do início dos anos 2000, “Regras para o Parque Humano” (Regeln für den Menschenpark), o filósofo alemão Peter Sloterdijk aborda a eugenia de maneira provocativa e polêmica, situando-a no contexto de uma crítica mais ampla sobre o papel da cultura e da tecnologia na formação da humanidade. Sloterdijk fala sobre como a humanidade tem buscado domesticar a si mesma ao longo da história, comparando os seres humanos a animais que precisam ser domesticados por meio do “humanismo”, e mais recentemente, pela técnica.
Sloterdijk não defende a eugenia, mas a utiliza como um ponto de partida para refletir sobre os desafios éticos e existenciais que a humanidade enfrenta em uma era de revoluções tecnocientíficas. Ele nos convida a pensar criticamente sobre como essas tecnologias podem ser usadas e quem decide o que significa melhorar a humanidade. Seu trabalho parece, inoportunamente atual, e um alerta sobre os perigos de uma eugenia disfarçada de progresso, bem como um chamado para repensarmos as regras que governam o parque humano em que vivemos.
Ademais, o caminho desse parque é ressignificar por completo o sentido de liberdade, de modo a privatizá-lo inteiramente. Ao invés da liberdade no sentido universal, o que teremos será a “liberdade como serviço”. Seremos todos escravos de incontáveis telas de co-working, cuja riqueza da produção se reverte integralmente para os poderosos, que não têm mais qualquer restrição sobre os nossos corpos. O Estado será desmantelado ou transformado em um instrumento de defesa dos interesses privados, enquanto as liberdades individuais das massas serão subordinadas às vontades dos donos do capital. A livre iniciativa será a justificativa máxima para práticas exploratórias e excludentes, apresentadas como uma escolha voluntária dos indivíduos.
O meio para a legitimação desse totalitarismo 2.0 já pode ser visto. O culto à extrema riqueza transforma o burguês em herói. Tecnologias avançadas de comunicação e redes sociais são utilizadas para disseminar uma ideologia que glorifica o sucesso individual e culpa os fracassados por sua própria situação. A manipulação emocional e simbólica é fundamental para assegurar a adesão popular a uma estrutura de dominação disfarçada de liberdade. A propaganda não apenas vende produtos, mas também ideias, valores e visões de mundo que consolidam o poder da elite. É assim quando vemos hoje o fetichismo de artigos de luxo serem o meio para o esvaziamento da dignidade humana.
Jean Baudrillard descreve a hiper-realidade como um estágio em que a distinção entre o real e o simulado desaparece. Nesse estágio, as imagens, os signos e as narrativas midiáticas não apenas refletem a realidade, mas a produzem. A propaganda e a manipulação cultural funcionam justamente nesse espaço, onde a realidade é construída por meio de simulações que moldam percepções, desejos e comportamentos. Por exemplo, a imagem de um bilionário como Elon Musk não é apenas a representação de um indivíduo, mas um simulacro que encarna valores como inovação, sucesso e poder. Essa imagem, repetida incessantemente nas mídias, torna-se mais real do que o próprio Musk, influenciando como as pessoas veem não apenas ele, mas também o sucesso, a riqueza e o mérito.
O último passo será, após a extinção de todos os serviços públicos, o fim também da segurança pública e política real de Estado. Em vez de um exército estatal, haverá a ascensão de forças militares e milícias privatizadas, compostas por mercenários pagos pelos bilionários. Essas forças serão usadas para proteger os interesses econômicos globais da elite, enquanto conflitos sociais internos serão tratados como ameaças à liberdade individual dos ricos. A violência será justificada como uma forma de proteger o livre mercado e a “ordem natural” das coisas. Se tal passo pode parecer desarrazoado, custa lembrar que Putin, outro líder populista e apoiador inesperado de Trump, já usa dessa estratégia de terceirização do exército, por meio da contratação de mercenários, como os da milícia Wagner (um nome sugestivo com a alusão ao poeta que era adorado por Hitler), na guerra contra a Ucrânia.
Alexandr Duguin, filósofo russo tido como o guru de Putin, embora não defenda explicitamente o militarismo privatizado, em suas ideias sobre a fragmentação do poder global e o declínio do Estado-nação tradicional, elabora como que uma teoria política que está por vir, deve dar conta de um cenário onde atores não estatais (como corporações ou milícias) ganham mais influência. Em seu livro A quarta teoria política, ele defende um multipolarismo imperialista, onde várias civilizações e potências regionais competem pelo poder. Nesse contexto, é possível imaginar que forças militares privadas ou semiprivadas possam surgir não apenas como atores importantes, mas facções determinantes, ainda quando invisíveis, em regiões onde o Estado é fraco ou falido.
O que estamos testemunhando é a emergência de uma nova forma de totalitarismo, que se apropria da linguagem da liberdade para justificar a dominação. Assim como a frase escrita no portão de entrada do campo de concentração de Auschwitz I, na Polônia, “Arbeit macht frei” (O trabalho liberta), o culto ao trabalho e à democratização da fortuna é só um ardil para a cooptação do alienado. Esse projeto não é apenas uma ameaça teórica; ele já está em andamento, moldando as estruturas econômicas, políticas e culturais de nossa sociedade. A fusão entre o autoritarismo racial do nazismo e o individualismo extremo do libertarianismo é uma distopia encarnada onde a liberdade é redefinida como ativo, a desigualdade é celebrada como graça e a humanidade é dividida entre uma elite “melhorada” e uma massa descartável.
Os integrantes do movimento adotavam um “X” em seus nomes e utilizavam roupas e veículos cinzas, elementos que remetiam a movimentos fascistas da época. Com a entrada do Canadá na Segunda Guerra Mundial, o grupo foi proibido e classificado como uma ameaça à segurança nacional, o que levou à prisão de Haldeman por suas atividades políticas ilegais.
Após deixar o Canadá, Haldeman mudou-se para a África do Sul, onde manifestou apoio ao regime do Apartheid, declarando que o país representava a “liderança branca do mundo”. Em 2023, Elon Musk foi criticado por denunciar o que chamou de “genocídio branco” na África do Sul, após Julius Malema, líder do partido sul-africano Combatentes da Liberdade Econômica (EFF), entoar a música Kill the Boer em um comício. Malema reagiu chamando Musk de “ignorante” e afirmou que a canção fazia parte da resistência ao Apartheid.
Para título de esclarecimento, a música Kill the Boer (em tradução, Mate o Boer) tem origem no contexto da luta contra o Apartheid na África do Sul. Durante o regime segregacionista, que vigorou oficialmente de 1948 a 1994, muitas músicas de protesto foram compostas como forma de resistência contra a opressão racial. O termo Boer refere-se, historicamente, aos fazendeiros brancos de origem africâner, um grupo que desempenhou papel significativo na governança do Apartheid. Além disso, em novembro de 2023, a Casa Branca repreendeu Musk por divulgar teorias conspiratórias antissemitas em suas redes sociais, considerando as ações do bilionário uma “promoção deplorável” de opinião discriminatória, e logo, antissemitismo.
Em janeiro de 2024, em um ato evidente de mea-culpa, Elon Musk visitou o campo de concentração de Auschwitz acompanhado de personalidades como o comentarista político Ben Shapiro e o sobrevivente do Holocausto Gidon Lev. A visita ocorreu após críticas contundentes sobre como a plataforma X, anteriormente Twitter, lidava com conteúdos antissemitas. Durante a visita, Musk afirmou ter sido “ingênuo” sobre o antissemitismo, mas reiterou que não percebia o preconceito em seus círculos na plataforma.
Não há erro ou engano. Elon Musk pode negar ou ironizar com deboche a interpretação de que seu gesto, durante a posse de Trump, foi uma saudação nazista. Mas a história não mente. A filiação de seus avós ao Partido Nazista Canadense, o privilégio de seu pai com as minas de esmeralda em meio ao Apartheid sul-africano e o patrocínio pessoal de Musk ao partido alemão AfD, que defende a anistia para soldados da SS, não são coincidências isoladas. São fragmentos de um quebra-cabeça que revela uma afinidade ideológica preocupante.
Se há um manifesto por vir é uma doutrina que, tal como o nazismo original, se mascarará sob a ideologia dominante de seu tempo para legitimar o uso da força e a concentração de poder.
Assim como o nazismo hitlerista se autodenominava “nacional-socialista” para se apropriar da linguagem de um movimento de massa que contestava o establishment, o neonazismo contemporâneo pode se apropriar do libertarianismo, utilizando seu apelo à liberdade individual e ao livre mercado para se capilarizar em termos totalitários. Uma doutrina nazista libertária, patrocinada por bilionários, pode parecer, à primeira vista, uma contradição ideológica intrigante. No entanto, não é impossível, dado que ambas as vertentes compartilham elementos autoritários e hierárquicos que podem ser reinterpretados para justificar um modelo de controle elitista sob o véu da “liberdade”. Imagine uma fusão cibernética entre o autoritarismo racial e cultural do nazismo com o individualismo extremo e a desregulamentação promovida pelo libertarianismo. O resultado seria uma distopia tecnocrática conduzida por uma elite midiático-econômica, onde a liberdade é redefinida como dominação privada.
Esse princípio talvez já seja o mais palpável. As redes sociais estão contaminadas pelo ódio ao trabalhador. No discurso que apela ao “nós contra eles”, a ameaça sempre vem de fora: o imigrante, o latino, o bárbaro. É sempre o estrangeiro o culpado por todos os males, injustiças e doenças. O neonazismo “libertário” exalta uma versão deturpada do “mérito”, na qual a riqueza acumulada é vista como a expressão máxima da superioridade humana. A desigualdade não é apenas aceita, mas glorificada como evidência de que os mais ricos possuem direitos e capacidades inatas que os tornam líderes naturais. É um direito divino dos reis reinventados, onde bilionários são vistos como deuses que caminham entre nós, uma nova aristocracia tecnológica com o poder de definir o que é o ser humano.
O segundo passo parece distante, mas logo chegará às manchetes como uma boa nova. As pesquisas de implantes e próteses, como o Neuralink — dispositivo do guarda-chuva de empreendimentos de engenharia social de Musk —, propagandeado como capaz de curar doenças do sistema nervoso e aperfeiçoar habilidades cognitivas, são exemplos de como esse neonazismo libertário abraça a eugenia e o transumanismo. Sob o pretexto de eficiência econômica e inovação, justifica-se a exclusão de grupos “menos produtivos” ou “menos adaptáveis”. Inclusive, a recente política de Zuckeberg ao declarar que demitir 5% dos seus funcionários menos produtivos já demonstra isso.
Em seguida, veremos como os avanços em bioengenharia e inteligência artificial podem facilmente ser utilizados para criar uma elite cibernética, enquanto as massas periféricas são relegadas à própria sorte ou transformadas em mão de obra descartável. A disparidade educacional entre países ricos e pobres já é um prenúncio desse futuro distópico.
Em um texto do início dos anos 2000, “Regras para o Parque Humano” (Regeln für den Menschenpark), o filósofo alemão Peter Sloterdijk aborda a eugenia de maneira provocativa e polêmica, situando-a no contexto de uma crítica mais ampla sobre o papel da cultura e da tecnologia na formação da humanidade. Sloterdijk fala sobre como a humanidade tem buscado domesticar a si mesma ao longo da história, comparando os seres humanos a animais que precisam ser domesticados por meio do “humanismo”, e mais recentemente, pela técnica.
Sloterdijk não defende a eugenia, mas a utiliza como um ponto de partida para refletir sobre os desafios éticos e existenciais que a humanidade enfrenta em uma era de revoluções tecnocientíficas. Ele nos convida a pensar criticamente sobre como essas tecnologias podem ser usadas e quem decide o que significa melhorar a humanidade. Seu trabalho parece, inoportunamente atual, e um alerta sobre os perigos de uma eugenia disfarçada de progresso, bem como um chamado para repensarmos as regras que governam o parque humano em que vivemos.
Ademais, o caminho desse parque é ressignificar por completo o sentido de liberdade, de modo a privatizá-lo inteiramente. Ao invés da liberdade no sentido universal, o que teremos será a “liberdade como serviço”. Seremos todos escravos de incontáveis telas de co-working, cuja riqueza da produção se reverte integralmente para os poderosos, que não têm mais qualquer restrição sobre os nossos corpos. O Estado será desmantelado ou transformado em um instrumento de defesa dos interesses privados, enquanto as liberdades individuais das massas serão subordinadas às vontades dos donos do capital. A livre iniciativa será a justificativa máxima para práticas exploratórias e excludentes, apresentadas como uma escolha voluntária dos indivíduos.
O meio para a legitimação desse totalitarismo 2.0 já pode ser visto. O culto à extrema riqueza transforma o burguês em herói. Tecnologias avançadas de comunicação e redes sociais são utilizadas para disseminar uma ideologia que glorifica o sucesso individual e culpa os fracassados por sua própria situação. A manipulação emocional e simbólica é fundamental para assegurar a adesão popular a uma estrutura de dominação disfarçada de liberdade. A propaganda não apenas vende produtos, mas também ideias, valores e visões de mundo que consolidam o poder da elite. É assim quando vemos hoje o fetichismo de artigos de luxo serem o meio para o esvaziamento da dignidade humana.
Jean Baudrillard descreve a hiper-realidade como um estágio em que a distinção entre o real e o simulado desaparece. Nesse estágio, as imagens, os signos e as narrativas midiáticas não apenas refletem a realidade, mas a produzem. A propaganda e a manipulação cultural funcionam justamente nesse espaço, onde a realidade é construída por meio de simulações que moldam percepções, desejos e comportamentos. Por exemplo, a imagem de um bilionário como Elon Musk não é apenas a representação de um indivíduo, mas um simulacro que encarna valores como inovação, sucesso e poder. Essa imagem, repetida incessantemente nas mídias, torna-se mais real do que o próprio Musk, influenciando como as pessoas veem não apenas ele, mas também o sucesso, a riqueza e o mérito.
O último passo será, após a extinção de todos os serviços públicos, o fim também da segurança pública e política real de Estado. Em vez de um exército estatal, haverá a ascensão de forças militares e milícias privatizadas, compostas por mercenários pagos pelos bilionários. Essas forças serão usadas para proteger os interesses econômicos globais da elite, enquanto conflitos sociais internos serão tratados como ameaças à liberdade individual dos ricos. A violência será justificada como uma forma de proteger o livre mercado e a “ordem natural” das coisas. Se tal passo pode parecer desarrazoado, custa lembrar que Putin, outro líder populista e apoiador inesperado de Trump, já usa dessa estratégia de terceirização do exército, por meio da contratação de mercenários, como os da milícia Wagner (um nome sugestivo com a alusão ao poeta que era adorado por Hitler), na guerra contra a Ucrânia.
Alexandr Duguin, filósofo russo tido como o guru de Putin, embora não defenda explicitamente o militarismo privatizado, em suas ideias sobre a fragmentação do poder global e o declínio do Estado-nação tradicional, elabora como que uma teoria política que está por vir, deve dar conta de um cenário onde atores não estatais (como corporações ou milícias) ganham mais influência. Em seu livro A quarta teoria política, ele defende um multipolarismo imperialista, onde várias civilizações e potências regionais competem pelo poder. Nesse contexto, é possível imaginar que forças militares privadas ou semiprivadas possam surgir não apenas como atores importantes, mas facções determinantes, ainda quando invisíveis, em regiões onde o Estado é fraco ou falido.
O que estamos testemunhando é a emergência de uma nova forma de totalitarismo, que se apropria da linguagem da liberdade para justificar a dominação. Assim como a frase escrita no portão de entrada do campo de concentração de Auschwitz I, na Polônia, “Arbeit macht frei” (O trabalho liberta), o culto ao trabalho e à democratização da fortuna é só um ardil para a cooptação do alienado. Esse projeto não é apenas uma ameaça teórica; ele já está em andamento, moldando as estruturas econômicas, políticas e culturais de nossa sociedade. A fusão entre o autoritarismo racial do nazismo e o individualismo extremo do libertarianismo é uma distopia encarnada onde a liberdade é redefinida como ativo, a desigualdade é celebrada como graça e a humanidade é dividida entre uma elite “melhorada” e uma massa descartável.
Mediocridade
A cada bela impressão que causamos, conquistamos um inimigo. Para ser popular é indispensável ser medíocre.
Oscar Wilde
YMCA, de hino gay à masculinidade trumpista
Reza a história que, no final da década de 70, uma revista terá publicado um anúncio singelo: “Procura-se tipos macho: devem dançar e ter bigode”. Os Village People eram, até então, um projeto de sucesso marginal liderado por um produtor, Jacques Morali, e um vocalista, Victor Willis. O propósito era alargar a formação com algumas personagens alinhadas com a cena disco que então tomava conta da noite gay nova-iorquina. O resultado do casting tornou-se um sucesso de massas: a acompanhar Willis, o polícia, passaríamos a ter um bombeiro, um índio, um canalizador, um motard, um servente e um cowboy.
Com uma estética saída das ilustrações de Tom of Finland, o novo elenco da banda não escondia ao que vinha, remetendo para um cruzamento explícito entre estereótipos da identidade masculina norte-americana e a sua transmutação em fantasias homoeróticas. A ausência de subtileza visual, acompanhada pelo denominador mínimo do disco sound, catapultou o projeto para as tabelas de vendas e para uma certa ubiquidade mediática. O segundo álbum, sintomaticamente intitulado Macho Man e, depois, em particular, YMCA, com a sua coreografia criada espontaneamente numa apresentação televisiva, persegue-nos até hoje.
Talvez o termo perseguição seja agora ainda mais apropriado: YMCA, antes apenas uma manifestação que trazia à superfície, com ligeireza doméstica e pueril, um universo subterrâneo que habitava Greenwich Village (zona franca da cultura gay, então na ressaca dos motins de Stonewall), transformou-se, pela mão de Trump, em hino do movimento MAGA.
Há, de fato, um estranho caminho que vai dos Village People à atual coligação de interesses contraditórios entre oligarcas do tecnofeudalismo, vestidos sombriamente, e tradicionalistas neoreacionários, nascidos das cinzas do Tea Party. Mas poucos momentos tornam tão visível a força dessa coligação como quando, num dos eventos da longa tomada de posse, Trump, em palco com uma versão reformada da banda, arrisca uns tímidos movimentos de dança, ao som de YMCA, perante uma plateia de anglosaxónicos brancos e protestantes.
Podemos tomar esta apropriação de um hino gay apenas como um momento de divertimento, desprovido de sentido político-cultural. Temo que não seja assim. Logo a abrir a canção surge um apelo aos “jovens rapazes” para “encontrarem muitas formas de se divertirem”. Ora, como António Guerreiro recordou na semana passada no PÚBLICO, há todo um imaginário preenchido por fantasias de dominação masculina que ajuda a compreender a nova modalidade de poder político-financeiro, inscrita, uma vez mais, nos corpos e nos afetos – e, acrescento, no divertimento. Não estamos face a uma novidade histórica, basta recuperar as descrições particularmente gráficas de Jonathan Littell em As Benevolentes.
Para compreendermos a sinistralidade moral a que temos assistido, é incontornável refletir sobre a preocupação MAGA com a masculinidade de balneário e a ideia de que os homens necessitam de competição e de alguma dose de violência para não se sentirem perdidos. Mark Zuckerberg, em registo pós-choninhas, recorda isso mesmo num curto vídeo em que, enquanto alinha pela nova ortodoxia libertária na gestão de conteúdos online, se rebela contra a falta de “energia masculina” nas redes sociais e o consequente risco de “castração”. Paradoxalmente, na sua duplicidade sexual e comicidade, os corpos másculos dos Village People ajudam a cimentar hipocritamente a coligação que sustenta Trump, que tem no ressentimento masculino o seu elo. Quem poderia antecipar?
Com uma estética saída das ilustrações de Tom of Finland, o novo elenco da banda não escondia ao que vinha, remetendo para um cruzamento explícito entre estereótipos da identidade masculina norte-americana e a sua transmutação em fantasias homoeróticas. A ausência de subtileza visual, acompanhada pelo denominador mínimo do disco sound, catapultou o projeto para as tabelas de vendas e para uma certa ubiquidade mediática. O segundo álbum, sintomaticamente intitulado Macho Man e, depois, em particular, YMCA, com a sua coreografia criada espontaneamente numa apresentação televisiva, persegue-nos até hoje.
Talvez o termo perseguição seja agora ainda mais apropriado: YMCA, antes apenas uma manifestação que trazia à superfície, com ligeireza doméstica e pueril, um universo subterrâneo que habitava Greenwich Village (zona franca da cultura gay, então na ressaca dos motins de Stonewall), transformou-se, pela mão de Trump, em hino do movimento MAGA.
Há, de fato, um estranho caminho que vai dos Village People à atual coligação de interesses contraditórios entre oligarcas do tecnofeudalismo, vestidos sombriamente, e tradicionalistas neoreacionários, nascidos das cinzas do Tea Party. Mas poucos momentos tornam tão visível a força dessa coligação como quando, num dos eventos da longa tomada de posse, Trump, em palco com uma versão reformada da banda, arrisca uns tímidos movimentos de dança, ao som de YMCA, perante uma plateia de anglosaxónicos brancos e protestantes.
Podemos tomar esta apropriação de um hino gay apenas como um momento de divertimento, desprovido de sentido político-cultural. Temo que não seja assim. Logo a abrir a canção surge um apelo aos “jovens rapazes” para “encontrarem muitas formas de se divertirem”. Ora, como António Guerreiro recordou na semana passada no PÚBLICO, há todo um imaginário preenchido por fantasias de dominação masculina que ajuda a compreender a nova modalidade de poder político-financeiro, inscrita, uma vez mais, nos corpos e nos afetos – e, acrescento, no divertimento. Não estamos face a uma novidade histórica, basta recuperar as descrições particularmente gráficas de Jonathan Littell em As Benevolentes.
Para compreendermos a sinistralidade moral a que temos assistido, é incontornável refletir sobre a preocupação MAGA com a masculinidade de balneário e a ideia de que os homens necessitam de competição e de alguma dose de violência para não se sentirem perdidos. Mark Zuckerberg, em registo pós-choninhas, recorda isso mesmo num curto vídeo em que, enquanto alinha pela nova ortodoxia libertária na gestão de conteúdos online, se rebela contra a falta de “energia masculina” nas redes sociais e o consequente risco de “castração”. Paradoxalmente, na sua duplicidade sexual e comicidade, os corpos másculos dos Village People ajudam a cimentar hipocritamente a coligação que sustenta Trump, que tem no ressentimento masculino o seu elo. Quem poderia antecipar?
O que dizem os ventos do Hemisfério Norte
A coalizão das big techs com o governo Trump é um tema inesgotável. Estava precisamente pensando nelas quando estourou o caso da DeepSeek, startup chinesa que fez as empresas de tecnologia dos Estados Unidos e da Europa perderem US$ 1 trilhão em valor de mercado porque demonstrou que pode fazer mais na inteligência artificial com menos dinheiro.
A empresa chinesa tem seus pontos vulneráveis, e um deles é não responder a questões políticas proibidas pelo Partido Comunista. Mas não deixa de ser um incentivo para os que têm condições de buscar um caminho autônomo.
Quando aconteceu esse pequeno terremoto no Vale do Silício, eu refletia sobre uma frase enigmática de Elon Musk na posse de Donald Trump. Ele disse que a conquista de Marte salvaria a civilização. Já mencionei o desejo de Trump pela Groenlândia e cheguei à conclusão de que talvez ele não seja tão negacionista assim. Musk, que produz carros elétricos, conta com a colonização do espaço como alternativa ao nosso planeta.
É muito provável que a visão dominante entre as big techs conte com a futura impossibilidade da vida na Terra e pense uma fuga para a frente em duas direções: a colonização do espaço ou um avanço tecnológico que reformule completamente o planeta e o torne habitável, apesar de toda a destruição.
Em ambos os casos, os ecologistas que propõem uma revisão da forma de consumir e produzir são vistos como nostálgicos retrógrados. Há até intelectuais que consideram a ecologia o novo ópio do povo.
Nessa formulação meio science fiction, não só o mundo será remodelado pela tecnologia. Ela também ampliará a vida dos seres humanos e mais adiante os imortalizará, codificando a consciência em aplicativos para uma eventual reencarnação em corpos sintéticos.
O sonho de recriar um planeta por meio da tecnologia já foi mencionado por John Gray como uma espécie de solidão radical. Um exemplo do que nos espera pode ser encontrado no livro de Rachel Carson “Primavera silenciosa”. Inspirador de muitos ambientalistas, fala da desaparição dos pássaros numa área contaminada por agrotóxicos.
Claro que a tecnologia pode reproduzir o canto dos pássaros, o barulho da chuva e outros artifícios que já existem nos nossos telefones. Mas alguns problemas decorrem dessa fuga adiante, a produção desenfreada que esses teóricos veem não só como destino humano, mas também como base da felicidade.
Um deles é o tempo. A multiplicação de eventos extremos, o crescente número de refugiados do clima, os problemas de saúde e alimentação que decorrem do aquecimento — tudo isso não pode esperar uma utopia duvidosa do sonho de consumo ilimitado. Estou apenas alinhando a existência dessas posições para acentuar que nem sempre estamos lidando com negacionistas do tipo Jair Bolsonaro.
Muito possivelmente, os ventos do Norte nos trazem uma nova concepção a discutir, segundo a qual o aquecimento existe, mas é preciso produzir e esgotar os recursos planetários porque a tecnologia encontrará resposta, e uma fração da humanidade sobreviverá não só para desfrutar esse futuro solitário ou, como alternativa, se mudar para Marte.
É importante registrar que um setor da esquerda também adota uma teoria da aceleração. Ele combate os ambientalistas com o argumento de que é preciso acelerar o capitalismo em busca de uma alternativa. Frear a desgovernada máquina do crescimento econômico apenas nos prenderia ao passado, fantasioso e injusto.
Minha intuição a partir da frase de Musk e do interesse de Trump pela Groenlândia é que estamos diante de políticas que, de certa forma, foram antecipadas pela teoria, sobretudo nos Estados Unidos.
Fernando Gabeira
*Uma análise brilhante dessas correntes de pensamento encontra-se no livro dos brasileiros Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro “Há mundo por vir?”
A empresa chinesa tem seus pontos vulneráveis, e um deles é não responder a questões políticas proibidas pelo Partido Comunista. Mas não deixa de ser um incentivo para os que têm condições de buscar um caminho autônomo.
Quando aconteceu esse pequeno terremoto no Vale do Silício, eu refletia sobre uma frase enigmática de Elon Musk na posse de Donald Trump. Ele disse que a conquista de Marte salvaria a civilização. Já mencionei o desejo de Trump pela Groenlândia e cheguei à conclusão de que talvez ele não seja tão negacionista assim. Musk, que produz carros elétricos, conta com a colonização do espaço como alternativa ao nosso planeta.
É muito provável que a visão dominante entre as big techs conte com a futura impossibilidade da vida na Terra e pense uma fuga para a frente em duas direções: a colonização do espaço ou um avanço tecnológico que reformule completamente o planeta e o torne habitável, apesar de toda a destruição.
Em ambos os casos, os ecologistas que propõem uma revisão da forma de consumir e produzir são vistos como nostálgicos retrógrados. Há até intelectuais que consideram a ecologia o novo ópio do povo.
Nessa formulação meio science fiction, não só o mundo será remodelado pela tecnologia. Ela também ampliará a vida dos seres humanos e mais adiante os imortalizará, codificando a consciência em aplicativos para uma eventual reencarnação em corpos sintéticos.
O sonho de recriar um planeta por meio da tecnologia já foi mencionado por John Gray como uma espécie de solidão radical. Um exemplo do que nos espera pode ser encontrado no livro de Rachel Carson “Primavera silenciosa”. Inspirador de muitos ambientalistas, fala da desaparição dos pássaros numa área contaminada por agrotóxicos.
Claro que a tecnologia pode reproduzir o canto dos pássaros, o barulho da chuva e outros artifícios que já existem nos nossos telefones. Mas alguns problemas decorrem dessa fuga adiante, a produção desenfreada que esses teóricos veem não só como destino humano, mas também como base da felicidade.
Um deles é o tempo. A multiplicação de eventos extremos, o crescente número de refugiados do clima, os problemas de saúde e alimentação que decorrem do aquecimento — tudo isso não pode esperar uma utopia duvidosa do sonho de consumo ilimitado. Estou apenas alinhando a existência dessas posições para acentuar que nem sempre estamos lidando com negacionistas do tipo Jair Bolsonaro.
Muito possivelmente, os ventos do Norte nos trazem uma nova concepção a discutir, segundo a qual o aquecimento existe, mas é preciso produzir e esgotar os recursos planetários porque a tecnologia encontrará resposta, e uma fração da humanidade sobreviverá não só para desfrutar esse futuro solitário ou, como alternativa, se mudar para Marte.
É importante registrar que um setor da esquerda também adota uma teoria da aceleração. Ele combate os ambientalistas com o argumento de que é preciso acelerar o capitalismo em busca de uma alternativa. Frear a desgovernada máquina do crescimento econômico apenas nos prenderia ao passado, fantasioso e injusto.
Minha intuição a partir da frase de Musk e do interesse de Trump pela Groenlândia é que estamos diante de políticas que, de certa forma, foram antecipadas pela teoria, sobretudo nos Estados Unidos.
Fernando Gabeira
*Uma análise brilhante dessas correntes de pensamento encontra-se no livro dos brasileiros Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro “Há mundo por vir?”
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