domingo, 1 de dezembro de 2024

Pensamento do Dia

 


Comprar, descartar, repetir: reflexões sobre o mundo material

Estou lendo, há algumas semanas, o livro Mundo Material: uma história substancial do nosso passado e futuro, de Ed Conway, e ele traz reflexões que raramente fazemos nos dias de hoje. E olha que eu penso bastante. Às vezes, até sinto uma certa dor de cabeça de tanto pensar — o famoso “overthinking” ou, como dizem alguns amigos em Portugal, “magicar”.

Mas, voltando ao livro, além de nos fazer “magicar” sobre o mundo, logo no início, algo me chamou atenção e certamente não vou esquecer: Ed Conway comenta que, para se produzir uma aliança de casamento de ouro vulgar, podem ser necessárias entre 4 e 20 toneladas de rocha. Apesar de pensar muito, nunca tinha refletido sobre isso — sobre a quantidade de ouro necessária para para produzir uma aliança ou brinco, por exemplo.

Em um momento em que se fala muito em transição energética, em digitalização de tudo, raramente nos damos conta de que, para abastecer esse mundo digital que está tão presente em nossas vidas — e que, ao mesmo, parece tão etéreo —, muitas matérias primas são necessárias. Nada no digital existe sem o material.


Assim como Ed Conway, percebo que passei grande parte da vida em outro mundo. Embora seja parte de um “ABC das fábricas” e da produção, diferentemente dos meus pais, grande parte da minha vida se desenrolou no mundo das ideias e dos serviços. Nesse mundo, também etéreo, vendemos serviços. É um mundo confortável: escrevemos textos, damos aulas, transferimos dinheiro, gravamos vídeos, entregamos pizzas aos finais de semana e desenvolvemos aplicativos.

Mas, quando você observa a cadeia produtiva de um semicondutor, por exemplo — que é apenas uma parte, porém fundamental, de praticamente todos os dispositivos eletrônicos que usamos no dia a dia —, percebe que ela envolve processos extremamente complexos e uma ampla gama de materiais. Desde a mineração de metais raros, passando pela fabricação em ambientes controlados, até a distribuição global, tudo depende de recursos materiais e humanos que estão muitas vezes distantes de nossa percepção cotidiana.

Aqui, cabe uma nota pessoal. Há alguns meses, passei a viver em um bairro com poucas opções de lazer. A principal atração por aqui é um grande shopping, que abriga também uma enorme loja de uma marca global de decoração. Eventualmente, vou até lá apenas para dar uma volta e tomar um café — afinal, não há muito mais o que fazer em bairros dormitórios. O curioso é que, mesmo aos domingos pela manhã, quando vou, tentando evitar a multidão, tanto o shopping quanto a loja estão sempre lotados. Sempre. As pessoas parecem estar em uma busca incessante por algo.

Com meu olhar sociologicamente treinado, observo as pessoas em suas rotinas e fico ali algum tempo anotando o que vejo. Às vezes em um caderninho, às vezes no celular. Não é algo que faço por acaso; sou também um produto dessa sociedade digital que tanto estudo. E se a loja e o shopping estão sempre lotados, eu também estou ali, ou seja, há uma ausência de algo em nossas vidas que, ao menos neste bairro, leva todos ao mesmo lugar. Porém, como socióloga, tento me esconder na análise para deixar que o fenômeno se revele.

Vejo gente comprando móveis, decorações, trocando tudo o que têm. Por quê? Talvez porque, de repente, a vida lhes tenha parecido sem graça. Talvez porque mudar as coisas seja um escape.

Quem sabe? E essa febre de consumo — e a necessidade que ela revela — me faz pensar também que é difícil não consumir nada em lojas que seguem o chamado “layout de percurso”. Ou seja, você entra na loja e é guiado por um único caminho que o obriga a passar por todas as seções, aumentando as chances de vermos uma variedade de produtos desfilando na nossa frente e pensarmos em comprar algo.

É uma rotina tão automática que parece hipnótica. Consumimos o tempo todo, mas quase nunca paramos para refletir sobre a origem material do que consumimos. E é isso que o livro Mundo Material nos obriga a fazer. Como diz Conway, se o Instagram ou a rede X desaparecessem, o mundo continuaria. Mas, se o aço ou o gás acabassem, tudo mudaria drasticamente.

Somos absolutamente dependentes desse mundo material. É aqui que entra outra reflexão que tenho pesquisado nos últimos meses: a exploração de lítio no Brasil e em Portugal. Em conversas com geólogos, especialistas de áreas técnicas e ativistas anti-mineração, percebo que, apesar das divergências e de se colocarem em lados opostos, há um ponto em comum: uma crítica ao modelo atual.

Os geólogos sabem, como bem aponta o livro, que é impossível viver hoje em dia sem as matérias-primas. E estão certos: a mineração é uma atividade da qual dependemos. Isso não significa que concordem com as formas de extração e as consequências que essas práticas geram no mundo. Por outro lado, os ativistas, muitas vezes com argumentos ancorados na “solidariedade mecânica moral”, criticam a extração infinita — e com razão, afinal os impactos causados pela expansão dos projetos não são poucos.

Mas, quando olho além desses dois grupos, para o shopping lotado ou para as pessoas consumindo desenfreadamente, percebo que, no meio da cadeia — entre quem extrai e quem consome —, fomos derrotados. Ninguém parece se importar com este grupo, que é a imensa maioria, daqueles que apenas consomem e consomem de maneira irrefletida.

Poucos param para pensar de onde vem a gasolina do carro ou quais são as consequências deste nosso estilo de vida que sequer alcança a todos. Longe de mim transformar este debate em um sermão moralista. Não é isso. Mas precisamos entender o mundo em que vivemos e nos implicar nele. Nós também o construímos. E, se a construção é coletiva — como não poderia deixar de ser —, precisamos olhar para todos os envolvidos, não só para aqueles que concordam conosco.

O livro nos lembra que durante a pandemia, enfrentamos uma crise que deixou marcas profundas. Faltou tudo: máscaras, zaragatoas, reagentes. Escassearam cimento, aço, papel, semicondutores. Trabalhadores, ao longo de uma cadeia global que começa nas minas e termina nas fábricas, evitaram um colapso maior. Mas, ainda assim, vivemos de maneira trágica o impacto da nossa dependência deste mundo material e a necessidade de salvar vidas quando todos precisavam ser atendidos quase que simultaneamente.

Esse mundo material nos é alienado. Sabemos muito pouco sobre ele — ou sobre o destino dos seus resíduos. A maior parte de nós simplesmente consome. Compra, descarta, repete… E é essa reflexão que o livro provoca. Porque, sem dúvida, vivemos em um mundo material. E, de maneira alarmante, parecemos mais conectados digitalmente e cada vez mais desconectados dele.
Elaine Santos, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP

Uma luz no fim do túnel

A desordem política em que o Brasil vive há mais de duas décadas decorre de três fatores: o pequeno número de pessoas genuinamente vocacionadas para a vida pública, deformações grotescas em nosso sistema institucional e, mais importante, a obscena desigualdade de nossa sociedade.

Aos fatores acima haveria que acrescentar o quadro mundial, no qual despontam ditadores como Nicolás Maduro, um presidente condenado eleito para a presidência dos Estados Unidos e ditaduras totalitárias como as da Rússia, China e Coreia do Norte. Vladimir Putin chega a ameaçar o mundo abertamente com o recurso a seu gigantesco arsenal nuclear.

Quanto ao Brasil, a escassez de vocações políticas a que me refiro diz respeito ao excesso de indivíduos ávidos por viver “da política” e não “para a política”. O quase total desaparecimento da geração de líderes do Congresso constituinte (1987-1988) deixou aberto o espaço para o discurso ideológico vazio do PT, o populismo de Lula da Silva e um Congresso no qual, com as exceções de praxe, pululam larápios e trapaceiros. Essa “oferta” molda a “demanda”, ou seja, aprofunda o descrédito da instituição legislativa, que afugenta possíveis bons candidatos e assim por diante, num círculo vicioso cujo fim não está à vista.

As deformações do sistema político-institucional têm sido amplamente discutidas, sem que apareçam lideranças lúcidas, dispostas a agarrar pela unha o touro da reforma política. Sabemos que o sistema presidencialista de governo é ruim mesmo onde haja partidos políticos; onde não os há, como é o nosso caso, é péssimo. Associado a contínuas rixas entre os Três Poderes, na contramão do que a Constituição estipula, não há como visualizar um panorama diferente desse que Brasília nos oferece dia sim, outro também.


Contudo, para avaliar a hipótese da descida aos infernos, como ocorreu na Argentina, é preciso repisar o óbvio: somos uma das sociedades mais desiguais do planeta. Uma minoria inferior a 10% açambarca metade da riqueza nacional e não assume o que deveria ser sua cota de responsabilidade na arrumação do País. Na parte inferior da pirâmide social, podemos dizer sem medo de errar que 30% dos cidadãos são incapazes de transmitir num simples bilhete o que tenham ouvido pelo telefone. São infracidadãos. Na última eleição municipal, o alto índice de abstenção resultou deste conjunto de elementos: candidaturas em sua maioria inexpressivas, ausência de propostas realistas para a melhoria da vida nas cidades, desânimo geral.

Sendo a realidade o que acima resumidamente se expôs, nada há a estranhar no desinteresse generalizado pela atividade política. Menos ainda quando se considera que a pequena parte capacitada da elite não tem sabido como motivar os eleitores e reverter tais tendências. Menos ainda a estranhar que o desinteresse se agudize entre os jovens, se a eles não se oferece o que mais lhes interessa: um mínimo de esperança. Esta, outrora, se consubstanciava nas ideologias, hoje moribundas, fato que só não enxergam os que não querem enxergar, ou que se valem de mitos ideológicos a fim de organizar partidos de araque, através dos quais assegurem acesso ao erário, a empregos públicos e prebendas, que são seus meios de vida.

Mas, exultai, uma luz começou a reluzir no fim do túnel. "Ainda Estou Aqui", o já celebrado filme de Walter Salles, despertou os corações e mentes, notadamente no seio da juventude. Mostrou que os cidadãos, de todas as idades, não viraram as costas à vida pública. Desde que verdades relevantes lhes sejam ditas, com franqueza, clareza e competência, seus corações despertam. O filme vai fundo num dos episódios mais macabros do período dos governos militares, o desaparecimento do deputado Rubens Paiva, narrado em livro por seu filho Marcelo Rubens Paiva. Esse fato não ocorreu na pré-história, ocorreu algumas décadas atrás, mas só agora chega com toda a sua força dramática aos jovens, seja porque a informação lhes tenha sido sonegada, seja porque só agora surgiu um grupo de artistas com competência para relatá-lo como deve ser relatado: em sua simples verdade.

O êxito do trabalho de Walter Salles suscita uma questão muito mais ampla. Nós, brasileiros, não conhecemos nossa história. Não a conhecemos em seus momentos horrendos, que foram muitos, nem nos relativamente promissores, que foram poucos e curtos, mas existiram.

Essa constatação permite-nos ousar mais um pouco, ampliando esta reflexão: por maior que seja o descrédito das instituições, por mais generalizadas e cruéis que sejam nossas desigualdades sociais, é possível enfrentá-las com esta arma simples: a oferta de verdades relevantes.

A mudança de atitude sugerida no parágrafo anterior vai muito além do sempre desejável adensamento da cidadania. Diz respeito à prevenção da grave crise que já nos espreita. Sabemos todos que um ajuste fiscal sério é a condição sine qua non para a retomada do desenvolvimento econômico e social. Mas a bússola pela qual se pretende orientar o País é ainda a polarização idiota que temos vivido desde 2016.

Encadeamentos desastrosos

O golpe de Estado aconteceria em dezembro, após as eleições presidenciais de 2022, para impedir a posse dos eleitos e sequestrar Alexandre de Moraes. Os três seriam então simplesmente assassinados. Agora, a Polícia Federal revelou tudo, reunindo as apurações em um calhamaço de quase 900 páginas.

O planejamento golpista teve uma história. Começou em 2019, com as mentiras sobre fraude eleitoral, forjadas para instigar a população e mexer com os militares. Nos quatro anos seguintes, o gabinete de Jair Bolsonaro foi um larvário de articuladores e “tropas de combate”, que infestou a opinião pública com mensagens salvacionistas causadoras de caos e temor.

Tudo o que houve de estranho e esquisito naqueles quatro anos esteve encadeado: ministros desqualificados, ataques ao sistema eleitoral, desinformação, militares boquirrotos e indisciplinados, discursos virulentos, acampamentos “populares” às portas de quartéis, kids pretos empoderados, milícias digitais, toda uma mixórdia de fatos, personagens, palavras e atitudes, difundidas sibilina ou ostensivamente.

Havia ódio impulsionando a movimentação, juntamente com uma visão obtusa do mundo, brutal, tosca, sem preocupação pública. Forjou-se assim uma cultura hostil à sociedade, calcada em um “patriotismo” rastaquera.


Os golpistas construíram um castelo no ar. Pensaram ter mais força e melhor organização, e acharam que a fortuna (as circunstâncias) os beneficiaria. Que as Forças Armadas e o sistema político os apoiariam e que um “clamor popular” empurraria os tanques pelas ruas. Na hora H, deram-se conta de que a montanha a ser escalada era mais alta, a democracia era resiliente e não seria abatida com facilidade.

O golpe morreu na praia, em dezembro de 2022. Bolsonaro fugiu do País dias antes de transmitir o cargo. Em 8 de janeiro de 2023, bateu o desespero: uma chusma fanatizada e devidamente orientada depredou a Praça dos Três Poderes. O ato repulsivo mostrou a face tragicômica do plano, deixando claro que ele carecia de gente preparada, de lideranças competentes, de uma ideia razoável de País, de um princípio de honra.

O ataque à democracia não se consumou, mas produziu estragos.

Passaram-se dois anos para que a sordidez acumulada fosse investigada e exposta pela Polícia Federal. Foram então presos quatro militares e intimadas dezenas de oficiais de alta patente, assessores, um padre e o próprio Bolsonaro, que, segundo o inquérito, “planejou, atuou e teve o domínio de forma direta e efetiva” do golpe. Uma página que envergonha a história nacional começou, assim, a ser virada.

As revelações deste novembro de 2024 estão sendo esmiuçadas. O importante, agora, é refletir sobre as razões que possibilitaram a cogitação golpista, cuja gosma infecta escorreu pelo gabinete presidencial, pelo entorno de quartéis e redes sociais. Por que pensaram em algo tão estarrecedor? Além do incentivo do presidente, houve outros estímulos? As Forças Armadas não caíram na esparrela, mas não visualizaram o que se tramava?

A complexidade da vida atual explica parte do problema. Hoje ficou mais fácil tramar conspirações. Por mais que haja anteparos estatais, há muitas brechas para serem exploradas com más intenções. O Brasil não está sozinho nessa condição.

Uma sociedade fragmentada e com dificuldades de coesão, com uma cultura política rarefeita, com muitos desníveis sociais, tudo girando em alta velocidade, é propensa a complôs, ações terroristas e lideranças autoritárias. A confiança nas instituições declina, as reclamações se sucedem e a insegurança generalizada clama por uma “ordem” que caia do céu, como se fosse apaziguar mentes inquietas e sofridas. Diálogos refluem, a política torna-se uma batalha mais árdua.

Descrições desse tipo devem ser relativizadas. A desconfiança cresce, mas não predomina inconteste. As instituições falham, mas não deixam de respirar. O sistema democrático enfrenta dificuldades, mas se reproduz. Os cidadãos parecem desnorteados, mas a cada dia são mais bem informados e se mostram capacitados para enfrentar os desgovernos e brigar pela vida.

Tragédias servem para que aprendamos algumas coisas. Uma delas é exigir que se vá a fundo na apuração das responsabilidades. Anistiar os envolvidos é debochar da sociedade. Eles precisam ser punidos, exemplarmente, para que tragédias semelhantes não voltem a acontecer.

O País não está em clima de guerra civil, como mostraram as eleições municipais de 2024. Pode haver gente confusa e reacionária, mas não há uma maioria expressiva com sangue nos olhos e facas nos dentes.

É um erro trabalhar com narrativas que simplifiquem o que é complexo. O binarismo político, a falta de diálogo, os embates polarizados jogam contra os democratas, afastando-os da política como negociação e busca de consensos criativos.

A inteligência política é indispensável quando o cenário é estranho e escorregadio. Os democratas precisam tratá-la como recurso estratégico. Tanto para resolver problemas e construir um país, quanto para minimizar o risco de que pasmaceiras golpistas ganhem corpo e alma.

Quando teremos a coragem de travar a crise climática?

Se continuarmos a queimar combustíveis fósseis ao ritmo atual, iremos inevitavelmente caminhar para o colapso apocalíptico da civilização. E o mais surpreendente é que quase ninguém mais discorda seriamente dessa afirmação. Não só porque o consenso científico é esmagador, mas porque, cada vez mais, nós próprios podemos ver as provas em primeira mão. Eventos climáticos mortais estão se tornando mais frequentes e graves em todos os lugares. Os agricultores estão a sofrer em primeira mão as consequências do aumento das temperaturas, dos padrões climáticos instáveis e da perda de biodiversidade. A maioria dos líderes mundiais comprometeu-se a reduzir as emissões de carbono. “Não se pode negar a ciência”, diz Simon Harris, “o planeta está em chamas”. Apesar disso, ano após ano, as metas não são cumpridas, os combustíveis fósseis geram enormes lucros e as emissões globais de carbono continuam a aumentar.


Como isso é possível? A humanidade parece estar envolvida em um sinistro combate mortal e em uma luta desesperada para sobreviver. Mas contra que inimigo? Que força poderosa é essa que luta pela extinção da humanidade? Alguns querem que acreditemos que somos criaturas intrinsecamente gananciosas, condenadas a destruir tudo o que tocamos. Mas a verdade é que os humanos habitam a Terra há centenas de milhares de anos e só começaram a emitir níveis perigosos de dióxido de carbono com o nascimento da sociedade industrial no século XVIII. E a maior parte desse aumento ocorreu muito recentemente. Numa proporção esmagadora, durante as últimas décadas, quando já era conhecido o perigo das alterações climáticas . Se a causa do aquecimento do nosso planeta é a ganância humana, deve ser uma ganância especial, surpreendentemente tardia – dada a longa história da nossa espécie – e inesperadamente forte. Mas talvez possamos dar-lhe um nome mais apropriado e concreto: capitalismo.

Ao contrário de outras formas de organização da vida econômica, o sistema capitalista gera – e necessita – de crescimento exponencial. Antes da era do capitalismo industrial, a produção econômica normalmente não variava muito de década para década, ou mesmo de século para século. Um campo produzia mais ou menos as mesmas colheitas em 1200 e em 1600. A emergência do capitalismo mudou tudo. Hoje, como na era da máquina a vapor, as economias capitalistas devem crescer sem parar, e não até atingirem um suposto estado final de abundância perfeita, mas sim continuar avançando: mais recursos, mais produção, mais consumo, sempre mais. Crescimento significa rentabilidade do investimento, que é a base da economia capitalista. Aqueles que têm capital para investir querem que o seu dinheiro cresça, não porque sejam maliciosos ou insanos, mas porque esse é o princípio básico do próprio investimento. Como explica o filósofo político Kohei Saito , o capitalismo simplesmente não pode “desacelerar”. O impulso para crescer é o motor do sistema. E esse motor, como quase todos os outros, funciona com combustíveis fósseis.

Claro, esta imagem está incompleta. Carvão, petróleo e gás nada mais são do que substâncias inanimadas, sem capacidade intrínseca de influenciar a nossa economia. Para que os combustíveis fósseis sejam rentáveis, as pessoas devem pagar por eles ou pelos bens que ajudam a produzir. E pague. Desde voos de longo curso a carros de luxo e fast fashion , os consumidores abastados ficam felizes em profanar o nosso planeta em troca de diversão e conveniência. Mas o consumo, por si só, por mais desperdício que seja, não gera nem necessita de crescimento exponencial. Se uma pessoa compra 10 camisas num ano, não há lógica econômica que a obrigue a comprar 12 ou 15 no ano seguinte. O crescimento é um princípio do capitalista, não do consumidor. E a diferença entre as necessidades das pessoas e as necessidades do capital é muito evidente. Aqui na Irlanda, enquanto muitas famílias lutam para pagar a sua conta de electricidade, os centros de dados de empresas privadas consomem mais electricidade do que todos os agregados familiares urbanos juntos.

E a democracia? Democracia de quem? Afinal, o nosso sistema político não é uma democracia global única, mas uma hierarquia desigual de nações. Na prática, um punhado de eleitores nos estados indecisos dos Estados Unidos têm mais poder para determinar a velocidade e a magnitude do aquecimento global do que outros milhares de milhões de pessoas na Terra. Como se sabe, os colonos americanos rebelaram-se contra o fato de pagarem impostos mas não estarem representados. A destruição ambiental é muito diferente sem o direito à representação? Mesmo que as emissões de carbono fossem distribuídas democraticamente – o que não acontece – porque é que os eleitores dos países mais ricos teriam o direito de envenenar o ar, o mar, o solo e os rios de toda a Terra? O carbono emitido nos Estados Unidos e na Europa causa estragos no Paquistão, no Haiti, na Somália e nas Filipinas, mas as pessoas nesses países não têm o direito de votar nas eleições americanas ou europeias. Esta forma de organizar a nossa vida política coletiva assemelha-se, mais do que uma democracia, a outro sistema político que nós na Irlanda conhecemos bem: o império.

No entanto, as moléculas de carbono não conhecem a política eleitoral ou a soberania nacional. O carbono presente na atmosfera não respeita fronteiras, por mais armadas e monitoradas que estejam. Podemos considerar-nos cidadãos de um país e membros de uma democracia nacional, mas, face à destruição dos ecossistemas planetários , somos, acima de tudo, habitantes da mesma Terra. Sabemos que as pessoas mais pobres do mundo – que trabalham em centros de exploração, campos e minas, para enriquecer ainda mais os mais ricos – são as que já sofrem as primeiras e mais graves consequências climáticas. Mas não nos enganemos: esta crise atingirá todos nós. Inundações devastadoras como as que acabaram de ceifar centenas de vidas em Valência, na Espanha, estão a tornar-se mais frequentes e catastróficas. O mesmo acontece com as tempestades mais prejudiciais. Só em 2023, estima-se que 47 mil europeus morreram em consequência do calor extremo. E isso apenas começou.

Os eleitores preocupados com o futuro da vida humana na Terra ainda podem optar por apoiar os poucos partidos de esquerda radical que estão a tentar compreender a magnitude do problema, como o People Before Profit na Irlanda. Por seu lado, os consumidores preocupados com o clima podem reduzir o seu próprio impacto nas emissões de carbono voando menos, comendo menos ou nenhuma carne, comprando menos artigos desnecessários, e assim por diante. Estes gestos não são de todo negligenciáveis, mas não são suficientes para colocar de joelhos os grandes interesses dependentes dos combustíveis fósseis. A destruição do ecossistema global e o aumento das temperaturas exigem que procuremos soluções fora – e contra – do quadro do nosso actual sistema político. Se quisermos que as crianças de hoje tenham um futuro neste planeta, não podemos continuar a colorir obedientemente dentro das fronteiras marcadas.

O que nos resta então? Protestos de rua, cartas, campanhas públicas? Jogar sopa em galerias de arte? Mas todas estas táticas servem apenas para influenciar a opinião pública. As multinacionais não estão a destruir a Terra porque querem ganhar a simpatia das pessoas, mas sim para obter lucros. Se quisermos uma mudança real, temos de estar dispostos a pôr em risco esses benefícios e aprender com aqueles que já o fizeram. Aqui no condado de Mayo, os ativistas da Shell to Sea passaram mais de uma década a lutar contra a construção de um gasoduto e de uma refinaria pela gigante dos combustíveis fósseis Shell. Em 2005, começaram a fazer piquetes nos locais de construção , impedindo a entrada de trabalhadores e até sabotando infraestruturas, por exemplo, destruindo trilhos de madeira colocados sobre turfeiras. Os manifestantes foram sujeitos a violenta repressão e intimidação por parte da polícia (Garda) e da segurança privada, mas resistiram. Em 2012 estimou-se que os atrasos causados pelas ações comunitárias triplicaram o custo total do projeto. Sim, o gasoduto acabou sendo construído. Mas, numa economia de mercado, pensar apenas no custo dos atrasos pode tornar o investimento menos atraente. Se um grupo local de activistas empenhados pode custar à Shell mil milhões de euros ou mais, imagine quanto uma dúzia ou uma centena de tais grupos poderiam conseguir.

O que dá às multinacionais o direito de poluir o ar que respiramos, drenar as nossas águas subterrâneas e esgotar os recursos escassos do nosso planeta, ao mesmo tempo que nos retira o direito de os impedir? Uma ideia conclusiva: propriedade privada. Como os ricos possuem as coisas e os pobres não, é legal que os ricos destruam a Terra e ilegal que os pobres os detenham. Em seu livro de 2021 , How to Dynamite an Oil Pipeline , o teórico e acadêmico sueco Andreas Malm escreveu: “A propriedade não está acima da Terra; Não existe nenhuma lei técnica, natural ou divina que, nesta emergência, a torne inviolável.” Ou enfrentamos o sistema que ameaça a nossa civilização, ou “a propriedade custar-nos-á a terra”. A cada ano e a cada mês que passa, o argumento torna-se cada vez mais difícil de refutar. Sabemos o que já está acontecendo ao nosso redor. E sabemos o que está por vir. Quando teremos coragem de pará-lo?

Talvez, na melhor das hipóteses, os nossos filhos e os filhos dos nossos filhos olhem para nós com horror e perguntem-se como foi possível que tantos de nós – inclusive eu – fôssemos tão passivos, desorganizados e cobardes quando sabíamos que as suas vidas estavam em risco. vida. Claro, outra perspectiva muito plausível é que não há muitos vivos e eles não têm tempo para se lembrar de nós.

Sally Rooney

A costura a inferno aberto do golpe

Quando do atentado do Riocentro, 40 e tantos anos atrás, dirigíamos a TV-E, ao lado de um colega universitário. Recebemos então visitas, uma delas do coronel-ministro. Ele recomendou cautela no noticiário, pois "agimos abertamente, enquanto a direita age embuçada". A conversa, jogo de cena para encobrir censura, valeu uma resposta sorrateira: "Será mesmo, ministro, é difícil validar essa hipótese..." E ele "como assim, então não acham que seja coisa da direita?" Retrucamos: "se estão embuçados, como saber o que são?"

O diálogo enviesado ficou na memória, pois naquele instante já estava claro que o atentado provinha do sistema. Logo, só eles próprios saberiam quem estava encapuzado. O regime militar estertorava (daí, aliás, a razão do terrorismo), já não mais se invadiam residências de cidadãos inocentes como o ex-deputado Rubens Paiva, mas ainda era tempo de cautela.

O incidente ganha pertinência no quadro das 37 pessoas acusadas de sedição, o núcleo de governo do ex-presidente Bolsonaro, cujos crimes atribuídos podem chegar a 28 anos de prisão. Além das já conhecidas tentativas de abolição violenta do Estado de Direito, estarrece o intento de assassinar as mais altas autoridades da República recém-eleitas.


Há de velho e novo nisso tudo. Nova é a transparência do mal à luz do dia. Meio século atrás, algo se embuçava nas trevas dos porões. Mas a trama centralizada no Planalto sempre transpareceu no regurgitamento verbal do mandatário, nos acampamentos, nas ações terroristas, nos documentos e nos celulares dos mandantes. Crime organizado, com delinquentes agindo a inferno aberto.

Conspiração às claras é estranho fruto de uma realidade paralela, com espionagem semioficial e forma espectral de vida criada pelas redes. A massa arrebanhada trafegava num planeta imaginário feito de celulares, enquanto uma quadrilha empoderada, os mentores da trama, surfava na mesma impunidade sonhada pelos escritórios do crime, despercebido substrato do assassinato de Marielle Franco. Ao lado, inédita lógica tabajara: o golpe seria acionado por vivandeiras acampadas, nada de tanques desmoralizados por fumaça. Era, na autodefinição de um dos generais sediciosos, um "alopramento da rataria, com ética abaixo da cintura".

Ações toscas, linguagem sórdida de submundo, mas com a coerência sádica explicitada por M. Blanchot como o cerne da moral sadiana: "A única regra de conduta é que eu prefira tudo que me afeta com felicidade e que eu tenha como nada tudo que em minha preferência possa resultar de mal para o outro" (em "Lautréamont e Sade"). Nenhuma razão política, apenas o gozo de lesar o próximo.

Na derrama de ficções, a única verdade é a traição. Valeria para todo golpe de Estado. Mas, no caso, o álibi fantasioso do anticomunismo deu lugar a uma modalidade extrema, moralmente intolerável e sádica de agarramento ao poder. Nada, como no passado, de matar ideias de esquerda. O que esteve mesmo em pauta foi o desejo confesso por parte de chefetes e vivandeiras, de exterminar fisicamente o outro de si mesmo, o vizinho pensante. Razoável agora é a perspectiva de que as "quatro linhas" traçadas com água suja se convertam nas quatro paredes sólidas da punição.