sábado, 3 de junho de 2023
O inteligentíssimo fim do mundo
O filósofo Adauto Novaes, com sua fala mineira, sem atropelos ou turbulências, gosta de lembrar uma frase do poeta francês Paul Valéry: “Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais”. Lembrança pertinente. Com essas palavras, Valéry faz a abertura de seu ensaio célebre A crise do espírito, publicado na França no ano de 1919, lá se vão mais de cem anos.
Eram tempos traumáticos. O desafio do pensamento era reconhecer que a utopia iluminista, com a sua promessa de que a ciência libertaria a humanidade da peste, da fome e das guerras, dava sinais de fadiga. O morticínio gerado pela Primeira Grande Guerra era a prova irrefutável desse fato. O que se viu foi a distopia. Cientistas desenvolveram gases tóxicos para dizimar adolescentes confinados nas trincheiras. Aviões se convertiam em armas letais. O poder era o crime perfeito. Ficava mais do que evidente que a civilização, impulsionada pelas mais estonteantes invenções da técnica, era capaz de matar, inclusive a si mesma.
Depois do veredicto de Valéry, as coisas pioraram. Vieram o Holocausto, a bomba atômica e o aquecimento global. Além das civilizações, a própria humanidade se descobriu mortal. Cães raivosos não alcançam essa ideia, mas assim é.
Anteontem, o jornal The New York Times noticiou que um grupo que reúne os principais pesquisadores e executivos dos maiores centros de inovação tecnológica no mundo lançou uma advertência: o crescimento indiscriminado da Inteligência Artificial (ou simplesmente IA), outra conquista do gênio humano, pode empurrar a nossa espécie para a “extinção”. Não, a palavra não é exagerada. O texto do Times, assinado pelo colunista de tecnologia Kevin Rose, não envereda por firulas especulativas. Vai aos nós objetivos do problema.
Enorme problema. Para começar, as ferramentas baseadas em IA vão devorar milhões e milhões de empregos hoje ocupados por pessoas feitas de átomos de carbono. Essas pessoas cederão seu lugar para traquitanas que levam átomos de silício em sua composição e serão expulsas do mundo do trabalho. Os laços sociais serão convulsionados.
Em outra frente, dispositivos atrelados a algoritmos inteligentes vêm desempenhando um papel tenebroso nas campanhas de ódio e disseminação das mentiras mais destrambelhadas. As multidões, presas fáceis, se aglomeram em tropas de fúria e fanatismo, o que corrói as instituições encarregadas de verificação da verdade factual, como a imprensa, a ciência e a justiça. Ato contínuo, os alicerces das instituições democráticas se desestruturam.
Diante disso, alguém levanta a mão para fazer a pergunta inevitável: mas essas mesmas tecnologias não podem ser usadas “para o bem”? Podem, sim, é lógico. O veneno de cobra e a arma de fogo também podem ser usados “para o bem”. O livro de Adolf Hitler, Minha Luta, quando estudado por historiadores ou pensadores comprometidos com a democracia e os direitos humanos, pode servir a bons propósitos, como o de nos ajudar a impedir uma recidiva no nazismo. Em tese, tudo pode servir “para o bem”. O cianureto, o pernilongo e a música brega podem ser utilizados “para o bem”. No entanto, não é bem esse “bem” que se projeta como tendência quando o tema é IA. Os que mais entendem do assunto estão assustados. Ouçamos o que eles dizem.
“Debelar o risco de extinção representado pela IA deve ser uma prioridade global ao lado de outros riscos de escala social, como pandemias e guerra nuclear”, afirma o manifesto de uma única frase assinado por cerca de 350 cientistas e dirigentes de empresas. Entre os signatários estão Sam Altman, presidente executivo da OpenAI, e Demis Hassabis, presidente executivo do Google DeepMind, além de Geoffrey Hinton e Yoshua Bengio, ganhadores do Prêmio Alan Turing, uma espécie de Nobel da tecnologia.
O risco da extinção de que eles falam não deve ser entendido como o risco de uma catástrofe nuclear. Não é que alguém vá lá, ligue o computador e, num estrondo, as populações de todos os países partirão desta para uma pior. Não será assim. A civilização, nesta hipótese da extinção por IA, desaparecerá aos poucos, num suspiro longo.
As ferramentas de IA vão aos poucos tomando posse dos protocolos discursivos que, desde sempre, orientam as condutas humanas. O jargão jurídico é um desses protocolos. O método científico é outro. A atividade dos médicos é um terceiro tipo. As religiões também têm os seus, que não se confundem com os anteriores. Todos esses protocolos têm um traço comum: eles são construídos na linguagem. Quando a IA aprende a falar, como se fosse gente, ela se apropria dos protocolos que formatam comportamentos individuais e sociais e, a partir daí, tudo muda de figura.
Como resultado, o ser humano perderá relevância, enquanto os protocolos desumanizados se expandirão. Da nossa irrelevância brotará o ciclo vicioso que vai nos escantear e, depois, nos extinguir. A menos que a democracia tome providências. Segundo o grupo seleto que assinou o manifesto de uma única frase, ainda há tempo.
Eram tempos traumáticos. O desafio do pensamento era reconhecer que a utopia iluminista, com a sua promessa de que a ciência libertaria a humanidade da peste, da fome e das guerras, dava sinais de fadiga. O morticínio gerado pela Primeira Grande Guerra era a prova irrefutável desse fato. O que se viu foi a distopia. Cientistas desenvolveram gases tóxicos para dizimar adolescentes confinados nas trincheiras. Aviões se convertiam em armas letais. O poder era o crime perfeito. Ficava mais do que evidente que a civilização, impulsionada pelas mais estonteantes invenções da técnica, era capaz de matar, inclusive a si mesma.
Depois do veredicto de Valéry, as coisas pioraram. Vieram o Holocausto, a bomba atômica e o aquecimento global. Além das civilizações, a própria humanidade se descobriu mortal. Cães raivosos não alcançam essa ideia, mas assim é.
Anteontem, o jornal The New York Times noticiou que um grupo que reúne os principais pesquisadores e executivos dos maiores centros de inovação tecnológica no mundo lançou uma advertência: o crescimento indiscriminado da Inteligência Artificial (ou simplesmente IA), outra conquista do gênio humano, pode empurrar a nossa espécie para a “extinção”. Não, a palavra não é exagerada. O texto do Times, assinado pelo colunista de tecnologia Kevin Rose, não envereda por firulas especulativas. Vai aos nós objetivos do problema.
Enorme problema. Para começar, as ferramentas baseadas em IA vão devorar milhões e milhões de empregos hoje ocupados por pessoas feitas de átomos de carbono. Essas pessoas cederão seu lugar para traquitanas que levam átomos de silício em sua composição e serão expulsas do mundo do trabalho. Os laços sociais serão convulsionados.
Em outra frente, dispositivos atrelados a algoritmos inteligentes vêm desempenhando um papel tenebroso nas campanhas de ódio e disseminação das mentiras mais destrambelhadas. As multidões, presas fáceis, se aglomeram em tropas de fúria e fanatismo, o que corrói as instituições encarregadas de verificação da verdade factual, como a imprensa, a ciência e a justiça. Ato contínuo, os alicerces das instituições democráticas se desestruturam.
Diante disso, alguém levanta a mão para fazer a pergunta inevitável: mas essas mesmas tecnologias não podem ser usadas “para o bem”? Podem, sim, é lógico. O veneno de cobra e a arma de fogo também podem ser usados “para o bem”. O livro de Adolf Hitler, Minha Luta, quando estudado por historiadores ou pensadores comprometidos com a democracia e os direitos humanos, pode servir a bons propósitos, como o de nos ajudar a impedir uma recidiva no nazismo. Em tese, tudo pode servir “para o bem”. O cianureto, o pernilongo e a música brega podem ser utilizados “para o bem”. No entanto, não é bem esse “bem” que se projeta como tendência quando o tema é IA. Os que mais entendem do assunto estão assustados. Ouçamos o que eles dizem.
“Debelar o risco de extinção representado pela IA deve ser uma prioridade global ao lado de outros riscos de escala social, como pandemias e guerra nuclear”, afirma o manifesto de uma única frase assinado por cerca de 350 cientistas e dirigentes de empresas. Entre os signatários estão Sam Altman, presidente executivo da OpenAI, e Demis Hassabis, presidente executivo do Google DeepMind, além de Geoffrey Hinton e Yoshua Bengio, ganhadores do Prêmio Alan Turing, uma espécie de Nobel da tecnologia.
O risco da extinção de que eles falam não deve ser entendido como o risco de uma catástrofe nuclear. Não é que alguém vá lá, ligue o computador e, num estrondo, as populações de todos os países partirão desta para uma pior. Não será assim. A civilização, nesta hipótese da extinção por IA, desaparecerá aos poucos, num suspiro longo.
As ferramentas de IA vão aos poucos tomando posse dos protocolos discursivos que, desde sempre, orientam as condutas humanas. O jargão jurídico é um desses protocolos. O método científico é outro. A atividade dos médicos é um terceiro tipo. As religiões também têm os seus, que não se confundem com os anteriores. Todos esses protocolos têm um traço comum: eles são construídos na linguagem. Quando a IA aprende a falar, como se fosse gente, ela se apropria dos protocolos que formatam comportamentos individuais e sociais e, a partir daí, tudo muda de figura.
Como resultado, o ser humano perderá relevância, enquanto os protocolos desumanizados se expandirão. Da nossa irrelevância brotará o ciclo vicioso que vai nos escantear e, depois, nos extinguir. A menos que a democracia tome providências. Segundo o grupo seleto que assinou o manifesto de uma única frase, ainda há tempo.
Os guardiões da floresta
A tese do marco temporal, criada e patrocinada por setores predatórios do meio ambiente, que cobiçam explorar as terras indígenas, nada mais é do que uma tentativa inconstitucional de restringir os direitos dos povos indígenas à própria sobrevivência.
A recente aprovação do PL 490, na Câmara dos Deputados, em nada muda a natureza inconstitucional da malfadada tese. Como já explicou o ministro Edson Fachin, em seu voto, os direitos originários dos povos indígenas compõem o rol das cláusulas pétreas da Constituição, não podendo ser abolidos, sequer por emenda constitucional. O movimento legislativo, portanto, é apenas uma estratégia para tentar constranger o Supremo, que reiniciará o julgamento do marco temporal na próxima semana.
Se o Supremo derrubar a tese do marco temporal, como tudo indica, mais do que reparar as injustiças a que os indígenas têm sido historicamente submetidos, consolidando o que lhes é de direito, o STF estará dando uma enorme contribuição para a contenção do desmatamento, manutenção do regime de chuvas— essencial para agricultura brasileira—, para a redução dos conflitos fundiários, o aumento de investimentos em economia verde, assim como para a desaceleração das mudanças climáticas.
As terras indígenas brasileiras, que se concentram sobretudo na Amazônia, têm sido as principais responsáveis pela preservação de nossas florestas. Menos de 2% do desmatamento histórico na Amazônia ocorre dentro de terras indígenas. Ao guardarem as florestas, os povos indígenas geram uma série de benefícios econômicos e socioambientais para o resto do Brasil e para todo o planeta, como a produção e circulação de água doce, o resfriamento do clima, a renovação do ar, a proteção do solo, além da preservação da biodiversidade, como explica o cientista Carlos Nobre, em recente relatório.
A floresta preservada pelos indígenas produz vapor, que se movimenta por toda atmosfera. De acordo com pesquisa do Inpe, apenas uma árvore amazônica chega a transpirar mil litros em um só dia. Como capturado pelas lentes de Sebastião Salgado, esse vapor forma verdadeiros "rios voadores", que permitem o florescimento duma pungente agricultura, não apenas no Centro Oeste brasileiro, mas em toda a região sul do continente. Isso sem falar na grande eficiência dessas florestas para estocar carbono, a um custo imensamente menor que outras formas de mitigação das emissões de gases de efeito estufa. O Brasil pode lucrar muito com sua floresta de pé.
A promoção da tese do marco temporal tem fomentado, por sua vez, insegurança fundiária, ao incentivando a grilagem, o desmatamento, o garimpo ilegal, fazendo da Amazônia uma terra sem lei.
O julgamento do marco temporal será uma excelente oportunidade para velhos e novos "garantistas" demonstrarem o seu verdadeiro compromisso com os direitos fundamentais. Ao declarar a inconstitucionalidade do marco temporal, o STF estará não apenas cumprindo sua missão precípua de proteger os direitos fundamentais de uma minoria vulnerável, mas também contribuindo para o bem-estar de toda a população e para a própria sobrevivência das gerações futuras neste planeta.
A recente aprovação do PL 490, na Câmara dos Deputados, em nada muda a natureza inconstitucional da malfadada tese. Como já explicou o ministro Edson Fachin, em seu voto, os direitos originários dos povos indígenas compõem o rol das cláusulas pétreas da Constituição, não podendo ser abolidos, sequer por emenda constitucional. O movimento legislativo, portanto, é apenas uma estratégia para tentar constranger o Supremo, que reiniciará o julgamento do marco temporal na próxima semana.
Se o Supremo derrubar a tese do marco temporal, como tudo indica, mais do que reparar as injustiças a que os indígenas têm sido historicamente submetidos, consolidando o que lhes é de direito, o STF estará dando uma enorme contribuição para a contenção do desmatamento, manutenção do regime de chuvas— essencial para agricultura brasileira—, para a redução dos conflitos fundiários, o aumento de investimentos em economia verde, assim como para a desaceleração das mudanças climáticas.
As terras indígenas brasileiras, que se concentram sobretudo na Amazônia, têm sido as principais responsáveis pela preservação de nossas florestas. Menos de 2% do desmatamento histórico na Amazônia ocorre dentro de terras indígenas. Ao guardarem as florestas, os povos indígenas geram uma série de benefícios econômicos e socioambientais para o resto do Brasil e para todo o planeta, como a produção e circulação de água doce, o resfriamento do clima, a renovação do ar, a proteção do solo, além da preservação da biodiversidade, como explica o cientista Carlos Nobre, em recente relatório.
A floresta preservada pelos indígenas produz vapor, que se movimenta por toda atmosfera. De acordo com pesquisa do Inpe, apenas uma árvore amazônica chega a transpirar mil litros em um só dia. Como capturado pelas lentes de Sebastião Salgado, esse vapor forma verdadeiros "rios voadores", que permitem o florescimento duma pungente agricultura, não apenas no Centro Oeste brasileiro, mas em toda a região sul do continente. Isso sem falar na grande eficiência dessas florestas para estocar carbono, a um custo imensamente menor que outras formas de mitigação das emissões de gases de efeito estufa. O Brasil pode lucrar muito com sua floresta de pé.
A promoção da tese do marco temporal tem fomentado, por sua vez, insegurança fundiária, ao incentivando a grilagem, o desmatamento, o garimpo ilegal, fazendo da Amazônia uma terra sem lei.
O julgamento do marco temporal será uma excelente oportunidade para velhos e novos "garantistas" demonstrarem o seu verdadeiro compromisso com os direitos fundamentais. Ao declarar a inconstitucionalidade do marco temporal, o STF estará não apenas cumprindo sua missão precípua de proteger os direitos fundamentais de uma minoria vulnerável, mas também contribuindo para o bem-estar de toda a população e para a própria sobrevivência das gerações futuras neste planeta.
Um projeto para o Brasil
O Brasil carece de um projeto para o país. O arcabouço fiscal, a reforma tributária, e as políticas setoriais são de suma importância, mas não caracterizam um plano de desenvolvimento econômico, que case uma nova demanda e oferta. O crescimento de 2% a 3% ao ano não resolve nossos problemas.
Todo país que passou por crescimento econômico significativo experimentou casar nova oferta e demanda. Foi assim nos Estados Unidos com as políticas Keynesianas; na China, com ciência, urbanização e industrialização. E assim foi também no Brasil, com D. Pedro II na criação da Politécnica e da Escola de Minas de Ouro Preto e abertura da imigração; com Getúlio Vargas no pacto entre o capital e trabalho com a CLT; com Juscelino na substituição de importações; com Lula com crédito para as indústrias ociosas e programas sociais.
Um projeto de desenvolvimento do Brasil poderia, por exemplo, casar o assentamento de parcela da população em cidades agroindustriais com programas de aumento da produtividade na indústria e comércio.
Em relação às novas cidades agroindustriais, o Brasil conta com terras devolutas do Estado da ordem 23% de seu território. O contingente de pessoas vivendo em favelas é de cerca de 8% da nossa população. Estas cidades, em soluções distintas, mas complementares ao INCRA, poderiam ser desenvolvidas em PPP com o agribusiness e investimentos internacionais. Ativaria a construção pesada do país. A alocação, consentida, de parte dos 8% dos que vivem em favelas para o campo levaria ao aumento da produção agrícola e ao aumento dos salários urbanos devido à diminuição da oferta e manutenção da demanda por trabalho nas cidades. A recente experiência chinesa poderia em muito contribuir neste sentido.
Com relação ao aumento da produtividade, os trabalhos e webinars conduzidos por Paulo Paiva da Fundação Dom Cabral, ex-Ministro do Planejamento e do Trabalho, dentre vasto currículo, mostram que a produtividade no Brasil cresceu até 1980, a partir de quando permaneceu estável, indispensável seu aumento para o país. Segundo dados da FGV EESP, a produtividade do trabalhador americano é 4 vezes maior do que a do brasileiro, ou seja, o que toma 1 dia para se fazer nos Estados Unidos, toma 4 dias para fazer no Brasil. Se tivéssemos a produtividade americana, nosso PIB ao invés de US$ 1,6 bilhões estaria por volta de US$ 6,4 bilhões, como 3ª economia do planeta. Poderia ser criado um órgão em PPP e com a intelligentsia nacional de desenvolvimento da produtividade, um pouco diferente da FINEP, e do SEBRAE, focado em métodos e processos, nos moldes do que foi e tem sido a EMBRAPA para a agropecuária. Ressalte-se, também, a necessidade de forte investimento em indústrias de semicondutores, Data Science, e Inteligência Artificial, determinantes para os países neste século XXI. A fundação de uma Universidade de Information Technology seria propícia, trazendo os melhores talentos do exterior. As experiências da China, da Coreia do Sul e da Alemanha seriam significativas no aumento da produtividade.
Este é um exemplo de projeto possível. Afinal, isto nada mais é do que os conclames de José Bonifácio há 200 anos atrás, da “subdivisão de terras” e de uma “universidade”, ou intelligentsia, para o país. Velhos dilemas de nossa nação.
É difícil? Há capital para isto? Há tempo para tal? Quanto mais perto disso, melhor. O protótipo seria bem-vindo. Ou o Governo foca em um projeto de desenvolvimento econômico para o país ou poderá ter dificuldades eleitorais à frente.
Todo país que passou por crescimento econômico significativo experimentou casar nova oferta e demanda. Foi assim nos Estados Unidos com as políticas Keynesianas; na China, com ciência, urbanização e industrialização. E assim foi também no Brasil, com D. Pedro II na criação da Politécnica e da Escola de Minas de Ouro Preto e abertura da imigração; com Getúlio Vargas no pacto entre o capital e trabalho com a CLT; com Juscelino na substituição de importações; com Lula com crédito para as indústrias ociosas e programas sociais.
Um projeto de desenvolvimento do Brasil poderia, por exemplo, casar o assentamento de parcela da população em cidades agroindustriais com programas de aumento da produtividade na indústria e comércio.
Em relação às novas cidades agroindustriais, o Brasil conta com terras devolutas do Estado da ordem 23% de seu território. O contingente de pessoas vivendo em favelas é de cerca de 8% da nossa população. Estas cidades, em soluções distintas, mas complementares ao INCRA, poderiam ser desenvolvidas em PPP com o agribusiness e investimentos internacionais. Ativaria a construção pesada do país. A alocação, consentida, de parte dos 8% dos que vivem em favelas para o campo levaria ao aumento da produção agrícola e ao aumento dos salários urbanos devido à diminuição da oferta e manutenção da demanda por trabalho nas cidades. A recente experiência chinesa poderia em muito contribuir neste sentido.
Com relação ao aumento da produtividade, os trabalhos e webinars conduzidos por Paulo Paiva da Fundação Dom Cabral, ex-Ministro do Planejamento e do Trabalho, dentre vasto currículo, mostram que a produtividade no Brasil cresceu até 1980, a partir de quando permaneceu estável, indispensável seu aumento para o país. Segundo dados da FGV EESP, a produtividade do trabalhador americano é 4 vezes maior do que a do brasileiro, ou seja, o que toma 1 dia para se fazer nos Estados Unidos, toma 4 dias para fazer no Brasil. Se tivéssemos a produtividade americana, nosso PIB ao invés de US$ 1,6 bilhões estaria por volta de US$ 6,4 bilhões, como 3ª economia do planeta. Poderia ser criado um órgão em PPP e com a intelligentsia nacional de desenvolvimento da produtividade, um pouco diferente da FINEP, e do SEBRAE, focado em métodos e processos, nos moldes do que foi e tem sido a EMBRAPA para a agropecuária. Ressalte-se, também, a necessidade de forte investimento em indústrias de semicondutores, Data Science, e Inteligência Artificial, determinantes para os países neste século XXI. A fundação de uma Universidade de Information Technology seria propícia, trazendo os melhores talentos do exterior. As experiências da China, da Coreia do Sul e da Alemanha seriam significativas no aumento da produtividade.
Este é um exemplo de projeto possível. Afinal, isto nada mais é do que os conclames de José Bonifácio há 200 anos atrás, da “subdivisão de terras” e de uma “universidade”, ou intelligentsia, para o país. Velhos dilemas de nossa nação.
É difícil? Há capital para isto? Há tempo para tal? Quanto mais perto disso, melhor. O protótipo seria bem-vindo. Ou o Governo foca em um projeto de desenvolvimento econômico para o país ou poderá ter dificuldades eleitorais à frente.
Três vezes Brasil
A rigor, o título deste artigo deveria ser Relembrando Euclides da Cunha. O leitor com certeza sabe que o grande autor de Os Sertões foi também um notável ensaísta e, em particular, um exímio analista político.
Não vacilo em afirmar que seu Esboço de História Política, escrito no primeiro centenário da Independência, incluído no volume À Margem da História (reeditado pela Editora Lello em 1967), tem seu lugar assegurado entre os quatro ou cinco melhores textos brasileiros nessa área. Inventei outro título por uma razão muito simples: meu propósito não é resenhar Euclides, mas aproveitar o texto dele para reinterpretar e trazer o texto dele até o Brasil atual. Na primeira parte, apenas interpreto a linha-mestra do Esboço; na segunda e na terceira, exponho o que se passou desde 1891, superpondo o que veio à minha mente à medida que relia o original de Euclides.
O fio condutor da interpretação euclidiana parece-me ser este: “Somos o único caso histórico de uma nacionalidade feita por uma teoria política”. Complementado logo adiante por esta frase-manifesto: “Estávamos destinados a formar uma raça histórica, através de um longo curso de existência política autônoma. Violada a ordem natural dos fatos, a nossa integridade étnica teria de constituir-se e manter-se garantida pela evolução social. Condenávamos à civilização. Ou progredir ou desaparecer”.
A “teoria política” era a ponte de que nos valeríamos para a travessia, deixando para trás a tirania colonial e pondo os pés num futuro que talvez fosse a civilização. Reparem que aqui o Euclides simpatizante do evolucionismo de Augusto Comte faz uma crítica ao mestre e, portanto, a si mesmo. O espectro da regressão a um status colonial delineava claramente as alternativas: era o desmembramento em republiquetas turbulentas, instáveis, comandadas alternadamente por caudilhos, ou antecipar mentalmente o futuro desejado, deixar de lado a ilusão de um determinismo que a ele nos levasse. “Violando a ordem natural dos fatos”, acreditar, ainda que com pouca chance de sucesso, na teoria que nos serviria de ponte. Mas tal teoria não poderia ser uma abstração. Haveria de ser um fazerpolítico, que dependia de o destino nos dar líderes e pensadores à altura do empreendimento. O destino não nos faltou: os dois monarcas, Pedro I e Pedro II, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Marquês do Paraná, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e outros mais, cada um a seu modo, deram-nos o impulso para a civilização. Acrescente-se que, naquele período, estávamos em condições de fornecer todo o café que o mundo demandasse. Descontados a anarquia da Regência (1831-1840), o prolongamento excessivo da escravidão e a instauração da República fruto não de uma visão política esclarecida, mas do fato de não ter o País um sucessor masculino, e sim uma princesa – casada com um estrangeiro, o Conde D’Eu –, o saldo foi positivo.
Mas, como diz o ditado popular, pau que dá em Chico dá em Francisco. Aqui, peço vênia para umas pinceladas no brilhante quadro de Euclides. Cedo ou tarde, a riqueza propiciada pelo café haveria de ser destroçada pela competição internacional. E, no lugar do Marquês do Paraná, artífice da pacificação, e de Joaquim Nabuco, o primeiro a denunciar sem meias palavras a ilegitimidade para a qual degenerava o Poder Moderador, veio, por um lado, uma chusma de pseudointelectuais siderados pela ascensão do fascismo na Europa e, pelo outro, os comediantes que personificaram a Política dos Governadores, que melhor fora epitetada como Política das Ditaduras Estaduais, que transformou cada Estado (exceto o Rio Grande do Sul) num regime de partido único. Em seguida, a rebelião de alguns Estados contra a “socialização das perdas”, o subsídio ao que restava da outrora pujante cafeicultura e, finalmente, a tragicomédia da Revolução de 1930, cujo desfecho só poderia ser a ditadura getulista, a polarização getulismo-antigetulismo e, no fim da linha, 21 anos de governos militares.
Essa passagem de nossa história não pode omitir a estrutura social que dela resultou: uma minúscula elite garroteando o patrimônio e a renda nacional; uma classe média esquálida, cada vez mais incrustada na máquina do Estado, eis que desprovida de bases para crescer, tanto no campo como na cidade; e um amazonas de miseráveis, exescravos, desempregados e analfabetos. Para supostamente superar esse estado de coisas, a obsessão com a chamada industrialização por substituição de instituições (ISI), que nos deixou onde estamos: na estagnação e com o maligno espectro da “armadilha do baixo crescimento”.
E agora, José? Agora são uma mediocridade política somente comparável, no passado, às antes mencionadas “ditaduras estaduais” e uma recuperação econômica que parece se distanciar no horizonte a cada minuto. Mas isso ainda não é o pior. É uma sociedade desordeira, que parece não enxergar a si mesma, vivendo da mão para a boca e quase totalmente destituída de valores coletivos.
Não vacilo em afirmar que seu Esboço de História Política, escrito no primeiro centenário da Independência, incluído no volume À Margem da História (reeditado pela Editora Lello em 1967), tem seu lugar assegurado entre os quatro ou cinco melhores textos brasileiros nessa área. Inventei outro título por uma razão muito simples: meu propósito não é resenhar Euclides, mas aproveitar o texto dele para reinterpretar e trazer o texto dele até o Brasil atual. Na primeira parte, apenas interpreto a linha-mestra do Esboço; na segunda e na terceira, exponho o que se passou desde 1891, superpondo o que veio à minha mente à medida que relia o original de Euclides.
O fio condutor da interpretação euclidiana parece-me ser este: “Somos o único caso histórico de uma nacionalidade feita por uma teoria política”. Complementado logo adiante por esta frase-manifesto: “Estávamos destinados a formar uma raça histórica, através de um longo curso de existência política autônoma. Violada a ordem natural dos fatos, a nossa integridade étnica teria de constituir-se e manter-se garantida pela evolução social. Condenávamos à civilização. Ou progredir ou desaparecer”.
A “teoria política” era a ponte de que nos valeríamos para a travessia, deixando para trás a tirania colonial e pondo os pés num futuro que talvez fosse a civilização. Reparem que aqui o Euclides simpatizante do evolucionismo de Augusto Comte faz uma crítica ao mestre e, portanto, a si mesmo. O espectro da regressão a um status colonial delineava claramente as alternativas: era o desmembramento em republiquetas turbulentas, instáveis, comandadas alternadamente por caudilhos, ou antecipar mentalmente o futuro desejado, deixar de lado a ilusão de um determinismo que a ele nos levasse. “Violando a ordem natural dos fatos”, acreditar, ainda que com pouca chance de sucesso, na teoria que nos serviria de ponte. Mas tal teoria não poderia ser uma abstração. Haveria de ser um fazerpolítico, que dependia de o destino nos dar líderes e pensadores à altura do empreendimento. O destino não nos faltou: os dois monarcas, Pedro I e Pedro II, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Marquês do Paraná, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e outros mais, cada um a seu modo, deram-nos o impulso para a civilização. Acrescente-se que, naquele período, estávamos em condições de fornecer todo o café que o mundo demandasse. Descontados a anarquia da Regência (1831-1840), o prolongamento excessivo da escravidão e a instauração da República fruto não de uma visão política esclarecida, mas do fato de não ter o País um sucessor masculino, e sim uma princesa – casada com um estrangeiro, o Conde D’Eu –, o saldo foi positivo.
Mas, como diz o ditado popular, pau que dá em Chico dá em Francisco. Aqui, peço vênia para umas pinceladas no brilhante quadro de Euclides. Cedo ou tarde, a riqueza propiciada pelo café haveria de ser destroçada pela competição internacional. E, no lugar do Marquês do Paraná, artífice da pacificação, e de Joaquim Nabuco, o primeiro a denunciar sem meias palavras a ilegitimidade para a qual degenerava o Poder Moderador, veio, por um lado, uma chusma de pseudointelectuais siderados pela ascensão do fascismo na Europa e, pelo outro, os comediantes que personificaram a Política dos Governadores, que melhor fora epitetada como Política das Ditaduras Estaduais, que transformou cada Estado (exceto o Rio Grande do Sul) num regime de partido único. Em seguida, a rebelião de alguns Estados contra a “socialização das perdas”, o subsídio ao que restava da outrora pujante cafeicultura e, finalmente, a tragicomédia da Revolução de 1930, cujo desfecho só poderia ser a ditadura getulista, a polarização getulismo-antigetulismo e, no fim da linha, 21 anos de governos militares.
Essa passagem de nossa história não pode omitir a estrutura social que dela resultou: uma minúscula elite garroteando o patrimônio e a renda nacional; uma classe média esquálida, cada vez mais incrustada na máquina do Estado, eis que desprovida de bases para crescer, tanto no campo como na cidade; e um amazonas de miseráveis, exescravos, desempregados e analfabetos. Para supostamente superar esse estado de coisas, a obsessão com a chamada industrialização por substituição de instituições (ISI), que nos deixou onde estamos: na estagnação e com o maligno espectro da “armadilha do baixo crescimento”.
E agora, José? Agora são uma mediocridade política somente comparável, no passado, às antes mencionadas “ditaduras estaduais” e uma recuperação econômica que parece se distanciar no horizonte a cada minuto. Mas isso ainda não é o pior. É uma sociedade desordeira, que parece não enxergar a si mesma, vivendo da mão para a boca e quase totalmente destituída de valores coletivos.
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