sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Pensamento do Dia

 


Eis que surge algo pior que Bolsonaro

A pesquisa Datafolha divulgada ontem informou o Brasil que está surgindo na política algo pior que Bolsonaro, uma direita mais extremada, um fascismo mais escrachado, portador de mensagens ainda mais tenebrosas. É isso que representa Pablo Marçal, que ao longo de agosto, mês de lobisomens, cresceu de 14% para 21%, empatando tecnicamente com Boulos (23%) e com o prefeito Nunes (19%).

Pela primeira vez, Bolsonaro é desafiado como líder da extrema direita por alguém que se apresenta como o negador absoluto da política, apontando o ex-presidente como um falso anti-sistema, e esta talvez seja a única verdade cuspida por aquela boca maligna. Bolsonaro, um fingidor, mostrou na presidência seus genes políticos, adotou os códigos do fisiologismo, seduziu o Centrão e cooptou o Congresso com a entrega do orçamento.

O auto denominado ex-coach está falando e seduzindo os céticos com a política que se desiludiram também com Bolsonaro. E fala com a violência que agrada os mais revoltados e desesperados: fala palavrões, mente, ofende, desacata, insulta e põe apelidos jocosos em todos os políticos. E não só para os paulistanos que elegerão um novo prefeito, mas para todo o país, ele através de suas redes sociais: é de outros estados que estão vindo a maioria dos pix com a ajuda financeira que ele tem pedido.

Bolsonaro chegou a flertar com Marçal mas recuou ao perceber que estava diante de um competidor perigoso para sua liderança na extrema direita. Refluiu para Ricardo Nunes, agora nominalmente em terceiro lugar. Neste momento estão trocando farpas pelas redes, que Marçal parece dominar bem mais que Carlos Bolsonaro e faz o gabinete do ódio parecer uma traquinagem juvenil.

É cedo para saber se ele será um novo Russomano, o mais notável cavalo perdedor da política paulista, ou se terá fôlego para chegar ao segundo turno e quem sabe vencer. Talvez se afogue no mar de lama sobre sua vida, que apenas começou a ser revelado. De todo modo, é assustador que haja tanta gente declarando a pretensão de votar em alguém tão abjetamente oposto à civilidade.

É assustador que a extrema direita esteja conseguindo produzir algo ainda pior que Bolsonaro, alguém mais genuinamente fascista que Bolsonaro.

A política está cheia de som e fúria, e vazia de sentido

Esses dois substantivos aparecem em um dos trechos mais famosos da tragédia “Macbeth”, de William Shakespeare, publicada no século XVII; formam o título de uma das obras-primas de William Faulkner no século XX; e, agora, dão o tom da política nacional.

“A vida é uma história contada por um tolo, cheia de som e fúria, que nada quer dizer”, constata um amargurado rei Macbeth, ao ser informado da morte de Lady Macbeth. Mas se o atormentado monarca se deparasse, de repente, com a nossa realidade, poderia afirmar: “A política brasileira é cheia de som e fúria, que nada quer dizer”.

E por que as tragédias de Shakespeare (“Macbeth”) e Faulkner (“O som e a fúria”) dialogam com o cenário brasileiro em plena campanha municipal, tumultuada pela suspensão do pagamento das emendas parlamentares? (Lembre-se que as emendas são um instrumento estratégico de deputados e senadores na relação com os prefeitos).


Pois esse paralelo é possível tomando-se, como exemplo, a acirrada campanha pela Prefeitura de São Paulo e a nova crise institucional em Brasília. A campanha e a crise dialogam com a ficção porque têm em comum o “som” estridente da disputa pelo controle do orçamento público, e a “fúria” predatória dos candidatos na briga pelo comando da capital paulista.

Em retrospecto, a coluna passa a relacionar, abaixo, fatos das últimas semanas que ilustram como princípios que deveriam pautar a política, como transparência dos gastos públicos, respeito ao adversário e ao eleitor, parecem coisa do passado, enquanto som (alto) e fúria dominam o ambiente.

Cena 1: 21 de agosto - Em vídeo divulgado nas redes sociais, o candidato a prefeito de São Paulo, Pablo Marçal (PRTB), usou um recado para o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) para disparar palavras de baixo calão (“banana”, “vagabundo”) contra seus adversários. Termos que, a rigor, não deveriam constar do vocabulário político. “O povo de São Paulo não vai prestar continência nem pro vagabundo do [deputado Guilherme] Boulos, nem pro banana do [prefeito Ricardo] Nunes”, xingou, ao afirmar que não desistirá da candidatura. “Não vou me [sic] retroceder”, concluiu, em um português claramente duvidoso.

Cena 2: 8 de agosto - No debate promovido pela Band/Portal UOL, Pablo Marçal chamou a adversária, a deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP), de “adolescente”, que “precisa amadurecer um pouco”. Não satisfeito, insultou a parcela do público que defendeu a candidata: “Torcida kids, parachoque de comunista”. A “adolescente” a que ele se refere é uma mulher de 30 anos, admirada pela sua trajetória, iniciada em escolas públicas da periferia paulistana até a graduação em ciências sociais e astrofísica na prestigiada Universidade de Harvard.

Cena 3: 20 de agosto - No almoço realizado no Supremo Tribunal Federal (STF), que reuniu os chefes dos três Poderes, os 11 ministros da Corte e dois ministros de Estado, em busca de um entendimento por regras objetivas e transparentes para a liberação de emendas, houve momentos de tensão. Em um deles, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), subiu o tom em resposta ao ministro da Casa Civil, Rui Costa, que citou exemplos de mau emprego dos recursos públicos. Lira retrucou alegando que ministros da gestão Lula seguiriam as mesmas práticas, e disse não fazer questão de ser simpático: “Eu sei que não gostam do meu estilo direto, e eu não me importo com estereótipo de ser ríspido, eu sou assim", desafiou.

A nova crise entre os Poderes foi deflagrada por decisões do ministro do STF Flávio Dino que suspenderam a liberação das emendas, até que novas regras garantindo transparência e clareza dos gastos sejam instituídas. A principal polêmica envolve as chamadas “emendas Pix”, uma verba de R$ 8 bilhões, pela qual um ministério transfere recursos milionários diretamente para o caixa de uma prefeitura ou de governo estadual, sem identificação do autor da emenda, sem uma destinação específica para os valores, e sem que o gestor tenha de prestar contas.

Na esfera paulista, o comportamento de Marçal evoca o Jair Bolsonaro em seu auge na campanha de 2018, quando prometeu “fuzilar a petralhada”, e entre outras provocações, arrebatou o eleitorado com o estilo antissistema.

Embora Bolsonaro apoie a reeleição do prefeito Ricardo Nunes (MDB), Marçal cresce sem parar nas pesquisas entre eleitores do ex-presidente. Mostra, com isso, que o perfil de político em fúria contra tudo e contra todos continua atraindo votos, e não é mais monopólio de Bolsonaro.

Esse movimento pode ser contido? O presidente nacional do PL, Valdemar Costa Neto, acredita que sim, e afirma que Marçal começará a derreter em duas semanas. “Ele sai atacando todos, o eleitor se cansa disso”, aposta.

Na campanha de Boulos, todavia, o sentimento é de que Marçal pode chegar ao segundo turno. Nessa hipótese, aliados do candidato do Psol veem no “coach” um adversário menos difícil, por não ter com ele as máquinas do poder municipal e estadual, que dão lastro à campanha de Nunes.

Voltando ao Bardo, se a vida é um conto de som e fúria, narrado por um tolo que ninguém compreende, a vida real deve ser som e silêncio, fúria e serenidade, onde o cidadão não seja o tolo, e a política faça todo sentido.

Progresso

Que devemos entender por essa palavra? Se a definirmos como bons gramáticos, diremos que é um acréscimo de bem ou de mal, na medida em que possamos discernir entre o bem e o mal; e estaremos assim a representar o próprio avanço da humanidade. Mas se, como se faz nesta época em que não se sabe mais pensar nem falar, dissermos que o progresso é o movimento da humanidade que se aperfeiçoa sem cessar, estaremos a dizer uma coisa que não corresponde à realidade. Esse movimento não se observa na História, a qual só nos apresenta uma sucessão de catástrofes e de avanços seguidos de retrocessos.

Anatole France, "A vida em flor"

A Venezuela de Maduro já é comparada à ditadura de Pinochet

A jornalista venezuelana Ana Carolina Guaita Barreto, repórter do site La Patilla, foi detida há mais de uma semana na região de La Guaira, estado de Vargas, muito próximo a Caracas. Seu paradeiro foi revelado ontem pelo jornalista Vladimir Villegas, ex-embaixador da Venezuela no Brasil, em suas redes sociais. Ana Carolina está, de acordo com Villegas, na sede da Direção de Segurança do governo de La Guaira. Também de acordo com o jornalista venezuelano, o chefe dessa direção, Andrés Goncalvez, disse aos pais de Ana Carolina, ambos dirigentes políticos da oposição que colaboraram com a campanha do candidato presidencial Edmundo González Urrutia, que soltariam sua filha se eles se entregassem.


Xiomara Barreto e Carlos Guaita saíram da Venezuela logo após a eleição presidencial de 28 de julho, fugindo de uma das maiores ondas de repressão do governo de Nicolás Maduro contra opositores, categoria que hoje na Venezuela inclui dirigentes, colaboradores da campanha opositora, militantes de partidos opositores, eleitores da oposição e jornalistas que cobrem atos opositores, entre outros.

Para Maduro e seus aliados civis e militares, qualquer pessoa relacionada à oposição é um potencial risco para o governo, e, em caso de detenção, a acusação é sempre a mesma: terrorismo. Segundo a ONG Foro Penal, entre 28 de julho e 18 de agosto, cerca de 1.503 pessoas foram presas e acusadas de serem terroristas. Ana Carolina é apenas uma dessas pessoas.

A situação na Venezuela em matéria de direitos humanos é crítica. Enquanto os governos de Brasil e Colômbia tentam achar uma saída política para a crise desencadeada após a eleição — tentativa hoje em suspenso, segundo fontes oficiais — Maduro deu sinal verde a uma repressão poucas vezes vista na América Latina após as ditaduras das décadas de 1960, 1970 e 1980. Defensores dos direitos humanos como Marino Alvarado, diretor do Programa Venezuelano de Educação-Ação em Direitos Humanos (Provea), comparam a atuação do governo Maduro com a de ditaduras como a do chileno Augusto Pinochet (1973-1990).

Em entrevista ao programa de rádio de Villegas, o diretor do Provea afirmou que “há um arbitrário e excessivo uso da Lei Antiterrorista. Nenhum detido foi acusado de outro delito e, segundo o governo, temos 2.229 terroristas”. Alvarado mencionou o caso de Ana Carolina e explicou que ele se encaixa no já normalizado modus operandi do “desaparecimento forçado”. Na Venezuela, os detidos passam de dias a anos em paradeiros desconhecidos.

Hoje, ninguém está a salvo na Venezuela. O Aeroporto Internacional de Maiquetía virou, em palavras de um jornalista, “um lugar tóxico, que todos evitamos”. Qualquer venezuelano que não tenha credenciais chavistas teme passar pelo aeroporto porque sabe que, havendo razão ou não, poderá ser detido. Isso soma-se ao cancelamento arbitrário de milhares de passaportes de cidadãos venezuelanos que, caso não tenham uma segunda cidadania, têm como única alternativa sair do país na mala de um carro ou escondidos de alguma outra maneira.

Quando estive em Caracas para cobrir a eleição, conheci convidados internacionais que estavam no país para acompanhar o pleito. Um deles era um ex-ministro do governo de Salvador Allende (1970-1973), presidente chileno que Maduro costuma elogiar em discursos. A Venezuela atual se parece cada vez mais com o Chile de Pinochet, artífice do golpe que derrubou Allende em 11 de setembro de 1973.

Homenzinhos patéticos que fazem guerras

Vivemos num momento de suprema vergonha para o que normalmente é chamado de “humanidade”. A continuação sem qualquer barreira real do massacre do Governo israelita de Benjamin Netanyahu sobre a população de Gaza expõe a falência das instituições criadas para o mundo pós-Segunda Guerra Mundial. A guerra que a Rússia de Vladimir Putin trava contra a Ucrânia é uma brutalidade que parece ter sido assimilada como normalidade, o que a torna uma brutalidade ainda maior. Mais de metade da população do Sudão necessita de ajuda humanitária devido à guerra civil, mas esta e outras guerras no continente africano são invisíveis nas notícias diárias, apesar de pessoas violarem, torturarem e matarem todos os dias. Ainda assim, é um território familiar, já que a capacidade aparentemente infinita de infligir dor conta em grande parte na jornada humana. O território desconhecido é outro. E tem uma sigla desconhecida: AMOC, Atlantic Southern Overturning Circulation em inglês.

Os nomes que os cientistas dão não ajudam na tarefa urgente de levar o conhecimento onde ele precisa estar, mas é importante saber que a AMOC é um conjunto vital de correntes do oceano Atlântico que transporta águas superficiais quentes do hemisfério sul e as distribui no extremo norte, bem como águas profundas e frias do Norte para distribuí-las no Sul. O sistema natural espalha energia por todo o planeta e modula o aquecimento global, evitando que partes do hemisfério sul sobreaqueçam e que partes do hemisfério norte fiquem insuportavelmente frias. Ao mesmo tempo, espalha nutrientes que sustentam a vida nos ecossistemas marinhos.


Afetada pelo aumento da temperatura dos oceanos e pela diminuição da salinidade causada pelas alterações climáticas, estudos científicos recentes sugerem que a AMOC está em colapso. Ainda existem lacunas na investigação, mas a cada novo estudo, o que era apenas uma possibilidade há alguns anos parece provável mesmo neste século. Um destes trabalhos sugere que isso poderá acontecer antes de 2050, e mesmo no final da década de 2030. Cada vez mais, “se acontecer” está a tornar-se “quando acontecerá”. E quando isso acontecer, algumas partes do planeta ficarão completamente irreconhecíveis.

É mais uma variável aterrorizante num planeta que até junho viveu 13 meses consecutivos de temperaturas recordes. Mas mesmo com este panorama, as empresas de combustíveis fósseis, carne, soja, óleo de palma, agroquímicos e minerais continuam a produzir o colapso climático com a cumplicidade de governos e parlamentos. Mesmo com 12 meses em que a temperatura média global esteve 1,64 graus Celsius acima da média pré-industrial, homenzinhos como Netanyahu e Putin travam guerras. Mesmo com um julho com os três dias mais quentes da história, ditadores de esquerda como Nicolás Maduro e Daniel Ortega corrompem a democracia e a extrema direita avança atualizando o fascismo, com Donald Trump no comando.

Alguns homens jogam a guerra sem se aperceberem que nos próximos anos ou décadas poderá já não haver território pelo qual lutar, porque ou foi engolido pelos oceanos ou porque a vida humana se tornou muito difícil ou mesmo impossível. Nunca esteve tão claro que o narcisismo é o irmão siamês da ignorância e quão letal pode ser. Ou começamos a agir politicamente muito rapidamente, participando ativamente nas decisões, fortalecendo a democracia e restaurando o bem comum, apoiando e colocando no poder pessoas capazes de enfrentar os produtores do colapso climático e de produzir adaptação, ou continuaremos reféns destas patéticas homenzinhos e sua compulsão de exterminar, incapazes de ver um mundo além dos fiapos de seu umbigo.
Eliane Brum