sábado, 6 de junho de 2020

Elegia para um país à deriva

Em janeiro de 2019 Jair Messias Bolsonaro subiu a rampa do Palácio Planalto convencido de que seus eleitores lhe haviam outorgado um mandato para fazer o que bem entendesse. É um fato comum no sistema presidencialista de governo.

O eleito tende a pensar que dezenas de milhões de eleitores compareceram às urnas com um único pensamento. Sabiam exatamente os objetivos que o candidato de sua preferência deveria perseguir, e por que deveriam fazê-lo. Uma parte deles por certo se lembrava de que, na democracia, o poder é exercido dentro de limites estipulados na Constituição e nas leis, e também pela existência do “outro”, ou seja, dos adversários, que foram derrotados, mas não deixaram de existir.

Embora típico do sistema presidencialista, no caso de Bolsonaro o sentimento de onipotência a que acima me referi apresenta riscos adicionais de suma importância.

Primeiro, ele vê aquela enorme massa de votos como a voz do “povo” - de todos os brasileiros - e a escolha dele entre os diversos candidatos como um reconhecimento dos méritos que supostamente possui. Ora, ninguém ignora que a maior parte de sua votação se deveu à rejeição generalizada ao PT e ao desastroso legado dos governos petistas; e, complementarmente, ao péssimo desempenho dos partidos de centro, que não conseguiram se unir em torno de uma candidatura e de símbolos apropriados ao tenso momento sob o qual o Brasil tem vivido já há vários anos.


Uma pequena parcela do eleitorado intuiu que o candidato pretendia fazer reformas. Designado com antecedência, Paulo Guedes sinalizava uma orientação liberal na economia, e ele mesmo, Bolsonaro, falava em acabar com a “velha política”, expressão tão vaga como o “contra tudo o que aí está” dos primórdios do PT. A cereja do bolo - quero dizer, a parte mais esdrúxula do imaginário mandato bolsonarista - ficou a cargo do sábio da Virgínia. Seria o combate a um moinho de vento por ele denominado “marxismo cultural”.

Mas os riscos embutidos na visão política de Bolsonaro vão muito além dos que acima tentei alinhavar. Mais grave, ao que tudo indica, é o fato de tal visão existir muito mais no campo da psicologia que no do raciocínio.

Parco em letras, Bolsonaro parece travar uma luta diária contra os limites que o sistema político lhe impõe e seu fígado, que o estimula a derrubá-los. Desconhece por completo o significado e o alcance da expressão “liturgia do cargo”. Não compreende que, uma vez investido na suprema magistratura do País, ele não mais se pertence.

Sua propensão a demonstrar “franqueza” tem muito de infantil. Como chefe de Estado, ele deve se comportar com moderação e comedimento, abstendo-se de recorrer a termos inadequados à posição que ocupa e de insultar integrantes dos outros Poderes e jornalistas.

Esse perfil assaz telegráfico que estou tentando traçar indica que o presidente tem uma indisfarçável inclinação autoritária, ditatorial, mas isso ainda é dizer pouco. Não por acaso, o último rumor que nos devia atormentar - a iminência de alguma aventura golpista - passou a frequentar diariamente as páginas dos jornais.

Do fígado, que ele a duras penas tenta controlar, vez por outra emergem traços francamente paranoicos, notadamente a percepção de que decisões ou pronunciamentos contrários a seus desejos são indícios de alguma conspiração. Vale dizer, da perfídia de inimigos empenhados em apeá-lo do poder.

A controvérsia sobre o artigo 142 da Constituição, que supostamente confere às Forças Armadas a faculdade de intervir como um poder moderador na eventualidade de conflito entre os Poderes, deu à conjuntura o toque pitoresco que talvez lhe faltasse. O que se pode sensatamente afirmar, especialmente em relação ao Exército, é que sua excessiva presença no governo empresta uma aura de veracidade a essa tolice, com grave prejuízo para sua imagem institucional.

Salta aos olhos que a chegada da covid-19 - bem como a atribuição, pelo Supremo Tribunal Federal, da responsabilidade primária pelo combate à epidemia aos Estados e municípios - elevou os riscos precedentemente mencionados à enésima potência. Ignorando e contrariando - exatamente como fez Donald Trump, nos Estados Unidos - o diagnóstico elaborado pelos serviços de inteligência, Bolsonaro retardou o sentimento de urgência que se impunha. E levou-o a solapar tais esforços, descumprindo deliberada e ostensivamente as recomendações adotadas não só no Brasil, mas em quase todo o mundo.

É triste ver comportar-se dessa forma um presidente que deveria contribuir para o desarmamento dos espíritos e para a eficácia do atendimento aos doentes. Um homem corajoso, ex-atleta, não se deixaria intimidar por uma “gripezinha”.

Uma palavra de preocupação ou compaixão pelas famílias enlutadas não parece compatível com tal perfil. Pena não ter ele até agora demonstrado sua coragem, passando um dia num hospital e colaborando, quem sabe, em tarefas que não requerem conhecimentos específicos de saúde.

O Joelho Juvenal

A escatológica reunião ministerial já foi dissecada por muita gente, mas, mesmo assim, volto a ela. Não se pode banalizar a gravidade do que foi dito ali. Não é um novo normal. É anormal e perigoso. O que se viu foi um coro, quase unânime, em defesa de um golpe institucional. Ainda bem que veio a público.

Além do conteúdo, a forma de expressão das ideias foi chocante. Nem nas arquibancadas do Maracanã, que sempre frequentei, eu vi algo parecido. A ministra Damares, tão preocupada com obras do diabo, não enxergou o capeta sentado bem à sua frente.

Muita coisa foi escancarada nesse encontro. Ficou patente a urgência da aprovação da autonomia do Banco Central. A presença do presidente do BC, tanto no ato de desagravo a Moro, como nessa reunião, na qual fez coro com os descontentes com a mídia, é inaceitável. A independência que Roberto Campos Neto tem demonstrado na condução da política monetária pode ser questionada pela sua participação na vida política. Não é bom.


O show dos liberais de pau oco não passou despercebido. Guedes revelou o que pensa de empresas estatais e privatização. Se não puder servir a meus propósitos políticos, tem de vender essa droga logo, disse ele sobre Banco do Brasil. Se não me serve, vende. Nenhum liberal advoga em favor da desestatização em causa própria. Deve ser por isso que não se viu nenhuma reação sua à entrega do Banco do Nordeste ao Centrão. Foi, enfim, privatizado por Valdemar da Costa Neto.

A inveja do poder de Pedro Guimarães era evidente. Onyx deu de presente à Caixa o monopólio na distribuição dos R$ 600. Sendo de capital fechado, acionistas minoritários não atrapalham, é o que pensam os liberais deste governo. Governança, cuidado com a coisa pública e transparência só servem para atrapalhar. Qualquer semelhança com os governos intervencionistas não é mera coincidência.

Com essa proteção legal, a Caixa aproveitou para expandir sua atuação no segmento digital. Recusou a ajuda de instituições financeiras, mesmo diante das filas nas suas agências. Povo passando necessidade é apenas um pequeno sacrifício para que o banco avance na área das fintechs. De quebra, esse monopólio vinculou o auxílio ao governo. Já vimos esse filme antes. O populismo não tem ideologia.

Para liberais do Bolsonaro, competição só é boa no terreno alheio. Esse governo desmoraliza a desestatização. Não querem nem sabem fazer. E quando a defendem, é pelo motivo errado.

Temos um ministro Nem Nem: nem abertura comercial, nem reforma tributária, nem reforma administrativa, nem privatizações. Nem humanidade.

Em nenhum momento da reunião houve referência aos milhares de mortos ou aos milhões de desempregados, que sofrem com uma total falta de perspectiva, enquanto o governo amplia os estragos sobre a economia e saúde com seu combate terraplanista à quarentena. Em ato falho, o ministro da Economia se refere ao banco de desenvolvimento como “BNDE”, sem a letra S, de social. E, sem enrubescer, apoia os desatinos autoritários de seu colega da Educação. “Ô presidente, esses valores e esses princípios e o alerta aí do Weintraub é válido também, como seu ... Nós tamos aqui por esses valores.”

É a eterna cantilena dos golpistas incompetentes; sempre precisam de mais tempo e liberdade para implantar seu projeto. A culpa é sempre dos outros.

Após a divulgação da queda do PIB no 1.º trimestre, Guedes pediu solidariedade e cooperação, palavras que soam falsas em sua boca. Pede a união da sociedade, não para obedecer ao que recomendam médicos e cientistas, mas para tentar salvar sua biografia, já marcada por promessas e devaneios não cumpridos. Mas podemos ficar tranquilos, porque a recuperação será em V, ainda que um V meio torto, como disse o ministro.

Ninguém está no governo Bolsonaro por acaso. Não surpreende que Salles, Weintraub e Damares não tenham sido demitidos. Surpreende que os demais presentes não tenham pedido demissão. Todos se tornaram coniventes com um protótipo de ditador que estimula a desobediência civil de uma população armada.

Tenho pensado em adjetivos para qualificar o que se passa neste momento no País. O “inacreditável” não dá mais conta.

Lia muito com meu filho quando ele era criança. Sua coleção preferida era uma série de Ziraldo, Corpim, que conta histórias de partes do corpo de forma divertida. O favorito dele era o Joelho Juvenal. A razão era menos a anatomia e mais o adjetivo usado para ilustrar as artimanhas do menino que deixava o joelho todo escalavrado. Meu filho adorava a palavra. Líamos a história repetidas vezes e ele gargalhando com o “escalavrado”.

Hoje, lendo com o neto, lembrei de Juvenal. E, imediatamente, me veio a imagem de uma democracia escalavrada. No dicionário é “o mesmo que: arranhada, golpeada, machucada”. Encontrei meu adjetivo.

Pensamento do Dia


‘Vou chamar o Pires’

Não é a primeira vez que acontece de um presidente acuado ameaçar a nação com a convocação das Forças Armadas. Jair Bolsonaro é mestre em citar os militares como salvadores da pátria sempre que se encontra em situação difícil, causada normalmente por ele mesmo em razão de declarações estapafúrdias ou gestos politicamente equivocados. O último general-presidente da ditadura iniciada em 1964, João Figueiredo, repetiu inúmeras vezes a frase “Olha que eu vou chamar o Pires”, sempre que um fato o incomodava. O Pires de Figueiredo era o carrancudo Walter Pires, ministro do Exército.

A frase de Figueiredo queria significar uma volta ao passado, à linha-dura. Embora Figueiredo tenha sido o último presidente do regime, a ditadura vivia seus estertores. O presidente tinha ainda poderes excepcionais, como o decreto-lei, uma espécie de Medida Provisória de sinal trocado. O decreto passava a valer no ato da sua publicação e só perdia a validade se o Congresso o derrubasse. A MP cai se o Congresso não a apreciar. Mas o famigerado Ato Institucional número 5 havia sido revogado. E aos poucos o país voltava à normalidade com a Anistia de 1979, a volta dos exilados e a libertação de todos os presos políticos

Nos últimos anos do governo Figueiredo, fora os extraordinários problemas econômicos, o Brasil só queria eleger o próximo presidente e desenhar uma nova Constituição para substituir a Carta escrita pelos militares. O primeiro objetivo foi enterrado com a derrota da emenda Dante de Oliveira, que restabelecia a eleição direta, mas o substituto do último ditador seria o civil Tancredo Neves, adversário da ditadura. E a nova Constituição democrática, que o deputado Ulysses Guimarães batizou de “Constituição Cidadã”, era só uma questão de tempo.

Apesar da ameaça comum de chamar um militar para resolver um problema civil, param por aí as semelhanças entre o governo do general e o do capitão. Bolsonaro é um presidente eleito legitimamente pelo voto popular, enquanto Figueiredo foi escolhido solitariamente pelo seu antecessor, o general Ernesto Geisel, e ungido por um colégio eleitoral formatado para atender as ordens do Palácio do Planalto. Mas isso não torna o primeiro melhor do que o segundo.

A composição dos ministérios dos dois presidente é um bom exemplo da diferença entre eles. Com mais ministros do que hoje, Figueiredo tinha sete militares na Esplanada contra 11 de Bolsonaro. Dos sete ministros fardados de Figueiredo, três ocupavam cargos que eram privativos de oficiais generais, os Ministérios de Exército, Marinha e Aeronáutica (hoje departamentos subordinados ao Ministério da Defesa). O que isso significa? Não muito, mas pelo menos pode-se dizer que o general confiava mais nos civis do que o capitão.

Figueiredo era mal educado e frequentemente falava barbaridades, mas não se pode comparar suas grosserias com as de Bolsonaro. Nunca se ouviu o general mandar um jornalista calar a boca. Também se desconhece reunião ministerial com tantos impropérios quanto aquela famosa do dia 22 de abril. Figueiredo era mais tolerante, talvez porque não tivesse os poderes extraordinários e antidemocráticos de que usufruíram seus antecessores. Bolsonaro é mais intolerante, talvez porque queria ter aqueles poderes para si.

Bolsonaro olha para o seu futuro querendo enxergar o passado. Figueiredo sabia que não tinha futuro.
Ascânio Seleme

Chega, presidente. Abra o jogo

Desperto a cada dia pensando: o que ele vai dizer hoje para nos afligir? Quando digo desperto, deveria dizer despertamos, porque somos, no mínimo, dois terços da população brasileira sofrendo do mesmo mal: a espera da palavra presidencial no puxadinho do ódio frente ao Alvorada. Esse é um pensamento que oprime. A cada dia, são vergastadas vindas de um iletrado, ofensas a todos e à língua portuguesa, recorrências ao palavrão, ao mesmo tempo que em nossas mentes aumenta a angústia da espera: quando ele virá? Ele. Todos sabem o quê? Ele promete, sonha, gostaria que se concretizasse.

Está próximo o dia em que ele vai cumprir a palavra? O filho anunciou, agora é a ruptura. Vai intervir em tudo e em todos em nome da democracia? A democracia dele tem outra etimologia. Aqui, o demo é de demônio. Sartre disse: o inferno são os outros. Estava errado. O inferno é o Brasil hoje com esse presidente.

Decidi. Chega. Chega, presidente.

Não aguento mais. Não aguentamos mais. O senhor vem procurando corroer nossos espíritos, tentando nos aniquilar moralmente, buscando nos destruir, minando nossas forças. Resisto. Não sou apenas eu, não estou sozinho. Somos milhões.

Presidente, decida logo! Tire o paletó e nos encontre ali na porta, anunciando: é agora. Pegue seus filhos e coloque-os à frente das forças armadas.


Junte os milicianos a que estão ligados. Acrescente seus empresários aliados e coloque-os no ministério da Economia. Arrebanhe seus seguidores na redes sociais e deixe-os no comando do combate à pandemia. Chame o Aras e coloque-o logo no Supremo. Peça ao 02 que apanhe logo um cabo e um soldado e feche o que ele acha que tem de fechar. Jogo limpo. Às claras. Mas não nos deixe nessa agonia, nessa ansiedade que corrói, aguilhoa. Estão esgotados na farmácias os estoques de ansiolíticos. Os laboratórios não dão conta de produzir às toneladas. Terapeutas, psiquiatras, psicanalistas, psicoterapeutas estão exaustos. O senhor, cientista, nos diga que medicamento vai curar esta esquizofrenia pior do que o vírus da covid-19.

Estamos vivendo o suplício chinês da água pingando numa chapa de metal, plim plim, plim, até ficarmos loucos, surtarmos. Se é possível surtar mais do que estamos. Assim, decida logo. Saia para rua com seus tanques, uma vez que foi dito na porta do Alvorada: “não dá mais, hoje é o último dia.” Último dia do quê?

Não me deixe – não nos deixe – em suspenso a cada momento, cada minuto, segundo. É essa sua intenção? Nos dissolver?

Presidente.

Defina a situação. Não fique prometendo. A espera alucina. Como diz o ditado popular, transe ou saia de cima. Desocupe a moita. O Brasil está esgotado, avariado, demolido, arrasado, enfraquecido. Diga logo o que quer. Não adianta ficar esbravejando na porta do Palácio. Chega de nos tratar como moleques na escola, que gritam “te espero lá fora”. Resolva.

Jogo aberto. Quem tiver de ser preso, será. Quem tiver de ser condenado, será. Quem tiver de perder os direitos, perderá. Quem o senhor decidir que deve ser torturado, será. Quem tiver de ser exilado, será. Mas abra o jogo. Basta de sadomasoquismo. Seja claro, não hesite um minuto, não fique nessa indecisão que nos mata, não nos deixa dormir, provoca urticária, nos come pelas beiradas, e pode nos deixar doentes, neuróticos, deprimidos, em pandarecos, abilolados, com úlcera no estômago, câncer. Assim é a espera, a cada dia na expectativa, olhando o relógio, o calendário. Venha com seu desejo mais íntimo desde que se elegeu. Estamos aqui, desarmados. Mas não estamos escravizados.

Será agora? Daqui uma hora? Duas, uma semana, um mês, em 2021 ou 2022? Súbito me lembrei que o Reich de Mil Anos durou apenas doze e o líder dele se matou num subterrâneo. Será agora, quando será, vai ser, quando? Está próximo? Demora? Quando, quando, quando, quando, e este quando não está chegando.

Saia do chiqueirinho da porta Alvorada e venha para campo aberto com seus tanques, navios, canhões, armamentos, bombas nucleares, napalm, armas químicas, pó de mico, o que tiver e acabe com essa história.

Saia do armário.

Escancare.

Só precisamos saber quantos vão sobrar, depois da fome, das prisões, mortes, das epidemias, do corona. Quantos estarão vivos para o senhor governá-los? Bye Bye Brasil, como disse Cacá Diegues. Pelo amor desse Deus que o senhor diz que está acima de tudo: quando será esse momento?

Ignácio de Loyola Brandão

Governo insulfim

Tinha muita gente morrendo por outras causas e os gestores públicos, puramente por interesse de ter um orçamento maior nos seus municípios, nos seus estados, colocavam todo mundo como covid. Estamos revendo esses óbitos
Carlos Wizard, empresário de rede de curso de idiomas, novo secretário da Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos

O engodo e o embuste na vida pública

Na vida política, as mentiras costumam ser mais plausíveis do que a realidade, uma vez que o mentiroso tem a vantagem de saber de antemão o que a plateia deseja. Ele prepara sua história para consumo público, de modo a torná-la crível. Com isso, a verdade tende a desaparecer da vida pública, corroendo a estabilidade democrática. Esta é a conclusão de um dos ensaios mais discutidos no final da década de 1960, sobre o uso da mentira na política.

De autoria da filósofa alemã Hannah Arendt e incluído no seu livro Crises da República, o ensaio discute o embuste e a falsidade deliberada como meios que determinados políticos utilizam para alcançar fins imorais e torpes. Também analisa as estratégias de vazamento de informações e a construção de narrativas que permitam interpretação deturpada dos fatos antes mesmo de eles acontecerem. “A veracidade nunca esteve entre as virtudes políticas. A capacidade de mentir e a capacidade de agir devem sua existência à mesma fonte: imaginação”, diz Arendt.


Escritas há cinco décadas, essas palavras são de uma atualidade preocupante quando relidas à luz do que disse o presidente Jair Bolsonaro na quinta e na sexta-feira passadas, sobre os atos convocados por diferentes órgãos da sociedade civil para protestar contra as manifestações semanais de bolsonaristas em favor de uma ditadura militar por ele chefiada. Nas lives de que participou e nos discursos que fez nesses dois dias, Bolsonaro comportou-se como se o ensaio de Hannah Arendt tivesse sido escrito com base em suas falas.

Procurando associar à violência os atos de protesto contra seu governo, o presidente deixou claro que os atos de domingo não serão travados entre adversários políticos, mas entre inimigos – entre “o pessoal de verde e amarelo, que é patriota”, e “idiotas, marginais, viciados e terroristas”. Segundo Bolsonaro, “este pessoal tem costumes que não condizem com a maioria da sociedade brasileira”. Além de desqualificar opositores no plano moral, que é uma conhecida prática fascista, Bolsonaro os acusou de serem inimigos da liberdade. “Mais importante que a sua vida é a sua liberdade. Esse pessoal não tem nada para oferecer para você. Se você pegar cem desse aí (sic), a maioria é estudante. Se você pegar e aplicar a prova do Enem neles, ninguém tira nota 5. São idiotas que não servem para nada”, afirmou.

Como se não bastasse, o presidente ainda pediu aos pais que impeçam os filhos de participar dos atos contrários ao seu governo. “Quem for possível exercer o controle em cima dos filhos (sic), exerça para não deixar o filho participar. Alguns vão dizer que eu estou cerceando a liberdade. Isso não é liberdade de expressão, o cara vai para o quebra-quebra. E vai ter muito garoto desse usado como massa de manobra, idiota útil”, disse Bolsonaro, procurando desde logo responsabilizar seus opositores por qualquer ato violento.

Horas depois, anunciou que em breve concederá autorização para importação, sem imposto, de armas de uso individual. Na ocasião, afirmou que “a boa medida (sic) vai ajudar todo o pessoal do artigo 142 da nossa Constituição”, referindo-se talvez aos membros das Forças Armadas. Além de definir as atividades militares, esse artigo se limita a classificar as Forças Armadas como “instituições que, sob a autoridade suprema do presidente da República, destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa destes, da lei e da ordem”. Mas, numa interpretação tortuosa e absurda desse texto, Bolsonaro acredita que este lhe confere a prerrogativa de convocá-las quando bem entender e para o que bem quiser. Mesmo advertido para o erro que comete, insiste em repeti-lo.

Em seu ensaio sobre a mentira na política, Hannah Arendt lembra que o engodo e o embuste costumam ser eficientes apenas quando o mentiroso tem ideia clara da verdade do que tenta esconder. Bolsonaro sabe o que quer. Mas em momento algum consegue esconder seus anseios ignominiosos.

Estamos#JUNTOS

“Somos cidadãs, cidadãos, empresas, organizações e instituições brasileiras e fazemos parte da maioria que defende a vida, a liberdade e a democracia”.

“Somos a maioria e exigimos que nossos representantes e lideranças políticas exerçam com afinco e dignidade seu papel diante da devastadora crise sanitária, política e econômica que atravessa o país”.

“Somos a maioria de brasileiras e brasileiros que apoiam a independência dos Poderes da República e clamamos que lideranças partidárias, prefeitos, governadores, vereadores, deputados, senadores, procuradores e juízes assumam a responsabilidade de unir a pátria e resgatar nossa identidade como nação”.

Assim é aberto o manifesto “Estamos#JUNTOS” assinado por expressivas lideranças da sociedade e de diferentes partidos, artistas, intelectuais e por milhares de brasileiros e brasileiras. É o mais expressivo de outras reações da sociedade civil contra a escalada autoritária e a favor da democracia como o Basta e o Somos 70%.


Os manifestos e algumas manifestações de rua mostram que a sociedade brasileira começa a despertar de uma longa anestesia política e se preparando para os embates futuros. Fica evidente que é uma reação às sucessivas mobilizações pela volta do AI-5 e pelo fechamento do Congresso Nacional e do STF, pilares da República e da democracia brasileira. Após 35 anos da transição democrática, imaginávamos que teríamos cristalizado a estabilidade política e institucional na vida do país. A realidade está nos mostrando que essa verdade é relativa e, afinal, que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”.

Destoando desta reação uníssona das forças democráticas veio, mais uma vez, o ex-presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva, que no seu narcisismo calculista e doentio disse que “não é maria vai com as outras” e que não assinaria ao lado de alguns dos signatários do manifesto. Nenhuma surpresa. Em 1985, o PT não votou em Tancredo Neves, timoneiro da redemocratização, no Colégio Eleitoral, contra a candidatura de Paulo Maluf. Expulsou três deputados que entenderam a importância histórica da luta no Colégio Eleitoral e votaram em Tancredo contra a orientação do partido: Bete Mendes, José Eudes e Aírton Soares.

Em 1988, o PT e Lula votaram contra a “Constituição Cidadã”, assim chamada pelo presidente da Assembleia Constituinte, Ulysses Guimarães. Depois acabaram assinando a nova Carta Magna.

Em 1992, após o impeachment de Collor, o PT se negou a participar do governo de união nacional em torno do Presidente Itamar Franco, afastando a ex-prefeita de São Paulo e atual deputada federal, Luiza Erundina, que aceitou se tornar ministra-chefe da Secretária da Administração Federal. Havia embutido na atitude um cálculo político oportunista, exclusivista e eleitoreiro, mirando a sucessão presidencial de 1994.

Também diante no Plano Real, de diversas reformas estruturais e da Lei de Responsabilidade, no governo de FHC, o PT sobrepôs os interesses partidários aos nacionais, demarcando campo próprio e buscando um isolamento tático. Enfim, como disse Caetano Veloso, “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Ficou famosa a máxima “entre o Brasil e o PT, o PT fica sempre com o PT”. Mas a sociedade brasileira não ficará prisioneira de posturas exclusivistas e auto referenciadas.

Apesar da pandemia e do necessário isolamento social, ocorreram já algumas manifestações de rua em defesa da democracia. E aí, é importante aprender com as jornadas de 2013. Não é possível que meia dúzia de Black Blocks, tão autoritários como aqueles que pedem um novo AI-5 e agridem as instituições democráticas, comprometam um movimento amplo da sociedade em defesa da liberdade.

Na segunda metade dos anos de 1970 erguemos uma agenda unitária que unificava todos os democratas: anistia ampla, geral e irrestrita; Constituinte livre e soberana e eleições diretas. Este aprendizado deve nos iluminar em 2020. A nossa agenda deve perseguir unir a direita, o centro e a esquerda democráticos e lideranças da sociedade brasileira que não obrigatoriamente convergem em questões estratégicas de longo prazo, mas se unem na defesa da democracia. Devemos procurar o que nos une, e não o que nos divide. Defesa da liberdade e da democracia, defesa das instituições republicanas e democráticas e defesa da Constituição, estes são os pontos. Simples assim, fácil de entender e semente de uma ampla unidade.

A nossa história republicana é turbulenta e não foi fácil construir as bases do maior período democrático da nossa trajetória como povo e Nação. A democracia brasileira está ameaçada. Vários países democráticos assistiram retrocessos indesejáveis. A unidade de todos aqueles que defendem a democracia é essencial para que superemos a pandemia, seus perversos efeitos econômicos e garantamos a integridade de nosso tecido social e a retomada do crescimento. Quem se colocar contra será atropelado pelos fatos e pela dinâmica do processo histórico.

Imagem do Dia


Um governo militar

Já se tornou praticamente um lugar comum chamar a atenção para a imensa presença militar no governo de Jair Bolsonaro. São cerca de três mil militares alocados nos mais diversos cargos da administração federal, seja em nível ministerial, seja no alto e médio escalões, como mostrou um recente levantamento feito pelo site “Poder 360’. Isso representou um aumento de 43% em relação ao que havia em 2018, com cerca de 1,6 mil cedidos pelo Exército, quase 700 pela Marinha e mais de 600 pela Aeronáutica.

Esses números não incluem reservistas, como é o caso, por exemplo, do general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Se forem contabilizados os reservistas, bem como os oriundos das Polícias Militares estaduais, os números são ainda maiores.

Se em governos anteriores muito se falou em “aparelhamento” partidário da máquina governamental, sem, porém, que os números demonstrassem algo de efetivamente diferente do usual - como o demonstraram os estudos a respeito feitos pelo cientista político Sérgio Praça - agora há realmente uma novidade. Postos de livre nomeação, normalmente ocupados por civis, pois se constituem em atividades de natureza civil, são distribuídos para militares, com suas correspondentes bonificações remuneratórias. Ou seja, ao convocar para postos civis gente fardada, o governo Bolsonaro lhes assegura ganhos econômicos imediatos e palpáveis.


Mas não se trata apenas de cooptação dos quartéis com base em prêmios salariais decorrentes do comissionamento - que, aliás, se fazem acompanhar daqueles gerados pelas recentes reestruturações da carreira, camufladas (embora sem muito sucesso, apesar da expertise militar com camuflagens) nas reformas previdenciárias. Trata-se também do empoderamento político de militares em posições que pouco ou nada têm a ver com sua formação e experiência profissionais, ao ponto de o Brasil ter hoje mais gente da caserna aboletado no governo do que a ditadura chavista na Venezuela ou a (saudosa para alguns) ditadura militar no Brasil.

Há casos em que isso produz até mesmo oximoros (contradições nos termos) - como a alocação de um general de Exército na Casa Civil - ou contradições de finalidade - como o emprego de outro general de Exército no Ministério da Defesa - criado, justamente, para desmilitarizar o governo e assegurar comando paisano sobre as Forças Armadas. Se o chefe da Casa Civil, ao menos, é reformado, o chefe dos militares, entre um voo de helicóptero e outro, segue na ativa. Ou seja, os militares comandam a si próprios, assim como a “Revolução Vitoriosa” de 1964 se legitimava a si mesa, segundo o Ato Institucional nº 1.

Mas a coisa não para por aí. Há militares noutros oito ministérios (número com que inicialmente contaram, quando começou o mandato do outrora defenestrado capitão insubordinado): o já mencionado GSI, Minas e Energia, Secretaria de Governo, Ciência e Tecnologia, Infraestrutura, Controladoria Geral da União, Secretaria Geral (a cargo de um PM) e, pasme-se, a Saúde.

Se nenhum ministro médico agrada ao presidente em sua luta inglória pela cloroquina e contra o isolamento social, coloque-se um obediente general para apetecer ao capitão; faça-se o protocolo da cloroquina; nomeie-se mais uma penca de militares para cargos responsáveis por medidas sanitárias. Pau para toda obra, os militares, mais do que nunca, podem ter creditados na (ou debitados da) sua conta reputacional os resultados da política de saúde desse governo. A tomar pela condução que dá ao assunto o capitão, os fardados brasileiros correm o risco de colher, em tempos de democracia, o desprestígio que seus colegas argentinos colheram na malfadada aventura das Malvinas, em tempos de ditadura - foi um fim de feira vexatório.

Mas há mais. Se, retomadas as atividades políticas presenciais, o ritmo alucinado de condução política de Bolsonaro, bem como seus enroscos com a Polícia Federal e as milícias cariocas favorecerem movimentos em prol de seu impeachment, cabe apreciar como atuaria quem puder lhe substituir. Como bem observou em sua coluna Maria Cristina Fernandes, o general Hamilton Mourão faz questão, em repetidos artigos, de mostrar que (apesar de dominar melhor o idioma e ter menos complicações familiares) não têm uma visão da política fundamentalmente distinta daquela de seu cabeça de chapa.

A forma como mais este militar do governo enxerga opositores, movimentos de rua não-alinhados, demais poderes do Estado, governos subnacionais e imprensa, deixa claro que no lugar de Bolsonaro ele não teria motivação para conferir ao governo um colorido distinto, quiçá um tom mais moderado. E, considerando como os fardados e seus colegas de pijama têm cerrado fileiras na defesa dos pares no governo, é pouco provável que um eventual presidente Mourão fosse desmilitarizar a condução da administração federal. Talvez lhe falte o carisma do “mito”, mas também a Maduro falta o carisma de Chávez.

Sob tal aspecto, é inegável o engenho do ardil confesso de Bolsonaro e sua prole, indicando o loquaz general para a Vice-Presidência. Como apontou à época da escolha o filho 03, Eduardo, Mourão é “faca na caveira” e por isso funciona como um hedge contra eventuais tentativas de impeachment. Resta saber se funciona como um esteio também contra a possível cassação da chapa pelo Tribunal Superior Eleitoral, a depender do que revelar o inquérito das “fake news” e suas conexões com o financiamento do empresariado simpático à difusão das narrativas bolsonaristas desde a campanha eleitoral.

Nesse caso, a proteção pode vir menos da falta de alternativa gerada pelo radicalismo do vice e mais dos interesses fardados aboletados no governo, bem como dos beneficiários das generosas reformulações de carreira promovidas pela atual administração. E, lembre-se, disso não ficam de fora Polícias Militares estaduais, menos leais a seus governadores do que ao bolsonarismo, como demonstraram os motins do Ceará e as PMs de São Paulo e Rio no fim de semana.

Camuflagem



A esperança é um urubu pintado de verde
Mario Quintana

Diga-me com quem andas ...

... que eu te direi quem és. Bolsonaro desperta a curiosidade de muita gente. É natural. Um tenente expulso do Exército (foi a capitão por ser norma da época). Em seguida é eleito deputado e no Congresso passa 28 anos nas sombras, sem deixar uma marca positiva, apenas um ou outro relato de alguma ação negativa, resolve, junto com seus filhos, que vai ser presidente da República e consegue esse objetivo, tem mesmo que despertar curiosidade. É natural. Mais curiosidade ainda desperta a qualidade dos amigos que cultiva.

Podemos começar com o inacreditável Queiroz, sempre muito elogiado por Bolsonaro & Filhos. Pelas fotos onde aparecem os cinco amigos (o pai, os três zeros e o sorridente Queiroz) podemos perceber a forte ligação que os unia antes do Queiroz se transformar em um dos fantasmas da ópera na qual vivemos. Mas nada nos dá o direito de duvidar se a amizade persiste. São, é claro, almas gêmeas que se cultivam.

Mais recente é a amizade carinhosa entre Bolsonaro e o inconcebível Sergio Camargo, um negro que ocupa o cargo de presidente da Fundação Cultural Palmares que como diz seu edital é a “primeira instituição pública voltada para a promoção e preservação dos valores culturais, históricos, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”.

O negro certo na fundação certa? Não, Leitor, é apenas o amigo do Bolsonaro que por gostar de holofotes foi premiado pelo amigão com esse cargo. Presente de grego aliás, já que o surpreendente Camargo.acha que a sua fundação abriga o movimento que ele adjetiva como ’escória maldita’ composta por ‘vagabundos’. O amigo de Bolsonaro ofende Adna dos Santos, a Mãe de Santo que ele chama de macumbeira e a cantora Alcione, a quem agride de forma brutal.Tudo isso é fato, mas a foto da dupla Camargo-Bolsonaro é muito simpática ao revelar a alegria sorridente de Camargo ombro a ombro com o amigo.


Não tem moças no círculo de amigos fiéis do presidente, aqueles que com ele têm uma intensa afinidade? Claro que tem, sobretudo as pérolas plastificadas Zambelli e Sara Winter. Seus corações batem em uníssono com o de Bolsonaro.

E os militares? Cristo da Abadia, esses são amigos do peito que por um lapso expulsaram o tenente de suas fileiras, Hoje são os pilares do governo. São quem mais definem quem é Jair Bolsonaro.

Por tudo isso eu penso que não é necessário acionar psiquiatras ou psicólogos para definir e explicar Bolsonaro, basta o velho ditado :” diga-me com quem andas que eu te direi quem és”.

 Maria Helena RR de Sousa

O maior crime de Bolsonaro

Não será a irresponsabilidade criminosa durante a crise do coronavírus ou a tentativa de pôr o Estado a serviço de sua família o que entrará para a história como o maior crime cometido pelo governo de Jair Bolsonaro. Seu principal legado será a desenfreada destruição do meio ambiente brasileiro, desse tesouro único que o país ainda possui. 

No primeiro trimestre deste ano, o desmatamento na Amazônia já atingiu um novo nível recorde. De acordo com o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), só em abril (em plena pandemia) 529 quilômetros quadrados de floresta foram desmatados – o que representa um aumento de até 171% em relação ao mesmo mês do ano passado. É a maior área desmatada no mês de abril nos últimos 12 anos.

Todas as previsões indicam agora que a situação catastrófica do ano passado vai se repetir quando a vegetação for queimada nos meses de inverno, e dezenas de milhares de focos de incêndio devastarem a floresta. Para o Brasil, os incêndios de 2019 foram provavelmente o maior desastre internacional de relações públicas em sua recente história. Mesmo aqueles no exterior que não estavam interessados em política e não tinham ideia de quem era Bolsonaro passaram a ver o Brasil de forma negativa.


Entre os ambientalistas é de amplo conhecimento que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, é o "testa de ferro" de interesses econômicos, como descreveu o jornalista André Trigueiro. Salles não protege a Floresta Amazônica, está praticamente entregando-a à máfia ambiental.

Para satisfazer a clientela, ele usa uma tática que se tornou praxe no governo Bolsonaro: a destruição, por dentro, das instituições estatais. Isso pode ser observado em muitas áreas: na educação e na cultura, na Funai ou na Fundação Palmares. Colocam-se em posições-chave personalidades cuja única qualificação é pertencer ao movimento bolsonarista, que se radicaliza cada vez mais.

Essas figuras executam um expurgo ideológico, que pode ser facilmente comparado à atitude de regimes totalitários. Os demais funcionários de escalões inferiores são ameaçados e desmoralizados, enquanto a tarefa institucional dos órgãos governamentais é revertida. Dessa forma, a Funai deixa de ser uma agência de proteção indígena, sendo transformada numa autoridade de latifundiários e evangelização. A Fundação Palmares está subordinada a Sérgio Nascimento de Camargo, que é chamado de "capitão do mato" pelo próprio irmão.

No caso do Ibama, esse esvaziamento tem consequências concretas e perigosas para os fiscais ambientais em ação. Eles são, frequentemente, atacados por madeireiros, garimpeiros e grileiros, que invadem, destroem e se apropriam de terras da União ou de terras indígenas. Os infratores sabem que contam com o apoio do governo. É um dos exemplos mais claros de como esse governo é falso: ele entrou para combater o crime. Em vez disso, trabalha ao lado dos criminosos.

Isso ficou particularmente evidente quando os fiscais do Ibama prenderam garimpeiros ilegais na Terra Indígena Apyterewa, no Pará, e queimaram suas escavadeiras e bombas d’água ‒ conforme exigido pela lei brasileira. Mas o que aconteceu? O ministro do Meio Ambiente ordenou a demissão do diretor de Proteção Ambiental do Ibama e de dois agentes ambientais que coordenaram as ações. Ficou claro que, à sombra da crise de coronavírus, o "velho" Ibama deveria ser punido por seus esforços.

Dizem que garimpeiros e madeireiros são apenas pobres coitados que tentam sobreviver de alguma forma. Isso é uma meia-verdade: eles são pobres coitados, mas sua miséria é explorada pelos financiadores dos garimpos, das serrarias e da grilagem. Mantem esses homens em condições de semiescravidão – foi assim que vivenciei essa situação no Pará. Portanto, o Ibama não queima as escavadeiras, bombas d’água e motosserras de pobres trabalhadores, mas as dos ricos e distantes investidores. O atual governo protege os interesses dessa máfia ambiental impedindo o Ibama trabalhar.

Mais um exemplo: desde outubro último, está em vigor um decreto que estabelece que multas por ações ilegais como o desmatamento devem ser revistas em audiências conciliatórias. As multas podem ter desconto ou mesmo ser anuladas, e o infrator não é obrigado a respeitar prazos. Dessa forma, o trabalho dos agentes do Ibama acaba sendo totalmente esvaziado e até ridicularizado.

E como deve se sentir um fiscal do Ibama que arrisca a própria vida para proteger o meio ambiente, se depois o ministro Salles cumprimenta desmatadores ilegais em Rondônia e pede desculpas pelas ações dos agentes? 

Mais recentemente, Salles assinou uma anistia para grileiros na Mata Atlântica, da qual 75% já foram destruídos. É claro que ele também apoia o Projeto de Lei 2.633 (a antiga Medida Provisória 910 ou "MP da Grilagem"). O próprio Ministério Público Federal diz que esse projeto "não beneficiará os pequenos produtores, mas sim representará mais uma abertura de porta à legitimação da grilagem e da violação de leis ambientais". Graças às pressões de ambientalistas, defensores dos povos indígenas e até redes de supermercados britânicas, que ameaçaram boicotar o Brasil, a lei foi retirada da pauta da Câmara.

Com sua política desgovernada de combate à covid-19, o governo Bolsonaro está cometendo um atentado contra a saúde dos brasileiros. À sombra da crise, ele está destruindo a fantástica natureza do Brasil. Falei recentemente com um funcionário do Ibama que prefere permanecer anônimo. Ele afirma representar um grupo de funcionários da agência ambiental que se encontram "nas trincheiras".

Ele me disse que a execução das leis ambientais não era mais a linha do governo. Ele descreveu a atual situação da seguinte forma: "Eu diria que a intenção principal é estender a presença do governo na floresta. Para isso, ele precisa diminuir o Estado, os servidores que seguem a lei, para colocar pessoas que obedecem ordens independentemente da lei. Com homens de confiança, dispostos a agradar o governo, eles podem ignorar a legislação e saquear a floresta conforme a necessidade. É a criação de uma milícia ambiental, com militares trabalhando à margem da lei."

Parece totalmente coerente nesse cenário que o presidente Bolsonaro tenha acabado de emitir um decreto que transfere temporariamente as decisões sobre operações ambientais para os militares. O Ibama fica, assim, sem competências. A pandemia de covid-19 parece paralisar tudo, exceto a destruição da Amazônia.
Philipp Lichterbeck

Para o Brasil, a solução ideal seria Bolsonaro se licenciar para tratamento da saúde

Chega a ser comovente o esforço de determinados eleitores de Jair Bolsonaro que defendem uma trégua política, para permitir que o país possa se reorganizar e seguir em frente, em meio a recessão mundial que vai nos atingir em cheio. Bem, sonhar não é proibido. Qualquer pessoa com um mínimo de senso crítico sabe que isso seria o ideal, na base do velho ditado de que é melhor um mau acordo do que uma boa briga.

Mas esse sonho de um acordo logo se desfaz, porque não está ocorrendo uma crise convencional, como costuma acontecer em outros países, onde a oposição às vezes é tão intensa e aguerrida que consegue impedir a ação do governo. Aqui no Brasil a situação, infelizmente, mostra-se muito diferente, porque não é provocada pela oposição..

O grande enigma político do Brasil é justamente a necessidade de se raciocinar sobre coisas óbvias na pauta política. Se ainda estivesse entre nós, Nelson Rodrigues poderia nos ajudar nessa busca ao óbvio ululante, que existe, mas ninguém consegue ver ou localizar.


Com toda certeza, a culpa não é da oposição, até porque no Brasil ela nem existe. A última eleição teve a característica de liquidar a oposição, que nem possui um líder para chamar de seu, pois Lula da Silva está descartado, a Lei da Ficha Limpa acabou com suas possibilidades eleitorais e o PT não tem sucessor.

Pense nisso. Os partidos que se dizem de oposição, como PT, PCdoB, PDT, PSB, Podemos etc., nenhum deles apresenta um líder que ameace o governo.

Bem, como não há oposição para atrapalhar, deveria ficar mais fácil conduzir o governo, mas no Brasil não é assim. O presidente se atrapalha sozinho, nem precisa existir oposição. Sua atuação é tão desastrosa que chega a ser inacreditável, pois está conseguindo até desgastar a imagem de confiabilidade das Forças Armadas, vejam a que ponto chegamos.

O presidente, o vice, os ministros do núcleo duro do Planalto, todos são militares – um capitão, quatro generais e um major, e no palácio ainda tem um outro general de penduricalho, como porta-voz invisível. Na Esplanada, há mais quatro oficiais superiores como ministros e foram contratados quase 3 mil militares das mais diversas patentes para cargos comissionados.

Caramba! Que militares são esses que não conseguem levar adiante um governo minimamente produtivo e confiável? O que realmente está impedindo esse governo de deslanchar?

Até os sites de fake news e pornografia bancados pelos generosos anúncios do governo sabem que o culpado dessa bagunça toda chama-se Jair Messias Bolsonaro.

Por isso, não adianta uma trégua ou um grande acordo nacional, como foi conseguido pelo presidente Itamar Franco em sua brilhante gestão. É o atual governante que não quer trégua, não aceita acordo e se comporta como se estivesse sendo perseguido pelo Supremo e pelo Congresso. Por isso, faz o possível e o impossível para ser “nomeado” ditador e salvar o Brasil.

Portanto, a melhor solução seria o presidente pedir uma licença, se afastar e deixar o país em paz.