sábado, 6 de junho de 2020

‘Vou chamar o Pires’

Não é a primeira vez que acontece de um presidente acuado ameaçar a nação com a convocação das Forças Armadas. Jair Bolsonaro é mestre em citar os militares como salvadores da pátria sempre que se encontra em situação difícil, causada normalmente por ele mesmo em razão de declarações estapafúrdias ou gestos politicamente equivocados. O último general-presidente da ditadura iniciada em 1964, João Figueiredo, repetiu inúmeras vezes a frase “Olha que eu vou chamar o Pires”, sempre que um fato o incomodava. O Pires de Figueiredo era o carrancudo Walter Pires, ministro do Exército.

A frase de Figueiredo queria significar uma volta ao passado, à linha-dura. Embora Figueiredo tenha sido o último presidente do regime, a ditadura vivia seus estertores. O presidente tinha ainda poderes excepcionais, como o decreto-lei, uma espécie de Medida Provisória de sinal trocado. O decreto passava a valer no ato da sua publicação e só perdia a validade se o Congresso o derrubasse. A MP cai se o Congresso não a apreciar. Mas o famigerado Ato Institucional número 5 havia sido revogado. E aos poucos o país voltava à normalidade com a Anistia de 1979, a volta dos exilados e a libertação de todos os presos políticos

Nos últimos anos do governo Figueiredo, fora os extraordinários problemas econômicos, o Brasil só queria eleger o próximo presidente e desenhar uma nova Constituição para substituir a Carta escrita pelos militares. O primeiro objetivo foi enterrado com a derrota da emenda Dante de Oliveira, que restabelecia a eleição direta, mas o substituto do último ditador seria o civil Tancredo Neves, adversário da ditadura. E a nova Constituição democrática, que o deputado Ulysses Guimarães batizou de “Constituição Cidadã”, era só uma questão de tempo.

Apesar da ameaça comum de chamar um militar para resolver um problema civil, param por aí as semelhanças entre o governo do general e o do capitão. Bolsonaro é um presidente eleito legitimamente pelo voto popular, enquanto Figueiredo foi escolhido solitariamente pelo seu antecessor, o general Ernesto Geisel, e ungido por um colégio eleitoral formatado para atender as ordens do Palácio do Planalto. Mas isso não torna o primeiro melhor do que o segundo.

A composição dos ministérios dos dois presidente é um bom exemplo da diferença entre eles. Com mais ministros do que hoje, Figueiredo tinha sete militares na Esplanada contra 11 de Bolsonaro. Dos sete ministros fardados de Figueiredo, três ocupavam cargos que eram privativos de oficiais generais, os Ministérios de Exército, Marinha e Aeronáutica (hoje departamentos subordinados ao Ministério da Defesa). O que isso significa? Não muito, mas pelo menos pode-se dizer que o general confiava mais nos civis do que o capitão.

Figueiredo era mal educado e frequentemente falava barbaridades, mas não se pode comparar suas grosserias com as de Bolsonaro. Nunca se ouviu o general mandar um jornalista calar a boca. Também se desconhece reunião ministerial com tantos impropérios quanto aquela famosa do dia 22 de abril. Figueiredo era mais tolerante, talvez porque não tivesse os poderes extraordinários e antidemocráticos de que usufruíram seus antecessores. Bolsonaro é mais intolerante, talvez porque queria ter aqueles poderes para si.

Bolsonaro olha para o seu futuro querendo enxergar o passado. Figueiredo sabia que não tinha futuro.
Ascânio Seleme

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