O Papa vai investigar padres acusados de pedofilia e os bispos que os acobertaram. O abuso da inocência pelos representantes da pureza de Cristo é mais do que um crime: é um pecado revoltante. Uma abominação.
O Parlamento Europeu exige a saída imediata de Blatter. Aproveitar-se da nossa inocência de amantes do futebol — essa máquina de beleza e transparência — para ganhar milhões em propinas é uma outra abominação. Com tintas de legitimidade e um certo conforto porque, para muitos, não haveria moral no mercado e no capitalismo. Aguardamos os resultados com esperança. Aproveito o ensejo para retirar minha candidatura à presidência da Fifa. Estou com o Zico e não abro.
A terceira boa nova e, para o estilo brasileiro de ser, a mais importante, é o golpe desferido contra a nossa boa cultura da má-fé pela ministra Cármen Lúcia e seus colegas do STF. Os 9 a 0 contra o bloco dos que fizeram uma liga pró-censura renovam expectativas.
Mas o nosso velho labirinto permanece.
O labirinto, dizia um filosofo, é o paradoxo em forma de corredores. Na vida social temos labirintos exemplares. O delator premiado delata o outro delator; e um terceiro delator faz o mesmo com os dois primeiros. Outro exemplo: um sujeito falsifica uma obra de arte com tal perfeição que nem os peritos distinguem o falso do verdadeiro.
Existiria um governo que roube o país que governa de modo programado, levando-o à ruína? Não seria legítimo assaltar como governo, sendo o governo eleito pelo povo e irremovível porque o voto popular é sagrado? Mas democracia não seria poder também ter o direito de retirar pelo mesmo voto quem foi lá colocado e não honrou o papel público recebido e trabalhou mais para o partido, para os seus associados do que para a coletividade? Afinal, um governo que rouba sistematica e escandalosamente o seu país não é o mesmo que uma pessoa roubar a si mesma? Um viciado rouba de si mesmo o seu bem-estar. Devemos deixá-lo entregue à sua miséria moral ou chamá-lo às falas? Haveria governos e partidos vítimas de seus programas? Admitimos uma ladroagem oficial, institucional, legal e populista?
Se casamentos e negócios, tal como as amizades, podem ser desfeitos, por que não os ocupantes de cargos públicos? Quando o PT fez uma contundente campanha contra um Fernando Henrique Cardoso recém-eleito presidente, dando-lhe um simbólico “não”, foi um direito. Quando, entretanto, se faz o mesmo com a Dilma, é traição ilegitima? Do meu ponto de vista, recolher ocupantes de cargos eletivos por incompetência ou mendacidade é uma prerrogativa básica da vida igualitária e democrática. Se um jogador, eis um labirinto, trai o seu time, não é obrigação e dever tirá-lo de campo?
Alfred Kroeber, um dos primeiros antropologistas formados por Franz Boas, dizia que nós somos folhas de papel em branco nas quais a cultura (o nosso sistema cosmológico) se escreve. De tal maneira que até mesmo as nossas reações se fazem dentro dos limites estabelecidos pela nossa cultura. Numa aula, um aluno contestou invocando a liberdade individual. Eu, humilde, respondi que a própria ideia de liberdade é uma programação cultural e, como tal, ela tem que ser explicitada, construída e aprendida.
Existe a palavra liberdade em todas as línguas? Eu fiquei chocado quando descobri que, entre os apinayé, não havia palavra para o nosso zeloso: “muito obrigado”. Quem escreve quem? Somos todos textos ruins? Ou atores correndo atrás de personagens cuja densidade e nobreza nos escapa? Ou somos autores de nossas sociedades que, escritas por cada um nós, se transformam de acordo com nossos projetos?
Um labirinto óbvio é a recusa a tentar separar o falso do verdadeiro, o dissimulado do autêntico. A decisão do STF foi admirável porque ela resolveu uma questão. Biografias de quem tem fama e, eventualmente, talento — dentro das conhecidas incomensurabilidades existenciais e guardado o bom-senso e a má-fé — pertencem à sociedade. Todas as vidas têm a inscrição de um sistema. E todo sistema se exprime por meio de vidas. Não há como separar pessoas e grupos, a não ser por meio de um enorme (ou despótico e desonesto) esforço. Todos estamos no mesmo barco. Muitas vezes o abandonamos e esse abandono torna-se uma variante do sistema porque, cedo ou tarde, o sistema o recupera. Primeiro pela admoestação ou preconceito (o que o torna ainda mais forte) depois pela admissão (o que leva a sua diluição e normatização). Até, é claro, que aparece outra heresia ou desvio.
Outro labirinto.
O Parlamento Europeu exige a saída imediata de Blatter. Aproveitar-se da nossa inocência de amantes do futebol — essa máquina de beleza e transparência — para ganhar milhões em propinas é uma outra abominação. Com tintas de legitimidade e um certo conforto porque, para muitos, não haveria moral no mercado e no capitalismo. Aguardamos os resultados com esperança. Aproveito o ensejo para retirar minha candidatura à presidência da Fifa. Estou com o Zico e não abro.
A terceira boa nova e, para o estilo brasileiro de ser, a mais importante, é o golpe desferido contra a nossa boa cultura da má-fé pela ministra Cármen Lúcia e seus colegas do STF. Os 9 a 0 contra o bloco dos que fizeram uma liga pró-censura renovam expectativas.
Mas o nosso velho labirinto permanece.
O labirinto, dizia um filosofo, é o paradoxo em forma de corredores. Na vida social temos labirintos exemplares. O delator premiado delata o outro delator; e um terceiro delator faz o mesmo com os dois primeiros. Outro exemplo: um sujeito falsifica uma obra de arte com tal perfeição que nem os peritos distinguem o falso do verdadeiro.
Existiria um governo que roube o país que governa de modo programado, levando-o à ruína? Não seria legítimo assaltar como governo, sendo o governo eleito pelo povo e irremovível porque o voto popular é sagrado? Mas democracia não seria poder também ter o direito de retirar pelo mesmo voto quem foi lá colocado e não honrou o papel público recebido e trabalhou mais para o partido, para os seus associados do que para a coletividade? Afinal, um governo que rouba sistematica e escandalosamente o seu país não é o mesmo que uma pessoa roubar a si mesma? Um viciado rouba de si mesmo o seu bem-estar. Devemos deixá-lo entregue à sua miséria moral ou chamá-lo às falas? Haveria governos e partidos vítimas de seus programas? Admitimos uma ladroagem oficial, institucional, legal e populista?
Se casamentos e negócios, tal como as amizades, podem ser desfeitos, por que não os ocupantes de cargos públicos? Quando o PT fez uma contundente campanha contra um Fernando Henrique Cardoso recém-eleito presidente, dando-lhe um simbólico “não”, foi um direito. Quando, entretanto, se faz o mesmo com a Dilma, é traição ilegitima? Do meu ponto de vista, recolher ocupantes de cargos eletivos por incompetência ou mendacidade é uma prerrogativa básica da vida igualitária e democrática. Se um jogador, eis um labirinto, trai o seu time, não é obrigação e dever tirá-lo de campo?
Alfred Kroeber, um dos primeiros antropologistas formados por Franz Boas, dizia que nós somos folhas de papel em branco nas quais a cultura (o nosso sistema cosmológico) se escreve. De tal maneira que até mesmo as nossas reações se fazem dentro dos limites estabelecidos pela nossa cultura. Numa aula, um aluno contestou invocando a liberdade individual. Eu, humilde, respondi que a própria ideia de liberdade é uma programação cultural e, como tal, ela tem que ser explicitada, construída e aprendida.
Existe a palavra liberdade em todas as línguas? Eu fiquei chocado quando descobri que, entre os apinayé, não havia palavra para o nosso zeloso: “muito obrigado”. Quem escreve quem? Somos todos textos ruins? Ou atores correndo atrás de personagens cuja densidade e nobreza nos escapa? Ou somos autores de nossas sociedades que, escritas por cada um nós, se transformam de acordo com nossos projetos?
Um labirinto óbvio é a recusa a tentar separar o falso do verdadeiro, o dissimulado do autêntico. A decisão do STF foi admirável porque ela resolveu uma questão. Biografias de quem tem fama e, eventualmente, talento — dentro das conhecidas incomensurabilidades existenciais e guardado o bom-senso e a má-fé — pertencem à sociedade. Todas as vidas têm a inscrição de um sistema. E todo sistema se exprime por meio de vidas. Não há como separar pessoas e grupos, a não ser por meio de um enorme (ou despótico e desonesto) esforço. Todos estamos no mesmo barco. Muitas vezes o abandonamos e esse abandono torna-se uma variante do sistema porque, cedo ou tarde, o sistema o recupera. Primeiro pela admoestação ou preconceito (o que o torna ainda mais forte) depois pela admissão (o que leva a sua diluição e normatização). Até, é claro, que aparece outra heresia ou desvio.
Outro labirinto.