domingo, 19 de setembro de 2021

Do Terceiro Reich até nós

Há versos ou poemas inteiros que grudam na memória e, mudos, passam a nos desafiar para sempre, retornando em particular nos momentos agudos de crise. Entre tais lembranças, difícil deixar de incluir Inquisitorial, de um jovem e talentoso José Carlos Capinan de meados dos anos 1960, ainda no rescaldo da guerra e do vasto sentimento antifascista que ela havia desencadeado.

“O poeta não mente, dificulta” – dizia Capinan –, e a dificuldade que propunha retirava-nos qualquer conforto possível: uma coisa é zombar, levados pelo gênio de Chaplin, do ridículo do Terceiro Reich, mas, de fato, o que faríamos se vivêssemos naquele tempo e tivéssemos de encarar em primeira pessoa o que só depois se revelaria absurdo?

Lição de arte e de vida, sem dúvida. A lição, porém, não implica comparações imediatas, como seria o caso se aplicássemos automaticamente o rótulo infame – fascismo ou nazismo – aos modernos ou pósmodernos movimentos de corrosão da democracia liberal ou, mais apropriadamente, da democracia tout court. Mais adequado é observar o modo como tais movimentos contemporâneos, repropondo em novas bases a figura do homem providencial, buscam arregimentar o povo, ou a “sua” parte do povo, indispondo-a contra as instituições republicanas que garantem as liberdades individuais e os direitos humanos.

Por óbvio, aqui nos valemos da engenhosa fórmula, criada por Yascha Mounk, para descrever a ação dos novos homens fortes. Da Rússia de Putin à Venezuela de Chávez e Maduro, países e estruturas políticas variam e personalidades podem não ser decalques umas das outras, ainda que haja entre elas imitadores baratos. Contudo, há algo de inquietantemente regular nos procedimentos que, hoje, buscam dissociar democracia e liberalismo e instaurar o cerco populista aos mais variados “Capitólios”, inclusive o nosso.


Deixando de lado os fatores “estruturais” da grande transformação, que põem de pontacabeça as relações entre economia e sociedade, nação e mundo, as respostas regressivas apoiam-se sempre em pesados elementos ideológicos, no sentido mais negativo do termo.

Há quem tenha detectado, como os autores de um relatório da controvertida Rand Corporation (Paul & Matthews, The Russian ‘Firehouse of Falsehood’ Propaganda Model , de 2016), a matriz putiniana do emprego maciço e coordenado de meias-verdades e mentiras consumadas, criando uma realidade paralela a partir da qual milhões de pessoas interpretam a realidade, fazem escolhas e se orientam, ou desorientam, na vida real. Não há ideologia inocente e não deixa de ser curioso que, aceita a hipótese da origem putiniana, haverá algum resquício de tipo “soviético” nas técnicas manipulatórias que se disseminaram, com o Brexit e a eleição de Trump, nos países ocidentais mais emblemáticos.

O “jato de mentiras” que jorra da boca dos autocratas não é um simples meio de “desviar a atenção” de questões incômodas para o governante ou fazer com que a sociedade se distraia de outros assuntos mais cruciais. Tal efeito não está de modo algum excluído, muito ao contrário, mas nos interessa sublinhar que este tipo de violação da linguagem é que permite a imposição de estratégias para a extração do consenso ao menos passivo de expressivos contingentes da sociedade.

Um consenso ativo pressuporia, por parte das camadas dirigentes, recursos hegemônicos capazes de dinamizar a vida cívica, enriquecer as formas da política e incorporar forças e ideias divergentes e até antagônicas num contexto de liberdade e pluralismo. Mais democracia, portanto, e não menos. À falta de tais recursos, a direita populista e iliberal dos nossos dias, ao contrário do que queria o poeta, mente e dificulta, corrói as instituições e faz adoecer as palavras. Congênita a ela é a busca obsessiva e paranoica do inimigo geopolítico e dos seus agentes internos a serem aniquilados, numa imóvel guerra fria que se limita a substituir espantalhos: antes, a Rússia de 1917, agora a China de 1949.

A liberdade que a direita autocrática apregoa é internamente contraditória. Ela é, acima de tudo, a liberdade do indivíduo autarquicamente concebido, desembaraçado de vínculos e obrigações, e armado até os dentes para defender o que discricionariamente entende ser seus “direitos”. A contradição interna fica patente quando se observa que, para fazer valer a liberdade sem laços e os direitos sem contrapartida, torna-se necessária a implantação de um Estado baseado, primariamente, na força e, secundariamente, na fabricação artificial do consenso. Em resumo, na mentira, na distorção e na enfermidade de palavras e sentidos.

Elites políticas, de direita, centro ou esquerda, dirigentes econômicos e cidadãos comuns, como qualquer um de nós, quase podemos “tocar” na história que se desenrola à nossa frente, com seus fatos e personagens precários e bizarros. É verdade, não estamos em 1930 e os embriões de Hitler e Mussolini não passam disto: embriões. O Inquisitorial, no entanto, continua a incomodar e a tirar o fôlego: “Tu, ante o presente, / Como te defines ao que será passado?”.

Não estamos em 1930 e os embriões de Hitler e Mussolini não passam disto: embriões.

Sem política social, apenas interesse eleitoral

O governo de Jair Bolsonaro não tem política pública social. Alega não dispor de recursos. No entanto, Bolsonaro tem dinheiro para agradar a sua base eleitoral. Na segunda-feira, o governo e a Caixa Econômica Federal anunciaram uma nova linha de financiamento imobiliário, com juros subsidiados, voltada exclusivamente para policiais e bombeiros.

Num Estado Democrático de Direito, no qual vigora o princípio da igualdade, é inconstitucional que algumas categorias profissionais sejam privilegiadas com juros mais baixos, enquanto o restante da população não tem acesso ao benefício. Por que um policial deve ter mais facilidade para comprar a casa própria do que uma professora, uma enfermeira, uma assistente social ou um motorista de ônibus, por exemplo?


Por definição, políticas públicas devem atender quem mais precisa. Os recursos públicos não podem ser usados para beneficiar familiares, amigos ou base eleitoral de um político. Tal restrição é evidente. O dinheiro público deve atender ao interesse público, não a objetivos particulares.

Segundo o governo, o novo programa de subsídio de juros receberá R$ 100 milhões do Fundo Nacional de Segurança Pública. Ora, o objetivo desse fundo é apoiar projetos na área de segurança pública e prevenção à violência, segundo as diretrizes do Plano Nacional de Segurança Pública. São recursos que devem servir a toda a população. Seu destino não é favorecer funcionários públicos envolvidos na segurança pública.

A concessão de privilégios por parte de Bolsonaro a policiais e bombeiros não apenas tem um explícito caráter eleitoreiro – usa e abusa do cargo para tentar se manter no poder –, mas evidencia desprezo pela situação da população. Sempre, mas especialmente num quadro de crise social e econômica, é preciso priorizar quem mais necessita.

Num cenário de crescimento acelerado da pobreza e da extrema pobreza, com cada vez mais pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, o presidente Bolsonaro, como se fosse um vereador, anunciou que sua base eleitoral poderá comprar a casa própria com juros subsidiados pelo restante da população. Eis um governo que prima pela total ausência de solidariedade.

O paradoxo do populismo das elites

Uma das características mais intrigantes do bolsonarismo é seu apelo para os mais escolarizados. O que faria com que as elites — ou parte delas — aderissem a um movimento populista que se organiza em torno de uma retórica antielites?

Um dos traços marcantes do populismo é que encontra mais apoio entre pessoas com baixa escolaridade. É assim com os partidos populistas na Europa continental, com o apoio ao Brexit no Reino Unido e com o apoio a Donald Trump nos Estados Unidos.

Por isso chama muito a atenção o apoio que o bolsonarismo angariou nas elites educacionais e econômicas no Brasil. Logo no começo de 2018, despontou como fenômeno eleitoral puxado por jovens de alta escolaridade e alta renda. Com o avanço da campanha eleitoral, o apoio a Bolsonaro foi se disseminando de maneira mais transversal, mas nunca se concentrou de forma marcante entre os menos escolarizados.


Há indícios de que o bolsonarismo vai perdendo apoio entre as elites, mas não de que se concentre entre quem tem menos escolaridade. Quando olhamos para a demografia da mobilização de rua, esse fenômeno é bem visível.

Quando a nova direita se formou, na campanha pelo impeachment de Dilma Rousseff, a escolaridade superior dos manifestantes na Avenida Paulista sempre esteve próxima a 80%. Na campanha eleitoral e no primeiro ano de governo, as manifestações de apoio a Bolsonaro tinham cerca de 65% de participantes com ensino superior. Esse índice caiu mais agora, na manifestação de 7 de Setembro, com 60% dos manifestantes com ensino superior.

Mesmo com esse percentual, o bolsonarismo de rua segue mais escolarizado que a média da população. Isso pode ser explicado pelo fato bem conhecido de que os segmentos mais escolarizados se engajam mais em protestos de rua. Mas parece ter algo a mais.

Quando olhamos para a opinião pública, e não para as ruas, a baixa escolaridade também não aparece. Segundo o Datafolha, 21% dos apoiadores de Bolsonaro têm ensino superior. Esse patamar não é elevado como no começo da campanha eleitoral de 2018, mas também não é menor que a média da população, como acontece em outros países.

Por que, no Brasil, o antielitismo tem adesão das elites? Talvez a resposta esteja na linguagem do bolsonarismo, que adota duas retóricas populistas complementares. De um lado, ataca elites culturais que controlam as instituições de reprodução de valores, como as universidades, os meios de comunicação e as artes. É o discurso do “marxismo cultural”. De outro lado, ataca a corrupção das elites políticas que ocupam posições no Estado. É o discurso anticorrupção.

Pode ser que seja essa vertente anticorrupção que mobiliza os setores mais escolarizados do bolsonarismo. Nesse caso, elites educacionais e econômicas rejeitariam as elites políticas. Pode ser ainda que essas elites educacionais bolsonaristas — que devem ser mais conservadoras — se considerem fora do lugar entre seus pares mais progressistas. Seja como for, o populismo brasileiro parece diferente de seus pares do Norte.

O risco real é o de banalizar o crime

Discordo radicalmente da afirmação de que iniciar um processo para o afastamento do Presidente Bolsonaro seria banalização do impeachment. O verdadeiro risco que o país corre é o de banalizar o crime. A começar pelo crime de responsabilidade. O presidente os comete em série. Se o impeachment não for o propósito neste momento estarão sendo revogados o artigo 85 da Constituição, a Lei 1079, artigos do código penal e todo o arcabouço institucional e civilizatório em torno do qual o Brasil refez o seu pacto social após a ditadura militar.


O presidente Bolsonaro tem provocado retrocessos em todas as áreas, ameaçado direitos e avanços. Não houve uma semana de paz em todo este governo. Um tempo em que ele não tivesse infringido alguma lei, algum inciso, algum dos nossos mais caros valores. Está claro, a esta altura, que um dos defeitos a corrigir nas leis brasileiras é o direito absolutista dado ao presidente da Câmara. Os crimes se acumulam, e os pedidos de impeachment são ignorados. A mesa do presidente da Câmara receberá em breve um novo pedido apoiado em relatório da devastadora Comissão Parlamentar de Inquérito. E o deputado Arthur Lira (PP-AL) poderá continuar ignorando, porque nada há no ordenamento legal brasileiro que modere esse poder. Está claro também que o país subestimou o risco que pode representar um procurador-geral da República alinhado com o governo e em busca da ambição de uma cadeira no STF. Apesar de tudo o que ele não fez, foi amplamente aprovado para mais um mandato.

A professora Maria Hermínia Tavares de Almeida, da USP, explicou numa palestra no Brazil Lab, de Princeton, que o Brasil vive um paradoxo: o sistema é democrático, mas o presidente é autoritário. Ele não controla as instituições, mas a estratégia é de sistemática confrontação. A definição do momento é perfeita, o país tem resistido aos ataques autoritários, mas há um dilema diante de nós. Nessa confrontação ele tem cometido crimes. Se esse paradoxo não for enfrentado da maneira correta, punindo-se o infrator, a democracia vai sair debilitada deste período infeliz.

Não tem lógica o argumento de que não pode ser usado esse remédio constitucional porque ele já foi utilizado recentemente. Por mais traumático que seja o impeachment, não tentá-lo neste momento seria o mesmo que abdicar do dever de proteger a democracia brasileira com os instrumentos legais existentes. Os partidos que defendem a democracia, estejam de que lado estiverem na dispersão ideológica natural de um sistema plural, precisam defender incansavelmente o impeachment do presidente Bolsonaro. Porque nunca antes dele um presidente cometeu tantos crimes de responsabilidade. Bolsonaro cometeu crimes contra a vida humana na calamitosa gestão da pandemia.

Houve quem dissesse que a CPI não deveria ser instalada porque o país vive uma pandemia, era preciso unir o país no combate à crise sanitária, para depois verificar quem cometeu erros. Os trabalhos da Comissão mostram como estava equivocada a turma do deixa-disso. A CPI não apenas tem revelado fatos desconhecidos do país, como estancou transações criminosas armadas dentro do Ministério da Saúde. O país é informado do que não sabia, mesmo quando os depoentes repetem que se reservam o direito ao silêncio. A CPI trabalha tão bem que as intervenções dos senadores revelam mais do que os depoimentos. Eles mostram documentos e provas em cada pergunta que fazem. E sem dúvida a CPI fez o governo acelerar o processo de aquisição de vacinas que nos permite ter a esperança de sair deste pesadelo.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, acha que iniciar um processo de impedimento agora só conseguiria transformar o Brasil num país governado por um pato manco. O ex-presidente Rodrigo Maia temia iniciar um processo que poderia ter o efeito contrário do esperado, ele ser absolvido e se fortalecer. Há muitos grupos políticos fazendo cálculos do que poderá ganhar ou perder num eventual afastamento do presidente. Não conseguem ver que há algo mais valioso em perigo. Se um presidente como Bolsonaro sair impune, mesmo diante de tudo o que ele fez, faz e continuará fazendo, o país estará correndo o risco de se fixar esse patamar de degradação da função da Presidência da República.

Pensamento do Dia

 


As perigosas gargalhadas de Temer sobre Bolsonaro

As manifestações golpistas a favor de Bolsonaro no Dia da Independência foram tensas no país por medo de que o presidente pudesse aproveitar-se delas para dar o golpe de Estado que tanto almeja. Foi por isso que a intervenção do ex-presidente Michel Temer para convencê-lo a pedir desculpas e fazer elogios à democracia foi aplaudida, embora muitos duvidem da sinceridade de Bolsonaro.

Por isso, o banquete organizado dias depois por Temer com um grupo de empresários amigos dele, todos homens, no qual o humorista André Marinho os divertiu imitando Bolsonaro, o que provocou gargalhadas de Temer e de seus comensais, causou surpresa na opinião pública e viralizou nas redes.

Banalizar uma situação tão grave como a que vive a democracia brasileira é duplamente perigoso. E ainda mais quando a população mais desassistida sofre o flagelo de uma economia em frangalhos que gera desemprego, fome e morte. A visão de um grupo de grandes empresários e o ex-presidente Temer durante um banquete rindo à vontade com a imitação jocosa do golpista Bolsonaro, nestes momentos em que as bases da democracia estremecem e cresce a política despótica e golpista, evidencia o perigo de converter uma tragédia em humor.


Quem me lê há anos sabe que sempre fui um defensor inveterado da sátira política, que considero liberadora de tensões, como o humor em geral, incluindo o chamado humor negro. E pude constatar que os grandes estadistas nunca se incomodaram nem mesmo com a mais feroz sátira contra eles. Sabem que faz parte do jogo da dialética. Só os políticos medíocres temem o humor porque se sentem inseguros.

Neste caso específico em que o Brasil vive momentos tensos que podem arrastar o país para uma guerra civil e que remetem ao livro Como as democracias morrem, a cena de Temer rindo de Bolsonaro às gargalhadas ultrapassa todos os limites do humor. Não que o presidente golpista sequer se importasse, pois sabe muito bem que sua famosa conversão escrita por Temer é falsa e que não tardará muito para voltar às suas ameaças autoritárias.


Sem dúvida, quem mais perdeu é o ex-presidente Temer, que provocou o impeachment de Dilma. Se em um primeiro momento foi aplaudido porque o texto de desculpas preparado para Bolsonaro parecia uma jogada em favor da democracia ameaçada abertamente na manifestação bolsonarista, o banquete por ele organizado com os empresários e a cena de humor exibida foi um balde de água fria naqueles que acreditavam que Temer havia realizado o milagre de converter o presidente disposto a dar o golpe.

Tanto é assim que Bolsonaro encarou a cena burlesca com tranquilidade, já que na realidade seu aparente pedido de desculpas por seus arroubos golpistas com o texto de Temer era apenas uma farsa. Antes das risadas pela conversão do mito no célebre banquete, ele é quem deve ter rido sozinho. Trata-se, de fato, de um golpista empedernido ao longo de toda sua vida, que respira o autoritarismo e a impossibilidade existencial de compreender os valores da liberdade.

Banalizar, mesmo com o humor, o momento de crise que vive este país e que preocupa o restante do mundo civilizado e democrático é duplamente perigoso, pois não estamos lidando com um político normal, capaz de encarar a sátira como parte do jogo democrático e da liberdade de expressão, mas com uma tragédia anunciava que a qualquer momento poderia explodir como um incêndio difícil de apagar.

Vários colunistas deste jornal já alertaram para o perigo que a democracia corre neste momento, por isso é perigoso qualquer deslize que dê ao tirano oportunidade para fortalecer sua psicopatia. No final, quem vai perder mais, como em todos os países dominados por ditaduras, são os mais indefesos, quem mais sofre na carne com a dor e o abandono. Nunca, em nenhum regime ditatorial de direita ou de esquerda, perdem os poderosos que acabam confraternizando com a tirania.

Se, em princípio, a sátira e o humor são libertadores de tensões, no caso específico que o Brasil vive hoje, seria melhor que os poderosos levassem a sério as profecias lançadas todos os dias por Bolsonaro, que são mais do que um simples jogo de ameaças. A sua guerra à democracia, a sua paixão pela ditadura, o seu carácter negativista, a sua total ausência de sentimento de compaixão pela dor dos outros e mesmo sua chacota com a morteo tornam imune a qualquer tipo de conversão.

É bom que mesmo os políticos democráticos que se julgam mais espertos não se esqueçam disso, pois o que está em jogo é um perigo real de retrocesso democrático que deveria ser combatido sem mais demora porque talvez amanhã seja tarde demais. Todos os medos de tomar medidas drásticas para não enfurecer a besta poderão ser duplamente perigosos.

Há momentos na história dos povos em que tentar brincar com o fogo ou minimizá-lo pode levar à catástrofe. Foi assim com o nazismo de Hitler e o fascismo de Mussolini, difíceis de compreender e analisar depois de tantos anos e que parecem ressuscitar disfarçados de modernidade, o que os torna duplamente perigosos.

Em que momento uma democracia se torna mais perigosa do que uma ditadura?

Esta semana ficamos a saber que o general norte-americano Mark Milley, chefe do Estado-Maior dos EUA, ligou pelo menos duas vezes para o general Li Zuocheng, do Exército de Libertação Popular, assegurando-lhe não ter intenções de lançar nenhuma guerra contra a China, ainda que para isso tivesse de contrariar ordens explícitas de Donald Trump, então na fase final do seu mandato. Milley terá conversado antes com a líder democrata Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes, e ambos concordaram que a saúde mental de Trump representava uma grave ameaça para a paz e para o futuro da humanidade. “As democracias podem ser desleixadas”, terá dito Milley a Zuocheng.

Durante aqueles dias de intenso nervosismo, a China parecia mais confiável para Mark Milley, para Pelosi, e para todas as pessoas sensatas em qualquer lugar do mundo, do que o homem democraticamente escolhido pelo povo norte-americano para presidir aos destinos do país. Nos EUA, há agora quem peça a cabeça de Milley, por alta traição. Eu, que não sou americano, apenas um cidadão do mundo, venho agradecer-lhe. Muito obrigado, senhor general, por ter tentado evitar um holocausto nuclear.


Para quem cresceu acreditando na superioridade absoluta das democracias relativamente aos regimes totalitários, a constatação de que, por vezes, ditaduras podem ser mais sensatas, mais cordatas e mais civilizadas do que governos de países livres, não deixa de ser perturbadora. Bem sei: democracias sempre permitiram e apoiaram atrocidades. As bombas nucleares que os norte-americanos lançaram sobre Hiroshima e Nagasaki mataram mais de 200 mil civis — um ataque de uma barbaridade e covardia que nenhuma ditadura jamais igualou. Trump não foi o primeiro louco a presidir a uma democracia. Seja como for, os dois telefonemas de Mark Milley dão que pensar. 

Democracias podem ser desleixadas, sim. Democracias podem ser corrompidas. Democracias podem ser destruídas a partir de dentro. Em que momento uma democracia se torna mais perigosa do que uma ditadura? E como evitar que isso aconteça?

A esta altura, todos os países democráticos deveriam estar tentando responder a tais perguntas. Esperava-se que o exemplo de Donald Trump tivesse servido de alerta vermelho. Infelizmente não foi assim.

As democracias continuam frágeis e não parecem preocupadas em se proteger das ameaças internas. Assim, o que aconteceu nos EUA, pode repetir-se amanhã em qualquer outro país. Incluindo nos EUA. 

As democracias precisam proteger-se. Dirigentes políticos que produzam ameaças explícitas às instituições democráticas deveriam responder perante a Justiça. Partidos e movimentos que insistem em defender ditaduras não deveriam sequer ser autorizados a participar no jogo da democracia. Contudo, vemos isso acontecer todos os dias nos EUA, no Brasil, na Alemanha, em Espanha ou em Portugal, sem que tais posições suscitem mais do que vagas queixas. 

Democracias fracas tendem a produzir ditaduras fortes. A História está cheia de bons exemplos. Milley escolheu trair Trump. Escolheu o lado da Humanidade. Fez a escolha certa. 

SOS Fome

No século XIX, os estrangeiros que nos visitavam não entendiam como era possível o Brasil tolerar a escravidão, ao ponto de sequer perceber sua maldade. Ao chamar atenção de um brasileiro para o absurdo de um escravo sendo chicoteado na rua, o estrangeiro ouve: “Mas ele é negro”. Até hoje, se um estrangeiro se surpreende e comenta sobre as precárias condições de escolas públicas, certamente ouviria: “Mas estes alunos são pobres”.

Passados 130 anos da Abolição e da República, os estrangeiros se espantam, mas os brasileiros não, quando a televisão mostra famílias sem comida em casa, ao lado da notícia de que somos o maior exportador de alimento do mundo, programas para escolher e premiar o melhor chef de cozinha, além de propagandas sobre redes de “fast food”, com jovens em êxtase ao comer suculentos sanduíches. O visitante estrangeiro deve comparar isto com as chicotadas que escravos recebiam em plena rua: chicotadas virtuais sobre as famílias que têm acesso à televisão e não têm acesso à comida.


Os governos progressistas entre 1992 e 2018 mentem ao dizer que tiraram o Brasil do mapa da fome com Bolsa Escola de FHC e Bolsa Família de Lula: apenas suspenderam, mas não aboliram estruturalmente a fome. Bastaria uma crise econômica, inflação ou epidemia de covid, agravada por erros e insensibilidade do atual governo, e a fome voltaria, porque ela não estava abolida, apenas suspensa.

E não teria sido difícil superá-la. A fome tem baixa escolaridade, como diz o pesquisador sobre o assunto Renato Carvalheira Nascimento. As análises mostram que apenas 4% dos que passam fome chegaram ao Ensino Médio. Se a educação de base tivesse sido oferecida antes, a fome não estaria maltratando agora, porque a economia teria aumentado e distribuído a renda, e o Brasil tem terra e tecnologia para produzir comida. Este teria sido o caminho para abolir a fome no futuro, mas neste momento, é necessária uma campanha que reúna e distribua comida. Solidariedade como o Betinho, Itamar Franco e Dom Mauro Morelli lideraram em 1992.

Da mesma maneira que as vítimas de violência doméstica pintam uma cruz na palma da mão para pedir socorro e proteção contra a violência, os famintos poderiam mostrar a palma da mão com um círculo desenhado para pedir socorro e proteção contra a violência da fome. Ao lado deste encontro direto entre os que passam fome e quem tem algum dinheiro, é possível criar centros SOS Fome para quem precisa de comida telefonar pedindo socorro. O espanto brasileiro mostra que há celular mesmo em famílias com a geladeira vazia, e se não tiver celular próprio, sempre haverá algum vizinho que possa fazer a ligação.

Estes centros SOS Fome poderiam ser financiados com a contribuição da sociedade. Seria preciso pouco da renda da parcela rica, especialmente os setores mais eficientes da economia. O que espanta na fome brasileira é que temos uma das maiores extensões da terra arável do mundo, temos as melhores tecnologias agrícolas, somos o celeiro do mundo e temos campos de concentração, incinerando as pessoas por dentro delas, pela fome. O setor do agronegócio, cuja competência fez do Brasil o celeiro do mundo, precisaria contribuir com pouco para o Brasil deixar de ser o campo de concentração, com fornos crematórios dentro de cada pessoa.

Poderíamos espantar pelo lado positivo: o Brasil unido em um SOS Fome.

Abecê do racismo

O universo infantil é um mundo à parte. Um mundo que foi construído ao longo da experiência humana. E, justamente por isso, é um mundo do qual temos que cuidar para que possa ser vivido em toda a sua extensão, intensidade e pulsão.

No entanto, existem questões que tentam driblar esse cuidado, essa preservação da infância: o racismo é uma delas.

Na última semana, um livro infantil causou indignação. A obra em questão se chama "Abecê da Liberdade: a história de Luiz Gama, o menino que quebrou correntes com palavras". Uma iniciativa que poderia ser comemorada, já que se propunha a narrar para o público infantil a vida de um dos maiores abolicionistas do país; um homem que, sozinho, libertou mais de 300 pessoas ilegalmente escravizadas.

Mas no meio do caminho, ou melhor dito, no meio do livro, havia o racismo.

Uma das passagens narra a viagem de crianças africanas escravizadas dentro de um navio negreiro utilizado no tráfico interprovincial do Brasil. Esse tráfico foi responsável pela manutenção da escravidão brasileira, num momento em que boa parte dos africanos escravizados no país estavam nessa condição de forma ilegal – já que, em 1831, o tráfico transatlântico havia sido formalmente abolido no país.

Johann Moritz Rugendas 

É importante dizer que, assim como o tráfico transatlântico, que escravizou mais de 12 milhões de africanos, o tráfico interprovincial foi responsável pela separação de inúmeras famílias de escravizados. Um medo que atravessava boa parte da vida dos homens, mulheres e crianças que trabalhavam nas províncias do Norte e Nordeste do Império do Brasil.

Pois bem, para os autores e editores de Abecê da Liberdade, a história foi diferente. De acordo com o livro, a viagem pelo mar teria sido tranquila, uma tranquilidade que permitiu que as crianças escravizadas pudessem brincar de ciranda, pega-pega e escravos de Jó. Uma "licença poética" pérfida e racista, que reduziu uma das dimensões mais violentas da escravidão a uma viagem na qual "o navio não balançou muito".

Para quem conhece pouco a história do tráfico interno no Brasil, seria mais ou menos como explicar o que foi um campo de concentração nazista, com a imagem de crianças judias brincando de amarelinha, dizendo que a estada no campo de concentração teria sido igualmente tranquila.

No mundo real, a escravização de milhares de crianças africanas representou a perda do lar, da família, da liberdade; o fim da infância. Muitas crianças foram apartadas de suas mães, pais e irmãos justamente nas travessias – tanto do Atlântico, como dentro do Brasil. Apresentar essa experiência por meio de uma ciranda nada mais é do que racismo.

O livro foi escrito por dois autores brancos, e teve sua primeira publicação em 2015, pelo selo Alfaguara Infanti, da editora Objetiva. Recentemente, a Objetiva foi comprada pela Companhia das Letras, e a obra foi reimpressa em 2020 sem que – pasmem! – houvesse uma releitura interna, conforme nota publicada pelo próprio grupo editorial.

Após as críticas, a editora fez uma nota pública e retirou o livro do catálogo, dizendo ainda que seria recolhido das livrarias (embora ainda seja bem fácil encontrar exemplares no mercado). Uma atitude que em nada diminui o erro da editora – já que milhares de crianças leram o livro –, mas que de alguma forma o reconhece.

Esse episódio poderia ser uma oportunidade para pensarmos sobre como o racismo continua entranhado no Brasil, e como a luta antirracista é um exercício constante. Uma oportunidade para autores e editores brancos admitirem que, sim, o racismo ordena suas vidas, e que para mudar esse cenário é preciso reconhecer o privilégio de que eles usufruem por serem pessoas brancas num mundo estruturado pelo racismo. Mas não foi o que ocorreu.

Um dos autores, José Roberto Torero, incomodado com as críticas recebidas, publicou sua indignação num jornal literário. No texto, ele compara a dificuldade de escrever sobre determinados temas (como a escravidão) à censura vivida nos tempos da ditadura. Segundo ele, estaríamos vivendo um momento de patrulhas ideológicas, no qual autores não têm liberdade para escreverem livros que possam seduzir seus leitores, cativá-los.

Ainda que a comparação com os tempos da ditadura militar me faça questionar se o autor – um homem maduro – tenha a dimensão do que foram os anos de chumbo no Brasil, gostaria de responder às questões que ele colocou.

É isso mesmo, José Torero. Estamos vivendo num país em que se torna cada vez mais difícil cativar nossos leitores. Sabe por quê? Porque graças a uma luta histórica dos movimentos negros, as histórias racistas estão sendo reveladas, expostas e criticadas. Uma ação que questiona, inclusive, os cânones literários, como a obra infantil do autoproclamado racista Monteiro Lobato. Você e demais autores ainda têm liberdade e mercado editorial para escrever e publicar o que lhes vier à cabeça, normalizando seu racismo com histórias que não têm nenhum tipo de comprometimento histórico, nenhuma empatia por um mundo realmente equânime. Mas não esperem louros por criar seu "Abecê do racismo".

O racismo não está apenas na segregação explícita, nas ações policiais violentas contra a população negra, na diferença salarial. O racismo atravessa nosso cotidiano, sendo ensinado para nossas crianças, brancas e negras, de maneira perversa, excludente e naturalizada. Nas escolhas dos temas que serão contados, na forma como esses mesmos temas serão contados, na determinação de quem contará as histórias. Nada é mais eficaz para a lógica do racismo do que uma bela história infantil racista.

Todavia, é importante dizer que outras histórias estão sendo contadas. Histórias feitas por historiadores, literatos e editores, muitos deles negros e negras, que têm o compromisso real e inquestionável com a luta antirracista. Histórias que valem a pena, e que podem acalentar crianças e gente grande de um país que ainda é para poucos.
Ynaê Lopes dos Santosautora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017)