sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Voz do Brasil

 


A vergonha de ser pobre e o culto das aparências

A pressa em mostrar que não se é pobre é, em si mesma, um atestado de pobreza. A nossa pobreza não pode ser motivo de ocultação. Quem deve sentir vergonha não é o pobre mas quem cria pobreza.

Vivemos hoje uma atabalhoada preocupação em exibirmos falsos sinais de riqueza. Criou-se a ideia de que o estatuto do cidadão nasce dos sinais que o diferenciam dos mais pobres.


Recordo-me que certa vez entendi comprar uma viatura em Maputo. Quando o vendedor reparou no carro que eu tinha escolhido quase lhe deu um ataque. “Mas esse, senhor Mia?! Ora, o senhor necessita de uma viatura compatível.” O termo é curioso: “compatível”. “Compatível com o quê?”, pergunto eu.

Estamos vivendo num palco de teatro e de representações: uma viatura já é não um objecto funcional. É um passaporte para um estatuto de importância, uma fonte de vaidades. O carro converteu-se num motivo de idolatria, numa espécie de santuário, numa verdadeira obsessão promocional.

Esta doença, esta religião que se podia chamar “viaturalatria” atacou desde o dirigente do Estado ao menino da rua. Um miúdo(criança) que não sabe ler é capaz de conhecer a marca e os detalhes todos dos modelos de viaturas. É triste que o horizonte de ambições seja tão vazio e se reduza ao brilho de uma marca de automóvel.

É urgente que as nossas escolas exaltem a humildade e a simplicidade como valores positivos. A arrogância e o exibicionismo não são, como se pretende, emanações de alguma essência da cultura africana do poder. São emanações de quem toma a embalagem pelo conteúdo.
Mia Couto

Daqui a vinte e cinco anos

Perguntaram-me uma vez se eu saberia calcular o Brasil daqui a vinte e cinco anos. Nem daqui a vinte e cinco minutos, quanto mais daqui a vinte e cinco anos. Mas a impressão-desejo é a de que num futuro não muito remoto talvez compreendamos que os movimentos caóticos atuais já eram os primeiros passos afinando-se e orquestrando-se para uma situação econômica mais digna de um homem, de uma mulher, de uma criança. E isso porque o povo já tem dado mostras de ter maior maturidade política do que a grande maioria dos políticos, e é quem um dia terminará liderando os líderes. Daqui a vinte e cinco anos o povo terá falado muito mais.

Cândido Portinari (1958)

Mas, se não sei prever, posso pelo menos desejar. Posso intensamente desejar que o problema mais urgente se resolva: o da fome. Muitíssimo mais depressa, porém, do que em vinte e cinco anos, porque não há mais tempo de esperar: milhares de homens, mulheres e crianças são verdadeiros moribundos ambulantes que tecnicamente deviam estar internados em hospitais para subnutridos. Tal é a miséria, que se justificaria ser decretado estado de prontidão, como diante de calamidade pública. Só que é pior: a fome é a nossa endemia, já está fazendo parte orgânica do corpo e da alma. E, na maioria das vezes, quando se descrevem as características físicas, morais e mentais de um brasileiro, não se nota que na verdade se estão descrevendo os sintomas físicos, morais e mentais da fome. Os líderes que tiverem como meta a solução econômica do problema da comida serão tão abençoados por nós como, em comparação, o mundo abençoará os que descobrirem a cura do câncer.
Clarice Lispector, “A descoberta do mundo”.

Aquele que veio para destruir

Jair Bolsonaro já está imortalizado como o presidente mais mentiroso do Brasil, mas deve-se admitir que pelo menos uma vez ele falou a verdade —que seu governo viria não “para construir, mas para desconstruir”. Disse isso em março de 2019, num jantar para empresários, políticos e jornalistas em Washington, tendo à sua direita o astrólogo Olavo de Carvalho, que lhe soprava frases. Uma delas, a de que a desconstrução era indispensável porque ele recebera um país rumando para o comunismo. Os gringos não sabiam que Michel Temer, seu antecessor, era comunista.

Bolsonaro tem mais do que cumprido a promessa. Está desconstruindo não só o que herdou dos governos, segundo ele, de esquerda, mas até o que seu dileto regime militar deixou.


Os generais da ditadura, em paralelo à asfixia política e jurídica, corrupção, censura, tortura e execuções que praticavam, pretendiam-se desenvolvimentistas. Costa e Silva criou o Mobral, a Funai e a Embraer. Médici, a Telebrás, a Infraero e o Incra. Geisel reatou relações com a China, foi o primeiro a reconhecer a independência de Angola e conduziu a Petrobras durante uma crise mundial do petróleo. Pois Bolsonaro dedica-se a —perdão, vacas— avacalhar com tudo isso.

Pode-se imaginar como Geisel, nacionalista hidrófobo, reagiria à recente declaração de Bolsonaro de que estava “pensando em privatizar a Petrobras”. Ou o que Castello Branco diria do seu desmonte da educação. E como eles veriam o seu desprezo pela administração, irresponsabilidade com a economia e redução do país a um quintal de condomínio.

Como se não bastasse seu rol de crimes na pandemia —indução à morte, charlatanismo, incitação ao crime, falsificação de documentos, violação de direitos, desvio de verbas, prevaricação etc.—, Bolsonaro deixou longe até o inesquecível João Batista Figueiredo na categoria em que este parecia imbatível: a destruição da dignidade da Presidência.

Estamos em decadência

Pela primeira vez na nossa história, o Brasil apresenta sinais de que sua crise é parte de uma decadência, que vai exigir anos, talvez décadas, para ser superada, recuperando o rumo do desenvolvimento civilizatório. Ainda no início dos anos 1990, o livro “O Colapso da Modernidade Brasileira” já alertava que o progresso brasileiro seria interrompido em decorrência da falta de cuidado com a desigualdade social, com os desequilíbrios fiscal e ecológico, com a baixa qualidade da educação, a tolerância com a corrupção e a ineficiência, o desprezo com a ciência e a tecnologia.

O atual debate político, prisioneiro do confronto em 2022, exclui a ideia de que Jair Bolsonaro é um fenômeno trágico e brutal, mas passageiro, e que, ao se abraçarem a ele, seus opositores ignoram a dimensão da tragédia histórica que o Brasil atravessa há anos. O momento atual é visto como uma crise, consequência do Bolsonaro quando, na realidade, ele é um indicador da nossa decadência.



A ânsia de emigração também é um indicador de decadência. Não se trata de saída por períodos curtos, para estudar, fugir de repressão, de guerra civil, como ocorre em outros países. As pessoas estão emigrando para fugir da violência, da incerteza, da falta de perspectiva de bem-estar e da ausência de desafio para construir uma nação; elas abandonam o Brasil por falta de esperança. A emigraçāo é facilitada pela globalização que permite manter os laços familiares e culturais, mesmo vivendo no exterior. O emigrado troca a vida angustiante e sem perspectiva no Brasil por uma vida segura no exterior, conversando com som e imagem com as pessoas que deixou no Brasil, assistindo ao futebol, às novelas e ao noticiário da televisão brasileira.

A decadência que provoca a emigração se agrava porque rouba o potencial desses emigrantes que vão beneficiar o país que os adota ou tolera. Um dia, algum desses emigrantes, ou seu filho ou filha, provavelmente receberá um Nobel em nome do país onde vive e produz.

Outro indicador de decadência está no despreparo educacional de grande parcela da população de adultos “analfabetos para a contemporaneidade”: não conhecem bases da ciência, não entendem os problemas do mundo, não falam idiomas estrangeiros. Isso indica que não estamos preparados para a integração no mundo, nem sintonizados com a velocidade com que ele avança. O corte de verbas promovido recentemente por decisão do presidente da República induz à decadência, porque o país que não invista maciçamente em conhecimento fica para trás em relação aos outros países.

A violência que nos rodeia é um indicador de decadência. Ainda mais a aceitação e acomodamento de sobreviver no meio de uma guerra civil informal, mas mortífera. Vivemos cercados por guardas, muros, vigilância; assistimos o noticiário como descrição de campo de batalha, sabendo que esse quadro continuará se agravando, empurrando muitos para a migração ao exterior e outros para aceitarem viver no meio da guerra sem saber quando será sua vez de vítima.

É prova de decadência moral a tolerância com a divisão da sociedade brasileira por uma brutal concentração de renda, cuja manifestação mais anti-civilizada é sermos o maior exportador de alimentos e termos um dos maiores contingentes de pessoas famintas entre todos os países do mundo. A aceitação como natural das notícias sobre a fome intercaladas de propaganda de alimentos e de concursos de culinária é mais um indicador de decadência moral que lembra o tempo em que a escravidão era aceita com naturalidade, separando os brancos dos negros, agora quem come e quem passa fome.

Também é prova de decadência termos o presidente mais ridicularizado entre todos do mundo, visto como motivo de galhofa internacional, representando um país em decadência, ao negar a importância da ciência, dizer com orgulho que não tomou vacina e que não vê necessidade de distanciamento social. Ainda mais quando a oposição torna-se prisioneira dos interesses eleitorais imediatos, sem perceber a decadência, nem apresentar rumos alternativos para barrá-la e promover a ascensão do país a um patamar superior de civilização. Nossos líderes parecem pilotos que disputam controlar o leme do navio, sem ver o iceberg da decadência em frente.