domingo, 12 de abril de 2020

Insensatez versus insensatez

Na Sexta-feira Santa, enquanto o Brasil contava mais de mil mortos pela Covid-19, o presidente Jair Bolsonaro chocava o país ao dar a mão a uma idosa depois de esfregar o nariz no antebraço, próximo ao pulso. Voltava às ruas não só pela birra de desobedecer às recomendações de seu ministro da Saúde, mas principalmente para acirrar o confronto com o seu desafeto-mor João Doria, que no dia anterior ameaçara prender quem violar a regra de isolamento.

Erros abissais de ambos.

O governador paulista, que em 2018 surfou na popularidade de Bolsonaro para se eleger, viu na incapacidade do presidente de lidar com a pandemia o cavalo arreado que tanto os políticos almejam. Montou. Mas depois de saltar com sucesso alguns obstáculos está prestes a tomar um tombo feio.

Assim como Bolsonaro não pode desfazer unilateralmente as determinações de isolamento tomadas por governadores e prefeitos, tema já analisado pelo ministro do Supremo Alexandre de Moraes, Doria não pode lançar na cadeia quem desrespeitar a quarentena.

Não à toa, Bolsonaro lembrou o direito de ir e vir ao ser criticado pelos passeios matinais em Brasília. A não ser em estado de exceção, ninguém pode cassar esse direito, embora ao exercê-lo contra tudo o que a ciência dita, o presidente coloque pessoas em risco de vida e escancare o descaso que tem por elas.

Ainda que alguns juristas defendam a competência legal do governador de mandar prender, um decreto para tal é polêmico e, na prática, criaria uma situação surreal: lotaria delegacias e ampliaria o contágio que se quer deter com o isolamento.

Doria vinha tendo um comportamento irrepreensível. Um exemplo de liderança centrada versus um presidente obtuso que insistia em tratar a peste como “gripezinha”, “resfriadinho”.

Enquanto Bolsonaro aprofundava-se no negacionismo, perdendo credibilidade e pontos de popularidade, Doria cresceu. Arregimentou um grupo técnico de qualidade indiscutível, montou um modelo de isolamento invejável, implantado gradativamente a partir do dia 16 de março. O anúncio da suspensão das aulas foi feito com uma semana de antecedência para que as famílias se preparassem, e, paralelamente, criou uma rede de amparo social e à saúde. Tudo seguindo os preceitos da Organização Mundial da Saúde e de acordo com o ministro Luiz Henrique Mandetta.

Encarnando a razão contra a incendiária bipolaridade do presidente que nada comanda, a não ser showzinhos para a plateia de fãs no portão do Palácio da Alvorada, Doria não precisava exacerbar. Bastaria continuar na sua correta pregação, diária e didática, sobre a necessidade de as pessoas ficarem em casa. No máximo, acenar com multa para os desrespeitosos. Ultrapassou limites ao falar em prender desobedientes, dando munição para quem já havia se autoabatido.

Talvez o maior erro seja imaginar que as preferências eleitorais se moldam no decorrer da crise. Ninguém em sã consciência tem ideia de como será o próximo mês, quanto mais 2022.

Doria ocupa uma posição confortável. Sua pretensão é a de se firmar como o defensor da vida acima de tudo. Mas governa o Estado epicentro da endemia no país. Mesmo se continuar a fazer tudo certo – e prender gente está longe disso -, São Paulo terá números recordes de doentes e mortos. Se relaxar, amontoará corpos como a Espanha, a Itália e os Estados Unidos. Quadros dantescos, incapazes de gerar dividendos eleitorais.

Bolsonaro, que pressupunha uma reeleição tranquila a partir de bons indicadores econômicos (resultados que não conseguiu começar a entregar antes mesmo do coronavírus), sabe que no final de seu mandato, se chegar até lá, terá nas mãos um país em frangalhos. Quer porque quer pôr o dinheiro para girar ainda que isso acelere a pane no atendimento à saúde e, consequentemente, custe mais vidas

Transgressor por natureza, Bolsonaro tem testado limites. Todos os dias manda seu ministro da Saúde às favas, desrespeita todas as regras.
Irresponsavelmente, incita as pessoas a ir às ruas. Está doidinho para ver Doria fazer a primeira prisão por violação ao isolamento. Ganharia assim um parceiro na insensatez.

Erros e acertos no espelho da história

O que fizemos certo como país e o que não fizemos aparecem agora diante de nós. O coronavírus trouxe um enorme espelho onde vemos com lucidez aguda os acertos e os erros. A democracia criou o SUS, formulou programas de transferência de renda e fez um cadastro dos mais pobres. Isso é a base para o trabalho de proteção dos brasileiros. A desigualdade, a falta de moradia decente, os esgotos não tratados e a má distribuição da água ameaçam transformar essa pandemia numa enorme tragédia social. E são os pobres e os negros os mais ameaçados. Como sempre.

O Brasil tem feito a si mesmo perguntas profundas neste tempo extremo. Uma delas é: onde estão os invisíveis? O país sempre conviveu com um fosso social imenso que divide os incluídos dos excluídos. Os com e os sem. No mercado de trabalho sempre houve os com carteira e os sem carteira. Dentro e fora das leis trabalhistas. Os sem carteira se dividem em vários grupos: trabalhadores informais, os que trabalham por conta própria, os empregadores sem CNPJ, os desempregados, os desalentados, os nem nem, os subutilizados. É uma multidão. São, evitando dupla contagem, 64,8 milhões. É a soma de toda a população da Argentina, de Portugal e da Áustria. Eles de alguma forma iam vivendo e gerando sua própria renda. O choque de realidade que a pandemia provocou trouxe todos eles para a cena principal. Quem são, onde estão, como fazer um caminho para entregar a eles os recursos públicos? Dúvidas do tempo presente.

Tudo o que foi feito nos governos democráticos nesses últimos 35 anos ajuda muito. É o que temos. Não é suficiente. O governo Sarney começou com o programa do leite, evoluiu para cestas básicas. Betinho avisou que a fome de outro brasileiro era inaceitável e nos ensinou a solidariedade. Cidades testaram a transferência de renda vinculada à presença da criança na escola, o Bolsa Escola. Para isso foi necessário fazer a ficha dos beneficiários. Campinas, Distrito Federal, Belo Horizonte passaram a criar cadastros. Outras cidades as seguiram. Depois veio o Bolsa Escola Federal, no governo Fernando Henrique, que fez o primeiro cadastro geral. Em seguida o Bolsa Família, no governo Lula, que unificou programas federais, ampliou a transferência e incluiu mais brasileiros no que se chamou de Cadastro Único. É incompleto, mas é a base que está sendo usada agora no auxílio emergencial.

Para ampliá-lo o governo pede, no meio dessa crise, que estejam todos, até as crianças, com os seus CPFs em dia. Essa exigência coloca os pobres em risco de vida. A mãe ou o pai de família precisam ir até um órgão público, aglomerar-se, para registrar aquele pequeno ser humano como contribuinte. Pronto. Se é um pagador de impostos então ele passou a existir. Essa exigência seria apenas surreal, se não fosse desumana. Na fila eles podem se infectar. A burocracia estatal, um dos nossos defeitos mais velhos, de novo coloca pedras no caminho.

Derrubar a superinflação indexada deixada pelo regime militar, e que virou hiperinflação, foi uma saga que consumiu dez anos de esforços. O real permitiu que mais brasileiros tivessem acesso a bens de consumo. A privatização produziu uma enorme inclusão no mundo da telecomunicação. Hoje é com esses celulares em mãos que os pobres estão tentando inscrever-se no auxílio emergencial. Na venda das teles criou-se um fundo cujo dinheiro deveria ter sido usado para informatizar todas as escolas públicas e universalizar a banda larga. É o Fust, Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicação. Arrecada R$ 1 bi por ano e tem R$ 20 bilhões em caixa. O governo acaba de decretar o seu fim. Se a tarefa tivesse sido executada, seria possível hoje ter todas as crianças na escola, ainda que remotamente.

Fizemos casas para os pobres e nem de longe foi o suficiente. Nas favelas, o risco é aterrorizante. O serviço de água tratada é irregular. Como lavar as mãos? Nas moradias não há espaço. Como isolar algum eventual infectado? As falhas da política habitacional e do planejamento urbano cobram a conta. O SUS espalhou-se pelo país e com todas as suas falhas é a melhor rede que temos para acolher os brasileiros.

O que fizemos de certo nos 35 anos de democracia nos ajudará nessa emergência humanitária. O que deixamos de fazer cobrará a conta e ela talvez seja alta demais. Que a dor dessa travessia nos ensine.

Brasil convid 17


O cisma de Bolsonaro

O desagregador do Planalto consegue provocar cismas até mesmo entre instituições sólidas como a Igreja Católica. Na quarta-feira, enquanto o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o progressista Dom Walmor Oliveira, criticava Jair Bolsonaro por desinformar o país e “provocar um itinerário para a morte”, católicos da ala conservadora foram para a porta do Alvorada rezar pelo “enviado por Deus para salvar o Brasil do comunismo”.

Verdade que as duas alas da Igreja não se bicam há anos, mas com a chegada de Bolsonaro a separação entre elas voltou a ganhar conotação política. Lembra a guerra de 24 anos entre a CNBB e os religiosos que apoiaram a ditadura de 1964, como se fosse possível homens que acreditam em Deus aceitarem governo que censura, tortura e mata. Esta turma não se envergonhava antes e não se envergonha agora em defender intervenção militar se essa for a forma de evitar a volta da esquerda ao poder.

A ala conservadora da igreja no Brasil vê comunistas em todos os lugares. Até mesmo na Santa Sé, já que muitos chamam o Papa Francisco de comunista e enxergam em alguns de seus atos manobras para sabotar o governo de Bolsonaro. Trata-se de uma bobagem sem tamanho, mas os cristãos da Renovação Carismática Católica que louvaram o presidente na porta do Alvorada disseram que mensagens de Francisco nesse sentido seriam ouvidas durante as pregações da Semana Santa. São tolos, como Bolsonaro.


O grave é que por serem tolos são também perigosos. Defendem as mesmas teses do presidente e concordam com a cruzada pelo fim do isolamento, permitindo que as pessoas “voltem a trabalhar, produzir e salvar vidas”. E, por mais absurdo que pareça, na vigília do Alvorada disseram fazer parte de uma certa “milícia celeste” de apoio ao presidente. Estes fundamentalistas carismáticos brincaram com fogo, fizeram trocadilho com a morte, já que se conhece a proximidade de Bolsonaro com a violenta milícia do Rio.

A CNBB, por sua vez, sempre esteve ao lado da democracia, dos mais fracos, dos excluídos, dos esquecidos. Foi assim durante todo o regime militar, continuou assim ao longo do período democrático inaugurado com a eleição de Tancredo Neves e a posse de José Sarney, em 1985, e segue da mesma forma sob Bolsonaro. Sempre, sob qualquer governo, foi crítica e contundente. Em 2004, atacou o governo Lula por se distanciar dos movimentos sociais. Não é preciso ser muito sabido para dizer quem está com a razão.

Esta divisão alcança também as igrejas evangélicas. Coloca de um lado os que o ex-deputado Chico Alencar (PSOL) chama de “bolsocrentes” e do outro as igrejas evangélicas históricas. Os primeiros acham que o coronavírus é jogada política, acreditam que conseguem exorcizar a praga e vão ao Alvorada pregar ao “escolhido por Deus”. Em 5 de março, um pastor, que tomou meia hora do presidente e o fez ajoelhar no asfalto em frente ao Alvorada, disse a seguinte barbaridade: “Em nome de Jesus declaro que no Brasil não haverá mais mortes pelo coronavírus”.

As igrejas históricas entendem que o presidente precisa ser freado. O Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil repudiou em nota oficial o pronunciamento em que Bolsonaro disse que se fosse acometido pelo coronavírus teria apenas uma gripezinha em razão de seu passado de atleta. Na internet, alguns grupos afirmaram que Bolsonaro “segue o delírio de poder e vaidade” e defenderam a renúncia.

O cisma religioso de Bolsonaro lembra a metáfora que Frei Betto construiu no seu mais novo livro, “O diabo na corte - Leitura crítica do Brasil atual”. Ele descreve um reino em que o diabo dissemina “a confusão semântica”, onde as palavras perdem os seus significados ou os têm trocados. E cita uma princesa que diz ser uma pessoa “terrivelmente religiosa”. Certamente a palavra “terrível”, que é aquilo que causa ou infunde terror, não deveria combinar com “religiosa”. Mas naquele reino combina, graças ao diabo. E nesse aqui parece que também.

'A batalha política do século será entre humanos e transumanos desumanos'

O filósofo italiano Franco Berardi, o "Bifo", aproveitou a quarentena em Bolonha para escrever um “Diário da psicodeflação”, publicado em inglês no blog da editora britânica Verso.

— Nosso psicológico vem experimentando uma “deflação”, no sentido de uma bola que está soltando ar, caindo no chão, flácida — disse.

Essa “deflação” é consequência da quarentena imposta pela pandemia do novo coronavírus, que obrigou aqueles que podem ficar em casa a desacelerar e esvaziar as ruas para manter a saúde.

Autor de livros como “Depois do futuro” e “Asfixia”, publicados no Brasil pela Ubu, Bifo participou de coletivos operários nos anos 1960 e sustenta que as novas tecnologias roubaram dos homens a possibilidade de sonhar futuros não previstos por algoritmos. Apenas a “reativação poética do corpo social” pode vencer a crise da imaginação, diz ele.

Em troca de e-mails com o GLOBO, Bifo afirmou que a recessão provocada pela epidemia pode inspirar arranjos sociais mais igualitários e sugeriu que a principal batalha política do novo século não será entre direita e esquerda, mas entre humanos e transumanos desumanos. Calma, nenhum ciborgue está vindo nos matar

— “Transumanos desumanos” são os que exploram as novas tecnologias para criar um sistema tecnototalitário.

Quais serão os efeitos desta quarentena prolongada?

O capitalismo como nós o conhecemos vai desmoronar. Os economistas negam os indícios de uma longa estagnação, mas está cada vez mais claro que não existe crescimento infinito. Os recursos do planeta — e os recursos do nosso sistema nervoso — são limitados. Temos uma alternativa: construir um novo paradigma de produção baseado na frugalidade, na reciclagem, na distribuição igualitária dos recursos, na redução da jornada de trabalho, na adoção completa das tecnologias que substituem o trabalho humano e em renda básica para todos. Ou seremos submetidos a um capitalismo tecnototalitário extremamente desigual e violento.

E a política? A epidemia vai reconfigurar a disputa política?

O jogo político do passado, baseado na oposição direita-esquerda, acabou. Donald Trump, Jair Bolsonaro e Matteo Salvini (ex-primeiro-ministro italiano) e outros líderes patéticos não são um retorno da velha direita, mas uma reação à humilhação e à impotência da maioria da população. A pandemia está revelando a inaptidão desses líderes. Alguns tiveram a decência de seguir as instruções da ciência. O primeiro-ministro italiano(Giuseppe Conte), na minha opinião, agiu com responsabilidade, ainda que com certo atraso, e está fazendo o que os especialistas recomendam. Outros líderes, como o presidente do Brasil, falam besteiras, temerosos de que a epidemia os derrube — o que eu suspeito que vai acontecer logo. Repare em Boris Johnson (primeiro-ministro britânico), aquele palhaço arrogante, que estava negando os perigos da epidemia e se recusando a agir, até ele próprio pegar o vírus e precisar de tratamento médico. Creio que o jogo geopolítico do século será a batalha final entre humanos e transumanos desumanos. A não ser que o conoravírus destrua todos os transumanos desumanos, o que é possível.

A que você se refere quando diz “transumanos desumanos”? Ciborgues? Inteligência artificial?

Não acho que os ciborgues ou a inteligência artificial sejam os vilões. A tecnologia pode ser uma ferramenta para o progresso e o bem-estar social. Só a ciência pode nos salvar da pandemia. A salvação certamente não virá dos políticos ou do mercado. Quando falo “transumanos desumanos” me refiro aos que exploram as novas tecnologias para criar um sistema tecnototalitário de controle do nosso trabalho e das nossas vidas.

O que é “psicodeflação”?

Nos últimos 30 anos, nós fomos obrigados a acelerar, competir, vencer a guerra diária da precariedade. No livro “24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono”, Jonathan Crary (crítico de arte britânico) estima que dormíamos, em média, 10 horas por dia no começo do século passado, oito horas nos anos 1960 e seis horas e meia em 2000. Em “Sex by numbers” (Os números do sexo), David Spiegelhalter (estatístico britânico) afirma que, em média, fazíamos amor cinco vezes por semana nos anos 1990, quatro nos anos 2000 e 2,5 na década de 2010. A economia neoliberal somada à tecnologia tem nos levado à infelicidade. Assista ao último filme de Ken Loach (cineasta britânico) "Você não estava aqui". O filme descreve a vida precária de quem trabalha com entregas, a ansiedade infernal. Depois da ansiedade, vem a exaustão e as convulsões do corpo coletivo, expressa nos protestos do semestre passado em Hong Kong, Santiago, Barcelona, Paris, Quito, Beirute, etc, etc. Estamos exaustos, nervosos e deprimidos. O coronavírus e a quarentena diminuíram a tensão. Nosso psicológico vem experimentando uma “deflação”, no sentido de uma bola que está soltando ar, caindo no chão, flácida, e também no sentido econômico de diminuição da demanda.

Você diz que, além do coronavírus, há um psicovírus se espalhando. O que é esse psicovírus?

O conceito de vírus foi usado por William Burroughs (escritor americano, 1914-1997) para definir tudo o que induz a uma mutação, seja ela cultural, linguística ou social. Um terço da população mundial está em quarentena, está tudo paralisado, a produção, as interações sociais, o tráfego aéreo, a vida urbana. Para entender o que está acontecendo, temos que levar em conta a mutação psicológica que o vírus produziu e seus efeitos sociais no futuro próximo.

Com a pandemia, ficou mais difícil imaginar o futuro?


Por um lado, o futuro é tão sombrio que nos aterroriza só imaginar o que está por vir. Por outro lado, a pandemia reativou o imprevisível. Ontem, o poder tecnofinanceiro bloqueava toda possibilidade de agir e de imaginar algo diferente do que a repetição algorítmica. Com a pandemia, começou um jogo totalmente diferente. O imprevisível superou o inevitável.

Você prescreve um remédio para a crise da imaginação: a “reativação poética do corpo social”. O que isso quer dizer?

O que é um movimento social? É o agrupamento consciente de corpos no espaço público e o compartilhamento de afeto, solidariedade, prazer e sensibilidade estética. Reativação poética do corpo social é isto: um movimento que vence o medo e torna possível a emergência da esperança, de novos estilos de vida e maneiras de organizar o conhecimento e a tecnologia.
Ruan de Sousa Gabriel

O dilema moral dos sem moral

Se você não entrar em quarentena por causa da pandemia, ela causa mais problemas e mais danos econômicos.
(...) Se você não implementa uma quarentena porque quer economizar dinheiro, está enfrentando uma questão moral e não econômica
Richard Baldwi, professor de Economia Internacional do Instituto de Pós-Graduação em Estudos Internacionais e Desenvolvimento em Genebra

Ganância também pode matar

O lucro líquido registrado em 2019 por Itaú Unibanco, Banco do Brasil, Bradesco e Santander foi de R$ 86,6 bilhões . Esses quatro bancos, que dominam o mercado nacional, cresceram 18,4% no ano passado e arrecadaram para seus caixas o maior valor nominal da história.

Com esse resultado, esperava-se um apoio forte deles e de outros agentes do mercado no combate ao avanço do novo coronavírus. Nas últimas semanas, várias instituições financeiras anunciaram doações para combater a pandemia. O valor estimado, de R$ 230 milhões, parece ser expressivo. No entanto, representa apenas 0,4% do lucro líquido registrado em 2019 pelos quatro gigantes da área.

Nesse sentido, a filantropia bancária poderia ter muito mais resultado se revertida em efetiva facilitação na concessão de crédito com juros menos extorsivos, garantias mais flexíveis e simplificação da burocracia. Isso ajudaria muito neste momento de crise.


E quem está sofrendo com o excesso de exigências dos bancos são justamente aqueles que estão na ponta do combate ao tratamento de brasileiros diagnosticados com a Covid-19: as 2.100 Santas Casas de Misericórdia espalhadas por esse Brasil afora. Elas atendem mais de 54% da demanda do Sistema Único de Saúde (SUS).

Ainda em 2018, aprovamos no Congresso Nacional medida que autorizou a criação de linha de crédito de R$ 5 bilhões com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para socorrer as santas casas e os hospitais filantrópicos que atendem pelo SUS. A proposta foi sancionada no mesmo ano e, em 2019, precisou de regulamentação, feita por meio de uma medida provisória. Para reforçar essa ajuda, ainda aprovamos agora em abril, já no meio da pandemia, a transferência de R$ 2 bilhões da União para as santas casas.

No entanto, como declarou nesta semana o presidente da Confederação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos (CMB), Mirocles Véras, as linhas de crédito não estão atendendo às santas casas. De acordo com ele, as condições impostas pela Caixa Econômica Federal estão impedindo que os recursos cheguem às instituições, que seguem endividadas e sem capacidade de se financiar.

A Confederação alega que o banco público está propondo juros que ainda são proibitivos para as entidades. Além do mais, o processo é muito burocrático e com exigências de garantias suplementares. Outro problema enfrentado é a falta de informação nas agências. Muitas superintendências regionais sequer conhecem as regras. Na prática, segundo Véras, o empréstimo é inviável na maioria dos casos.

Ou seja, trata-se de um dinheiro que deveria chegar rapidamente na ponta para os que fazem o enfrentamento da pandemia, mas que fica represado no caixa dos bancos.

Enquanto isso, mesmo no meio da crise, os maiores bancos da América Latina voltaram às graças de analistas. O Goldman Sachs está recomendando a compra de papéis do Itaú Unibanco e Banco Bradesco, enquanto o Bank of America adicionou o Itaú ao portfólio recomendado na região.

“Agora é a hora de comprar bancos”, disse para a Bloomberg Tim Love, diretor de ações de mercados emergentes da GAM Investments, de Londres, com cerca de US$ 1 bilhão sob gestão. Segundo ele, os grandes bancos brasileiros “são conhecidos por serem capazes de manter margens e dar lucro em qualquer ambiente”.

Os bancos lucram e o Brasil perde vidas em uma das maiores tragédias de sua história.
Rubens Bueno

O papel de cada um

Uma decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, em caráter liminar, impede que o presidente Jair Bolsonaro suspenda unilateralmente as medidas de isolamento tomadas por Estados e municípios para enfrentar a pandemia de covid-19. No entender do ministro, o presidente da República, caso resolva levar adiante sua ameaça de realizar esse tipo de intervenção nos entes subnacionais, estará violando preceitos constitucionais como a proteção à saúde e o respeito ao federalismo e a suas regras de distribuição de competências.

O ministro enfatizou que é justamente em “momentos de acentuada crise” como este que se faz mais necessário o espírito de cooperação entre os Poderes e os entes federativos, “em defesa do interesse público” e “sempre com absoluto respeito aos mecanismos constitucionais de equilíbrio institucional”, de modo a evitar o “exacerbamento de quaisquer personalismos prejudiciais à condução das políticas públicas essenciais ao combate da pandemia de covid-19” – referência clara às atitudes de Bolsonaro, que vive a se jactar do poder da caneta presidencial.

Em seu despacho, o ministro Alexandre de Moraes observa, no entanto, que “lamentavelmente” é “fato notório a grave divergência de posicionamentos entre autoridades de níveis federativos diversos e, inclusive, entre autoridades federais componentes do mesmo nível de governo”, aludindo ao confronto público entre Bolsonaro e seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, acerca do melhor modo de conter a pandemia. Na opinião do ministro do STF, isso acarreta “insegurança, intranquilidade e justificado receio em toda a sociedade”.

O ministro salientou, ademais, que as decisões tomadas por Estados e municípios são “reconhecidamente eficazes” contra a epidemia, em consonância com as recomendações da Organização Mundial da Saúde e da maioria absoluta dos mais respeitados institutos científicos do mundo.

Em resumo, a decisão do ministro Alexandre de Moraes é essencialmente correta nos seus aspectos legais e muito oportuna em suas observações a propósito da necessidade premente de unificar o discurso das autoridades na sustentação do isolamento social como única forma efetiva, no momento, de atrasar o previsível colapso do sistema de saúde.

O presidente Bolsonaro havia dito, há alguns dias, que tinha pronto sobre sua mesa um decreto por meio do qual obrigaria Estados e municípios a suspenderem as medidas restritivas. Na ocasião, ele mesmo reconhecia que o decreto poderia ensejar “sanções” contra ele e que esperava “o povo pedir mais” para assiná-lo. Anteontem, voltou a tocar no assunto, para dizer que estuda transformar o decreto em projeto de lei, “e mandar para o Parlamento decidir”. Ou seja, não desistiu da ideia de atropelar a autonomia de Estados e municípios para estabelecer medidas de isolamento social.

À TV Bandeirantes, na quarta-feira passada, Bolsonaro voltou a dizer que governadores e prefeitos que “tomaram medidas em desacordo com a população têm que refazer seu programa e voltar a abrir o comércio”. Mais tarde, em pronunciamento em rede nacional, Bolsonaro disse que “o governo federal não foi consultado” pelos governadores a respeito das medidas de isolamento social e que, portanto, essas “são de responsabilidade exclusiva dos mesmos”. Aposta assim, mais uma vez, na politização da crise, ao jogar na conta das autoridades estaduais e municipais os terríveis efeitos econômicos do isolamento, como se houvesse alternativa a essas medidas, adotadas em quase todo o mundo ante a escalada da pandemia.

Mas o presidente, já se sabe, só está preocupado em afastar de si qualquer responsabilidade pela crise. Para isso, não se importa em ameaçar o princípio federativo previsto na Constituição nem em estimular, em rede nacional, o consumo de um remédio cuja eficácia ainda não foi comprovada e que, por outro lado, provoca perigosos efeitos colaterais.

Ao mesmo tempo, Bolsonaro exigiu de seu ministro da Saúde que passe a adotar um discurso otimista. Não será fácil. Se algo inspira algum otimismo neste momento, é a certeza de que as instituições, como o Supremo e o Congresso, são capazes de proteger o País das investidas irresponsáveis do presidente.