sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Democracia sob tensão

A democracia está em baixa. Aqui e lá fora. Pesquisa realizada em 42 países com 36 mil entrevistas e coordenada pelo pesquisador francês Dominique Reyniê revela que podemos estar no limiar de uma nova era do autoritarismo, a exemplo do que aconteceu na década de 1930, quando países de ordenamento democrático entraram em crise, enquanto a Alemanha de Hitler e a União Soviética de Stalin deram grande salto econômico.

Segundo o estudo “Democracia sob tensão”, apresentado no Brasil na semana passada, as pessoas preferem mais ordem mesmo que com menos liberdade e estão preocupadas com problemas para os quais a democracia não vem respondendo satisfatoriamente: desemprego, segurança, desigualdade, perda do poder aquisitivo.

Esse quadro se agravou a partir da crise mundial de 2008 e como consequência de uma globalização excludente. Enquanto os países de democracia liberal mal se recuperaram da crise e enfrentam insatisfações decorrentes da ampliação da desigualdade, a China e a Índia – países de regimes autoritários – experimentaram forte crescimento econômico e incorporaram imensos contingentes ao mercado.

Esse é o pano de fundo para a eleição de Donald Trump nos EUA e Jair Bolsonaro no Brasil, o triunfo do Brexit reafirmado de forma esmagadora na recente vitória de Boris Johnson na Inglaterra, e para governos como o de Viktor Orbán, na Hungria, Erdogan na Turquia.


No caso brasileiro, a disfuncionalidade da democracia assume proporções catastróficas. Em seu artigo “Desafios da economia brasileira”, o economista Marcos Lisboa mostra que no período de 1981 a 2018 o PIB per capita cresceu apenas 38%. Compará-lo com a China de crescimento de 860% ou da Coreia do Sul, de 526%, seria covardia. O tamanho do nosso desempenho pífio salta aos olhos quando cotejado com o Chile, cuja expansão foi de 173,%, no mesmo período. A Colômbia que viveu uma guerra civil teve um crescimento e 103%.

As raízes da semi-estagnação brasileira estão no esgotamento do modelo de substituição de importações, no final dos anos 70. Segundo Armínio Fraga, nesse modelo o Estado teve grande peso numa economia fechada e de pouca ênfase na produtividade, educação e igualdade. O governo Geisel foi o último suspiro de um modelo que, paradoxalmente, unia na sua defesa a esquerda nacionalista e os militares. Ao final, gerou a hiperinflação e a explosão da dívida externa.

A Constituinte de 1988 e governos sucessivos alargaram a inclusão social, particularmente com a queda da inflação, a universalização do ensino fundamental, o Sistema Único de Saúde e o Bolsa Família. Como se deu em um quadro de baixo crescimento, de um Estado campeão em transferência de renda para os mais ricos e lanterninha na transferência para os mais pobres, o resultado previsível foi a deterioração dos serviços públicos.

O desastre da nova matriz econômica do segundo mandato de Lula e do governo Dilma agravaram a crise fiscal do Estado e a ineficiência da economia; por meio de subsídios, da política de “campeões nacionais” e de investimentos calamitosos como Abreu e Lima, Comperj, Pasadena, Sete Brasil. Também levou à explosão dos gastos públicos.

O Estado brasileiro não investe, gasta. E muito mal, sempre acima do que arrecada. Não serve aos brasileiros, serve às corporações que o capturaram. Segundo Armínio Fraga, esse Estado se apropria de 35% do Produto Interno Bruto, enquanto que só a União consume 28% do PIB para pagar o funcionalismo e aposentadorias. Não, há, portanto, retorno para a sociedade sob a forma de serviços públicos de qualidade. Isto explica por que na pesquisa “Democracia sob Tensão” apenas 23% dos brasileiros avaliaram que a democracia funciona bem.

Distensionar a democracia implica em promover o crescimento sustentado com inclusão social, levando adiante o programa de reformas. Não se trata, como se pregou na década de 70, de primeiro fazer o bolo crescer para depois dividir. Crescimento e inclusão devem andar juntos, sob pena do descrédito da democracia levar água para demagógicos e populistas que não nos conduzirão a lugar nenhum.

Veja os magos

Natal é ver os magos, não reis, que trazem a cultura, a sabedoria, a fascinação do oriente geográfico e do oriente interno de cada um; é ver a riqueza e variedade da terra, a multiplicação compulsória dos pães e dos peixes, a re-unificação da família humana numa assembleia universal, o prazer das futuras viagens, o cérebro eletrônico, a subida aos espaços interestelares; é ver a invisibilidade de Deus, que escapa à televisão
 Murilo Mendes, "Transístor"

'Cadáver ignorado' revela sociedade paralela de milhares de invisíveis na Amazônia

Sob as copas das árvores amazônicas, alvo de debates e preocupação mundial nos últimos meses, uma multidão de brasileiros invisíveis vive à margem da sociedade e tem todos esses direitos negados sem sinais de comoção ou indignação nacional.

Os membros desta sociedade paralela — quase 3 milhões, ou equivalente à população inteira de países como Armênia, Jamaica ou Albânia — são invisíveis ao Estado e não aparecem em qualquer estatística oficial porque lhes falta o básico: uma certidão de nascimento.

Tomar vacinas. Matricular-se em uma escola pública ou privada. Usar o SUS. Ir a um hospital particular. Votar. Ter um emprego. Casar. Alugar uma casa. Registrar filhos. Divorciar-se. Fazer exames clínicos. Viajar de ônibus ou avião. Ganhar Bolsa Família. Receber pensão. Ter conta no banco. Dirigir. Parcelar compras no shopping. Ter cartão de crédito ou débito. Registrar um celular. Receber seguro-desemprego. Fazer concurso público. Ter um advogado. Hospedar-se em um hotel. Financiar um imóvel. Pagar impostos. Aposentar-se. Ver um filme adulto no cinema. Pegar um livro em uma biblioteca. Ir ao exterior. Ganhar um diploma. Ter um enterro digno.
Ter um nome.
A região Norte, onde ficam os principais Estados amazônicos, tem a maior concentração do país de pessoas sem documentos, segundo o IBGE. Lá, 9 de cada 100 pessoas não têm documentos e não são consideradas cidadãs. Apesar de os números absolutos serem maiores pela maior concentração de pessoas, o percentual de brasileiros não identificados no sudeste é muito menor — ou 1 a cada 100 pessoas.

Não à toa, também estão no Norte do país os mais baixos índices de desenvolvimento humano do Brasil. "O que temos aqui no Norte é a correlação umbilical entre pobreza e subregistro", diz à BBC News Brasil a Defensora Pública Geral do Pará, Jeniffer de Barros Rodrigues.

"Quase 6 milhões de pessoas ganham até 3 salários mínimos no Pará. E mais da metade delas está abaixo da linha da pobreza", diz ela.A trajetória de privações e derrotas de Adriano Lima Ferreira, um rapaz alto e forte, de cabelo escuro e traços que misturam características indígenas e afro-brasileiras, ilustra o desafio encarado pelos brasileiros invisíveis na Amazônia.

O primeiro documento de Adriano foi sua certidão de óbito.

Já a primeira menção oficial à sua existência aconteceu enquanto ele ocupava uma câmara gelada do Instituto Médico Legal de Belém. Para o Estado brasileiro, naquele momento, o nome de Adriano, nascido no interior do Pará e morto aos 26 anos na periferia da capital, era "Cadáver Ignorado Protocolo 2019.01.050549".

Nascido em uma enfermaria de Abaetetuba, onde 65% das pessoas vivem abaixo da linha da pobreza, segundo o Ministério Público, Adriano não foi registrado pelos pais, que se separaram na época de seu nascimento.

Ele escapou da alta taxa de mortalidade infantil na região — 20 a cada 1.000 nascidos, ou o dobro do aceitável segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) — e chegou à idade escolar.

Foi quando ganhou um apelido bastante comum nas cidades ribeirinhas da Amazônia, e absolutamente desconhecido entre a classe média do Sudeste do país: Adriano, então um garoto magro e agitado, passou a ser conhecido como "encostado".

Ele não era o único. "Encostado aqui é como chamamos o aluno que não está regularmente matriculado na escola. Para ser regularmente matriculada, a pessoa precisa ter certidão de nascimento, se não a escola não admite", conta a advogada Beatriz dos Reis, uma defensora pública que atua em algumas das regiões mais remotas do país.

"Por uma questão de empatia, solidariedade, ou de missão mesmo, os diretores de escola aceitam que essas crianças frequentem a escola, para não ficarem soltas na rua e para terem lanche. Isso é muito, muito comum", diz.

"Ele estudou encostado e depois só conseguia bicos. Foi para Belém e perdemos o contato. Um dia, no jornal da Record, falaram de um casal que tinha sido assassinado. Falaram que era um jovem de aproximadamente 20 a 25 anos. Mostraram o corpo cheio de sangue e apareceu a tatuagem que ele tinha no braço. E também o pé dele, que era 'muito dele', diferente de qualquer pé. A gente falava sempre do pé dele. Não tinha como não reconhecer."

Segundo um site local, "um casal, ainda não identificado, foi assassinado na madrugada desta sexta-feira (12/07/2019) (....) em Ananindeua, Região Metropolitana de Belém. Segundo informações da Polícia Militar, populares relataram que o casal estaria tentando roubar fiação telefônica da rua, quando foi surpreendido por um homem desconhecido, que chegou no local atirando. As vítimas ainda tentaram correr, mas foram alcançadas pelo assassino. Os peritos do Insituto Médico Legal (IML) foram acionados, e idenficaram que o homem e a mulher foram executados com uma arma de grosso calibre."

A descoberta do assassinato do irmão pela televisão foi só o início da peregrinação da família em busca de um enterro digno para Adriano.

O dado que mais se aproxima da quantidade real de brasileiros vivendo na situação de Adriano é o levantamento de sub-registros de nascidos vivos do IBGE, que mostra quantas crianças não são registradas pelos pais no primeiro ano e meio de vida.

Segundo o órgão — e estimativas citadas pela Câmara dos Deputados e pela Associação Nacional de Defensores Públicos — 2,94 milhões de brasileiros não têm registro de nascimento e são, portanto, invisíveis.

"Falei da reportagem para a minha mãe, mas ela não acreditou de cara. Fomos até o IML e ela estava calma, nem parecia que tinha perdido um filho. A gente não pode abrir o caixão, porque Adriano já estava se decompondo. O corpo dele estava bem seco. Foi aí que bateu o desespero na minha mãe. Ela gritava que não acreditava, não acreditava. Dizia que estava mentindo. Aí deixaram abrir o caixão e mostraram só o pé. Ela acreditou e começou a passar mal."

A família informou que o Cadáver Ignorado Protocolo 2019.01.050549 era Adriano. Um exame com amostras de DNA do cadáver, da mãe e da irmã foi colhido. Depois de 9 dias de espera, o lando comprovaria o parentesco: "A probabilidade encontrada para esse vínculo genético é de 99,9989007449928%", dizia o documento.

No entanto, a família - pessoas pobres, sem estudos, que viajaram de carona até a capital na tentativa de enterrar o parente assassinado - não conseguiu retirá-lo do IML - o primeiro ambiente com referências hospitalares em que Adriano esteve desde o dia em que nasceu. Pessoas sem documentos, como ele, não podem usar o SUS ou mesmo participar de campanhas de vacinação, tornando-se potenciais vetores de doenças para as suas comunidades.

Segundo as normas dos Centros de Perícias Científicas, para onde são levados os corpos de vítimas de mortes violentas, "é impossível liberar um cadáver sem documentação, pois sem identificação civil não há como emitir um atestado de óbito".

Assim, mesmo com o exame de DNA em mãos, enquanto a família não conseguisse uma certidão de nascimento que pemitisse a emissão de seu atestado de óbito, o "cadáver Ignorado Protocolo 2019.01.050549" continuaria na geladeira.

Isso até que o prazo se esgotasse.

Moro e Bolsonaro diante do abismo

As notícias dadas por todos os meios de comunicação com ênfase nas denúncias de suposta corrupção da família do presidente Jair Bolsonaro o colocam, assim como a seu ministro da Justiça, Sergio Moro, diante de um abismo. Principalmente porque foi o próprio Bolsonaro quem alertou que podem ressuscitar novas notícias sobre o nunca resolvido “caso Marielle”, esse fantasma que se recusa a morrer e que, segundo ele, seus inimigos políticos tentam ressuscitar.

A presença de Moro no Governo Bolsonaro nestes momentos críticos se torna duplamente importante, enigmática e até perigosa. Há apenas alguns dias confessou que o presidente Bolsonaro é uma pessoa “muito digna” com quem tem uma boa relação de trabalho. A impressão que se tinha é de que Moro, que já não excluía que poderia se candidatar a vice-presidente nas próximas eleições, seguindo suas ambições políticas cada vez menos negadas, aparecia cada dia mais próximo do bolsonarismo mais duro. E agora? É verdade que pode dizer que não é mais o temido juiz da Lava Jato e apenas ministro da Justiça. Isso em teoria. Na prática, sua figura e sua imagem de intransigência contra a corrupção o colocam agora em uma situação que poderia significar seu teste definitivo. Terá de escolher. Continuará apostando em Bolsonaro e sua família diante dos novos acontecimentos? Continuará brincando de avestruz como se isso já não lhe dissesse respeito?

Outra pergunta que se impõe é até que ponto agora Bolsonaro continuará confiando em seu superministro ou temerá que possa ser traído, apoiado no consenso popular que apresenta, maior que o do presidente. Talvez tenha sido uma simples casualidade, mas, justamente neste momento surgiu a notícia de que o presidente está pensando em desdobrar o Ministério da Justiça para criar o Ministério da Segurança Pública, cuja missão é um dos êxitos de Moro no Governo, com a diminuição da criminalidade — embora os especialistas digam que não há elementos confiáveis para atribuir a queda de mortes violentas às políticas implementadas neste ano. Será que Bolsonaro está começando a duvidar da lealdade de seu ministro que também lhe servia de escudo e teme uma dessas traições das facas longas? Estaria considerando sangrar os poderes de seu ministro que de escudo pode se tornar seu inferno?



Se é difícil decifrar o que a esfinge Moro pensa hoje sobre as nuvens cinzentas que pairam sobre a família do presidente Bolsonaro, da qual está sendo rasgada uma das bandeiras fortes de seu programa, como era a luta contra a corrupção a qualquer preço, não é menos enigmático o que Bolsonaro começa a pensar sobre ele e seus escândalos que já parecem ter rompido suas margens. O presidente poderá temer uma traição de Moro, com sua fama internacional de juiz duro, que não tremeu a mão ao colocar na cadeia o mítico ex-presidente Lula e que sabe ter muitos anos pela frente em sua ainda indecifrável vocação de poder?

O mais seguro é que as próximas semanas e meses, ou talvez apenas dias, sejam definitivos nessa relação de amor e ódio que hoje une os dois personagens com maior poder no país e que, ao mesmo tempo, são seguidos perigosamente em seus passos pelo governador do Rio, o ex-juiz Wilson Witzel, não menos duro e ambicioso do que os dois, que não têm escrúpulos em anunciar desde já que poderá enfrentar Bolsonaro nas urnas.

Só Bolsonaro? E se o acaso fizesse que seu oponente na disputa pela presidência fosse Moro? Ambos foram juízes. Ambos ainda são jovens e têm fome de política. Dois duros que anunciaram ser a favor de mão forte contra o crime, o que lhes rende o aplauso das hostes bolsonaristas.

Talvez seja necessário, para tentar analisar o complexo panorama político aberto pelas investigações cada vez mais importantes e sombrias sobre a família do presidente, desenterrar o mito da esfinge grega, que era um demônio destrutivo com asas manchadas de sangue e que Sófocles chamava de “cruel cantora”. Esfinge e enigma, filha do rei Laio, cujo enigma, conhecido apenas pelos monarcas de Tebas, fora desvendado.

Para uma política correta e não destrutiva, mais do que enigmas e segredos, seriam necessários, como se dizia no jornalismo clássico, “luz e taquígrafos”, transparência e respeito pela verdade. Bolsonaro usa as palavras da Bíblia em seu lema de governo: “a verdade os libertará”. Essa verdade que desintoxica a política é o que o Brasil está precisamente necessitando nestas horas em que parece estar vivendo os fantasmas das pitonisas antigas.