sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

'Cadáver ignorado' revela sociedade paralela de milhares de invisíveis na Amazônia

Sob as copas das árvores amazônicas, alvo de debates e preocupação mundial nos últimos meses, uma multidão de brasileiros invisíveis vive à margem da sociedade e tem todos esses direitos negados sem sinais de comoção ou indignação nacional.

Os membros desta sociedade paralela — quase 3 milhões, ou equivalente à população inteira de países como Armênia, Jamaica ou Albânia — são invisíveis ao Estado e não aparecem em qualquer estatística oficial porque lhes falta o básico: uma certidão de nascimento.

Tomar vacinas. Matricular-se em uma escola pública ou privada. Usar o SUS. Ir a um hospital particular. Votar. Ter um emprego. Casar. Alugar uma casa. Registrar filhos. Divorciar-se. Fazer exames clínicos. Viajar de ônibus ou avião. Ganhar Bolsa Família. Receber pensão. Ter conta no banco. Dirigir. Parcelar compras no shopping. Ter cartão de crédito ou débito. Registrar um celular. Receber seguro-desemprego. Fazer concurso público. Ter um advogado. Hospedar-se em um hotel. Financiar um imóvel. Pagar impostos. Aposentar-se. Ver um filme adulto no cinema. Pegar um livro em uma biblioteca. Ir ao exterior. Ganhar um diploma. Ter um enterro digno.
Ter um nome.
A região Norte, onde ficam os principais Estados amazônicos, tem a maior concentração do país de pessoas sem documentos, segundo o IBGE. Lá, 9 de cada 100 pessoas não têm documentos e não são consideradas cidadãs. Apesar de os números absolutos serem maiores pela maior concentração de pessoas, o percentual de brasileiros não identificados no sudeste é muito menor — ou 1 a cada 100 pessoas.

Não à toa, também estão no Norte do país os mais baixos índices de desenvolvimento humano do Brasil. "O que temos aqui no Norte é a correlação umbilical entre pobreza e subregistro", diz à BBC News Brasil a Defensora Pública Geral do Pará, Jeniffer de Barros Rodrigues.

"Quase 6 milhões de pessoas ganham até 3 salários mínimos no Pará. E mais da metade delas está abaixo da linha da pobreza", diz ela.A trajetória de privações e derrotas de Adriano Lima Ferreira, um rapaz alto e forte, de cabelo escuro e traços que misturam características indígenas e afro-brasileiras, ilustra o desafio encarado pelos brasileiros invisíveis na Amazônia.

O primeiro documento de Adriano foi sua certidão de óbito.

Já a primeira menção oficial à sua existência aconteceu enquanto ele ocupava uma câmara gelada do Instituto Médico Legal de Belém. Para o Estado brasileiro, naquele momento, o nome de Adriano, nascido no interior do Pará e morto aos 26 anos na periferia da capital, era "Cadáver Ignorado Protocolo 2019.01.050549".

Nascido em uma enfermaria de Abaetetuba, onde 65% das pessoas vivem abaixo da linha da pobreza, segundo o Ministério Público, Adriano não foi registrado pelos pais, que se separaram na época de seu nascimento.

Ele escapou da alta taxa de mortalidade infantil na região — 20 a cada 1.000 nascidos, ou o dobro do aceitável segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) — e chegou à idade escolar.

Foi quando ganhou um apelido bastante comum nas cidades ribeirinhas da Amazônia, e absolutamente desconhecido entre a classe média do Sudeste do país: Adriano, então um garoto magro e agitado, passou a ser conhecido como "encostado".

Ele não era o único. "Encostado aqui é como chamamos o aluno que não está regularmente matriculado na escola. Para ser regularmente matriculada, a pessoa precisa ter certidão de nascimento, se não a escola não admite", conta a advogada Beatriz dos Reis, uma defensora pública que atua em algumas das regiões mais remotas do país.

"Por uma questão de empatia, solidariedade, ou de missão mesmo, os diretores de escola aceitam que essas crianças frequentem a escola, para não ficarem soltas na rua e para terem lanche. Isso é muito, muito comum", diz.

"Ele estudou encostado e depois só conseguia bicos. Foi para Belém e perdemos o contato. Um dia, no jornal da Record, falaram de um casal que tinha sido assassinado. Falaram que era um jovem de aproximadamente 20 a 25 anos. Mostraram o corpo cheio de sangue e apareceu a tatuagem que ele tinha no braço. E também o pé dele, que era 'muito dele', diferente de qualquer pé. A gente falava sempre do pé dele. Não tinha como não reconhecer."

Segundo um site local, "um casal, ainda não identificado, foi assassinado na madrugada desta sexta-feira (12/07/2019) (....) em Ananindeua, Região Metropolitana de Belém. Segundo informações da Polícia Militar, populares relataram que o casal estaria tentando roubar fiação telefônica da rua, quando foi surpreendido por um homem desconhecido, que chegou no local atirando. As vítimas ainda tentaram correr, mas foram alcançadas pelo assassino. Os peritos do Insituto Médico Legal (IML) foram acionados, e idenficaram que o homem e a mulher foram executados com uma arma de grosso calibre."

A descoberta do assassinato do irmão pela televisão foi só o início da peregrinação da família em busca de um enterro digno para Adriano.

O dado que mais se aproxima da quantidade real de brasileiros vivendo na situação de Adriano é o levantamento de sub-registros de nascidos vivos do IBGE, que mostra quantas crianças não são registradas pelos pais no primeiro ano e meio de vida.

Segundo o órgão — e estimativas citadas pela Câmara dos Deputados e pela Associação Nacional de Defensores Públicos — 2,94 milhões de brasileiros não têm registro de nascimento e são, portanto, invisíveis.

"Falei da reportagem para a minha mãe, mas ela não acreditou de cara. Fomos até o IML e ela estava calma, nem parecia que tinha perdido um filho. A gente não pode abrir o caixão, porque Adriano já estava se decompondo. O corpo dele estava bem seco. Foi aí que bateu o desespero na minha mãe. Ela gritava que não acreditava, não acreditava. Dizia que estava mentindo. Aí deixaram abrir o caixão e mostraram só o pé. Ela acreditou e começou a passar mal."

A família informou que o Cadáver Ignorado Protocolo 2019.01.050549 era Adriano. Um exame com amostras de DNA do cadáver, da mãe e da irmã foi colhido. Depois de 9 dias de espera, o lando comprovaria o parentesco: "A probabilidade encontrada para esse vínculo genético é de 99,9989007449928%", dizia o documento.

No entanto, a família - pessoas pobres, sem estudos, que viajaram de carona até a capital na tentativa de enterrar o parente assassinado - não conseguiu retirá-lo do IML - o primeiro ambiente com referências hospitalares em que Adriano esteve desde o dia em que nasceu. Pessoas sem documentos, como ele, não podem usar o SUS ou mesmo participar de campanhas de vacinação, tornando-se potenciais vetores de doenças para as suas comunidades.

Segundo as normas dos Centros de Perícias Científicas, para onde são levados os corpos de vítimas de mortes violentas, "é impossível liberar um cadáver sem documentação, pois sem identificação civil não há como emitir um atestado de óbito".

Assim, mesmo com o exame de DNA em mãos, enquanto a família não conseguisse uma certidão de nascimento que pemitisse a emissão de seu atestado de óbito, o "cadáver Ignorado Protocolo 2019.01.050549" continuaria na geladeira.

Isso até que o prazo se esgotasse.

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