quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Brasil armado

 


Lendo o jornal

Qual é o papel do jornal na vida das sociedades? É óbvio que tudo começou em Roma, mas só pode haver “jornal” quando há imprensa (um meio mecânico de múltipla reprodução) e letramento.

Quando uma população sabe ler e lê cotidianamente em busca de alento, de remédio e, sobretudo, de informação e novidade. A palavra “newspaper” é significativa, porque o jornal diário (o “daily news”) só pode existir num sistema em constante mudança. O jornal foi o primeiro anunciante de novidades manifestas ou bloqueadas em sociedades aristocráticas nas quais o ideal era a permanência e o que não cabia nas normas era visto como intrigas, aleivosias, ladroagens, segredos e fuxicos. O jornal “fura” ou abre o sistema inventando uma opinião impessoal: a opinião pública.

Jornais informam e informar é pôr em ação a igualdade de todos perante os eventos engendrados por suas sociedades. Ou seja: o jornal é a grande vacina contra fuxicos ou meias-palavras quando traz à luz do dia aquilo que os poderosos (ou mandões, os ricos, as elites e as celebridades) fazem na escuridão de seus privilégios e relações.

São os jornais, com seus “cadernos” e divisões, que articulam e legitimam que tal ou qual desastre, decreto, política, interesse e movimento pertence a este ou àquele domínio da realidade e quais são as suas implicações visíveis.



Nesse sentido, se o jornal tem colunistas voltados para a intriga, ele tem também colunas destinadas a dar sentido ao que o próprio jornal veicula. A primeira página retorna na segunda, transcrita com menos estardalhaço e mais compreensão. O fato chocante, irracional ou inusitado da manchete, reaparece como algo plausível.

Uma das maiores diferenças entre o livro e o jornal jaz nos elos entre a informação e o modo como ela é impressa. Nos livros, não há letras “garrafais”, que obrigam a focar um evento. Os destaques estão nos capítulos, mas não há, tirando o título, uma manchete ou “primeira página” na qual se estampam eventos capitais. Nessas “páginas de rosto”, eventos tornam-se episódios estruturais justamente porque os jornais assim os classificam. Ademais, livros não falam apenas do novo, mas – contrapondo-se aos jornais – elaboram questões permanentes debaixo da imaginação dos seus autores. Jornais estampam o real; livros, o ficcional. Ademais, o jornal é um produto estruturalmente coletivo e os livros pertencem aos seus autores.

Os primeiros escritos sagrados foram gravados em argila, mármore, bronze e, com Gutemberg, massificados em papel. Foram, é claro, os códigos legais e os mandamentos religiosos. O jornal tornou familiar aquilo que os livros isolavam das rotinas comuns.

Os jornais criaram o jornalismo e a imprensa inventou um quarto poder ao lado do executivo, do judiciário e do legislativo. Eles são a porta da liberdade sem a qual a democracia não seria possível.

Os elos escusos, as negociatas – as intenções “impublicáveis” – são obviamente elementos de controle do poder dos poderosos e indispensáveis instrumentos de controle moral ou social. A relação entre “fuxico e escândalo” é – sem dúvida – o cerne, se não a razão de ser do jornalismo no seu papel explícito de revelar e de reforçar quem pertence à comunidade da qual o jornal é um “porta-voz” – ou o anjo anunciador do que está oculto ou está por vir. O escândalo e a corrupção definem um país. No nosso, os privilégios são responsáveis por vergonhosas reversões morais.

Sou de um tempo no qual todo mundo tinha medo de “sair no jornal”, pois a notícia escrita num universo como o brasileiro, repleto de analfabetos natos, de burros doutores e de jumentos pós-graduados, o jornal era mais um instrumento de denúncias interessadas do que um veículo confiável e honrado de informações. Nele, conforme me ensinou meu saudoso pai, havia uma chuva de novidades e os filtros dos colunistas. Alguns devidamente nazificados pelo seu radicalismo, muitos pela sua empáfia e ignorância, mas havia um punhado deles capazes de intuir, explicar e informar o lugar social e político preciso do fato que a primeira página estampava.

Papai não era sociólogo, mas tinha o tirocínio e a sensibilidade para me ensinar como os colunistas complementavam os repórteres e editores. E como o jornal integrava a intimidade da casa (onde estavam os seus leitores diários e leais) e o mundo insolente e inesperado da rua. Ele repetia: "Filho, jamais se esqueça que você somente entende a manchete quando lê a coluna."

Nós aos olhos dos outros

O Brasil ignorado lá fora? Nem pensar. Com Deus acima de todos e Bolsonaro acima de tudo, o mundo não tira o olho de nós. Se duvida, eis algumas manchetes recentes:

"Brasil fez a pior gestão do mundo na pandemia, diz OMS". "Com Bolsonaro, Brasil mantém recorde em índice de corrupção na Transparência Internacional". "Biden convoca cúpula do clima em abril e coloca em xeque posição do Brasil". "Corte Interamericana de Direitos Humanos vai julgar o Brasil por omissão na proteção de mulheres e embriões". "Com um assassinato a cada oito dias, Brasil ocupa segundo lugar em ranking da ONU sobre morte de ativistas".


Tjeerd Royaards (Holanda)

"EUA [leia-se ainda sob Trump] barram tentativa do Brasil de avanço na OMC". "Bolsonaro expõe o Brasil ao ridículo ao ameaçar EUA com pólvora". "Biden ri ao ser perguntado sobre conversar com Bolsonaro". "China felicita Biden e reduz grupo de países fiéis a Trump; Brasil é um deles". "OCDE freia entrada do Brasil em grupo ambiental por política de Bolsonaro para a área".

"Brasil está no topo do ranking de fraudes com dados de cartões". "Brasil quer doar 1 milhão de testes de Covid quase vencidos ao Haiti. Hospitais brasileiros se recusam a receber testes prestes a vencer". "Brasil deve R$ 10,1 bi a organismos mundiais. Itamaraty alerta para risco de sanções por atrasos".

Uma vergonha? Nem tanto. Afinal, as manchetes sobre nossos assuntos domésticos são: "'Finalzinho' de pandemia tem alta de casos em 21 estados. Declaração de Bolsonaro ignora UTIs lotadas em sete capitais". "Governo foi avisado com duas semanas de antecedência sobre possível tragédia em Manaus". "Bolsonaro usou cinco ministérios, militares e estatal para difundir cloroquina". "Presidente manda imprensa enfiar latas de leite condensado no rabo". Etc. Você escolhe: a estupidez, a mentira, o hábito doentio de corromper, a crueldade, o crime. É o que temos para o momento.

Todos loucos

Esperem, ainda não é o fim. Temos baldes de ironias pra deitar fora. Temos aquela revolta gorda e madura já tombando da árvore da indignação. Quantos filósofos inesperados esse vírus parece andar produzindo no país. Gente pronta para morrer, se não hoje, amanhã de manhã. Uma gente destemida, seguramente farta de perigos que não sente. Também os estafados de tudo, os descrentes de tudo, talvez em busca de uma única aventura inédita, nem que seja a última. Há vacina, muitas doses, mas não para nós (com sua licença, Kafka!). Não para os nossos professores, não para as nossas crianças, não ainda para o santo Lancellotti. Mas os nossos filósofos circunstanciais não temem a morte, nem a própria nem a dos seus. Estão loucos? Todos estamos. Os de insanidade e desfaçatez mais avançadas fotografam-se dourados de sol num sonho de verão gêmeo dos bailes de Brasília. Porque sim, há quem se divirta rebolando no meio do pandemônio. Alguém ainda não viu Saló, de Pasolini? Pois aqui no Brasil já passam de 700 dias de Sodoma. E mesmo que uns não aguentem ver com os próprios olhos os espetáculos de abjeção que se passam aí, outros não só veem como se regozijam com o que veem. Todos indecentemente loucos concorrendo em danos mentais com a devastação que o vírus causa. Os que ainda acreditam que a justiça tarda, mas não falha, ou que a esperança é a última que morre, entre os loucos, talvez sejam os menos perigosos. Há ainda o louco da madrugada, que passa uivando pela avenida, sejam tempos pandêmicos ou não. A criatura nunca silenciosa dos nossos pesadelos de conivência com o intolerável, a voz de entranhas do nosso bairro, da nossa cidade, do nosso país, nos acordando para a insônia cotidiana como mais uma tarefa a ser desempenhada. Não, ainda não é o fim.

Mariana Ianelli

Ação da Funai sobre identidade indígena retoma plano frustrado da ditadura

Folha de S. Paulo" de 4 de outubro de 1981
A resolução criada pela Funai (Fundação Nacional do Índio) para estabelecer critérios de identificação de indígenas é a retomada de uma iniciativa da ditadura militar que acabou arquivada pelo próprio governo militar, tamanha a reação contrária que a ideia produziu na época. Em abril de 1982, o então presidente da Funai, o coronel-aviador reformado da Aeronáutica Paulo Moreira Leal, mandou suspender “toda e qualquer atividade” que tratasse, dentro do órgão, de “planos e critérios de indicadores de indianidade”.

Quase 40 anos depois, no último dia 22 a “diretoria colegiada” da Funai, encabeçada pelo presidente do órgão, o delegado de Polícia Federal Marcelo Xavier, publicou uma resolução pela qual estabeleceu novos critérios para que um indígena possa ser reconhecido como tal além da autodeclaração: “I-Vínculo histórico e tradicional de ocupação ou habitação entre a etnia e algum ponto do território soberano brasileiro; II – Consciência íntima declarada sobre ser índio; III – Origem e ascendência pré-colombiana; IV) Identificação do indivíduo por grupo étnico existente, conforme definição lastreada em critérios técnicos/científicos, e cujas características culturais sejam distintas daquelas presentes na sociedade não índia”.

A resolução provocou a reação imediata da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), principal organização indígena do país. Em nota, a entidade afirmou que “governo racista não define indígenas!”

“A Funai recorre a essas artimanhas para mascarar o real propósito de negar a existência de mais de 42% da população indígena existente no país, que independentemente da sua localização ou da situação fundiária dos seus territórios, mantém vínculos com a sua ancestralidade, cultiva seus modos de vida, mantém viva a sua cultura, e sobretudo, se reconhece a si próprio, individual e coletivamente, indígena, povo originário, execrado e massacrado pelo poder colonial e os sucessivos dominadores ao longo da história. Dessa forma não depende do Estado ou de governo qualquer para que lhe venha a dizer se é ou não indígena”, diz a nota da APIB.


Em parecer jurídico, a APIB apontou que a resolução insere “critérios universais que podem ter como consequência a criação de obstáculos aos direitos de determinados povos indígenas do Brasil, violando diretamente o Princípio da não discriminação dos povos indígenas”. Além disso, apontou que “a publicação vem justamente no início da vacinação contra a covid-19, podendo assim, limitar e prejudicar o processo de vacinação dos povos indígenas”.

O parecer é assinado pelos advogados da APIB Luiz Henrique Eloy Amado, indígena terena, Samara Carvalho Santos, pataxó, Keyla Francis de Jesus da Conceição, pataxó, Mauricio Serpa França, terena, Lucas Cravo de Oliveira e Nathaly Conceição Munarini Otero. O Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e o Ministério Público Federal também condenaram e pediram a revogação da resolução.

Citada em um parecer da Procuradoria Jurídica da Funai usado para embasar a nova resolução, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, integrante da Comissão Arns, professora titular aposentada da USP (Universidade de São Paulo) e professora emérita da Universidade de Chicago (EUA), apontou em texto na sexta-feira (5) que “as citações literais de meus textos são fiéis, mas que de nenhuma forma justificam a resolução da Funai”.

A antropóloga explicou que “o controle social é dos próprios indígenas”. “Quem, por conseguinte, é autorizado a colocar em dúvida, infirmar ou confirmar a identidade de um ou uma indígena são as instituições do povo indígena com o qual se identificam.”


A resolução da Funai tem como precedente um plano elaborado na ditadura militar (1964-1985). No final dos anos 70 e início dos anos 80, durante o governo do general ditador João Figueiredo (1979-1985), a imprensa teve acesso e passou a relatar a existência de “critérios de indianidade” que estavam sendo definidos e aplicados por órgãos diretivos da Funai, passando pela sua presidência, a respeito de determinados grupos indígenas.

A paternidade da ideia foi assumida pelo coronel da Aeronáutica da reserva Ivan Zanoni Hausen, então assessor técnico da Agesp (Assessoria Geral de Estudos e Pesquisas) da Funai, em Brasília. Em uma carta dirigida ao presidente da Funai em 1982, Hausen disse que acataria a decisão de suspender a elaboração dos critérios, mas voltou a defendê-los.

“Permito-me ir mais longe: a Funai não pode ser manietada nem amordaçada em suas pesquisas, em seus estudos, em suas tentativas, quaisquer que sejam seus objetos ou campos; o Governo tem uma responsabilidade histórica de conduzir a integração do índio ‘à comunhão nacional’ e não poderá cumprir tal missão sem a capacidade de perquirir, de tentar, de pesquisar, de discutir seus próprios instrumentos de trabalho, sejam eles legais, teóricos, administrativos ou de qualquer outra natureza.”

Na época, o Cimi denunciou que tais critérios estavam associados a um plano de “emancipação” dos indígenas. A ideia da ditadura era dizer quais grupos indígenas estavam ou não “integrados à comunhão nacional” e, a partir daí, declarar sua “emancipação”. Uma vez feito isso, os índios deixariam de ser considerados beneficiários das políticas públicas voltadas exclusivamente aos indígenas. Em contrapartida, poderiam usar suas terras como bem entendessem, inclusive vendendo-as para terceiros.

O projeto da “emancipação” foi deixado de lado pela ditadura no final dos anos 70 após uma grande reação da sociedade civil encabeçada por diversas organizações indígenas e não indígenas. A ideia de criar “critérios de indianidade”, porém, prosperou no órgão até abril de 1982, quando novas notícias relataram a intenção do coronel Hausen.

Em 1981, as antropólogas Eunice Durham, presidente da ABA (Associação Brasileira de Antropologia) e Lux Vidal denunciaram, em entrevista à “Folha de S. Paulo”, a intenção “fascista e racista” da Funai de estabelecer os “critérios de indianidade”. A denúncia foi a manchete da edição da “Folha” de 4 de outubro daquele ano.

Eunice e Lux apresentaram um documento de seis páginas datilografadas em papel timbrado da Funai que apresentava “indicadores apontados pela comunidade científica”, “indicadores apontados pelo índio (identidade étnica)”, “indicadores ou conceitos apontados pela sociedade nacional” e “os indicadores apontados pela Funai”. O documento foi elaborado por uma equipe nomeada por uma “instrução técnica executiva” assinada por Zanoni Hausen em janeiro de 1981.

Os critérios listados pela Funai falavam de “elementos culturais representativos”, “família extensa ou compacta” e “características biológicas, psíquicas e culturais” e até a medição de “forma ou perfil do nariz”, entre outras bizarrices conceituais.

As antropólogas apontaram que esses “supostos critérios” já estavam sendo usados pela Funai para a análise de determinadas etnias, como os tinguis de Feira Grande, em Alagoas. Um ofício da presidência do órgão dizia que os tinguis não preenchiam os critérios para “caracterizar cientificamente a sua indianidade”.

No dia seguinte à denúncia, a Funai confirmou a adoção dos “critérios” e disse que eles eram usados “para que a Funai tenha instrumentos aprimorados na defesa dos índios”. À “Folha”, a Funai informou ainda que a ideia do órgão era “ampliar os atuais indicadores utilizados pelos antropólogos, que se baseiam apenas nos dados étnicos e históricos”.

“Com os novos indicadores, a partir do momento em que a Funai disser quem é índio, ela assumirá totalmente a tutela e ninguém poderá contestar. Esses indicadores são uma previsão para o futuro, para quando este país tiver 200 milhões de habitantes e os fazendeiros reclamarem dizendo que determinada comunidade não é indígena. Nós teremos condições de dizer que é, e assumir a indianidade do grupo ou do indivíduo”, disse a Funai à “Folha”.

Toda a movimentação em torno desses critérios havia ocorrido na gestão do presidente da Funai João Carlos Nobre da Veiga, ele também um coronel da reserva, que dirigiu o órgão de setembro de 1979 a outubro de 1981. Meses depois de assumir o cargo em outubro de 1981 e saber, pela imprensa, das novas denúncias sobre os “critérios”, Moreira Leal mandou arquivar todo e qualquer estudo sobre o assunto.

Em memorando dirigido a Hausen, o presidente da Funai escreveu que havia uma “propagação por diversos órgãos da imprensa falada e escrita” a respeito do tema. Ele determinou “aos senhores diretores e assessores [que] esclareçam a todos os setores subordinados que esta Presidência jamais autorizou a efetivação desses indicadores, e que, portanto, esse assunto não deve ser mais abordado no âmbito da Funai”.

Em texto distribuído à imprensa no dia 25, a assessoria de comunicação da Funai disse que o objetivo da resolução é “padronizar e dar segurança jurídica ao processo de heteroidentificação, de modo a proteger a identidade indígena e evitar fraudes na obtenção de benefícios sociais voltados a essa população. Os parâmetros irão nortear a atuação da Funai a partir de agora”.

Segundo a Funai, “a resolução tem respaldo em diversos preceitos jurídicos e estudos realizados no país, e foi elaborada com base em entendimento da Procuradoria Federal Especializada junto à fundação. De acordo com o presidente da Funai, Marcelo Xavier, ainda que se considere que a identidade e o pertencimento étnico não sejam conceitos estáticos, mas processos dinâmicos de construção individual e social, a ausência de critérios na heteroidentificação pode gerar uma banalização da identidade indígena”.

De acordo com a Funai, Xavier afirmou que “a resolução contribui para evitar fraudes e abusos que poderiam acabar subvertendo a função social decorrente da identidade indígena”. “Queremos evitar que oportunistas, sem qualquer identificação étnica com a causa indígena, tenham acesso a territorialidade ou a algum benefício social ou econômico do Governo Federal.”

Gestão patológica

No início da pandemia era comum ouvir gestores e formadores de opinião suscitando o dilema: salvar vidas ou salvar a economia. Falso ou verdadeiro, o fato é que esse dilema foi pulverizado com o desenvolvimento das vacinas. A vacinação em massa é a um tempo a solução para salvar o maior número de vidas e acelerar a retomada econômica.

Segundo estimativas da consultoria LCA reveladas pelo Estado, na mais otimista das hipóteses, se o Brasil vacinasse num ritmo similar ao de Israel – o país mais avançado na imunização –, cobrindo 70% da população até junho, o PIB poderia crescer até 7,5% neste ano. Se esse patamar for atingido em dezembro, o crescimento deve ficar entre 3% e 3,5%.

Mas mesmo essa hipótese é otimista. A incompetência e a desídia do presidente Jair Bolsonaro e seu intendente no Ministério da Saúde, Eduardo Pazuello – que não apoiam as medidas de prevenção e os tratamentos no sistema de saúde –, são tão virulentas que estão infectando mesmo o sistema de imunização brasileiro, um dos mais reputados do mundo.


A campanha de vacinação no Brasil já começou com atraso, quando mais de 50 países haviam iniciado a imunização. “O que trava a vacinação no Brasil é a inércia do governo federal, que poderia ter comprado mais doses”, disse o fundador da Anvisa, Gonzalo Vecina. Não bastasse a escassez de doses disponíveis, duas semanas depois, somente 22% delas haviam sido aplicadas, e os números revelam disparidades nos ritmos de vacinação no País.

Secretários de Saúde apontam que o número limitado de doses e a falta de clareza sobre o tamanho das remessas dificultam o planejamento. Além do risco de interrupções na vacinação, prejudicando a aplicação tempestiva da segunda dose, a escassez, aliada a falhas de logística, pode provocar o pior dos mundos: a combinação de uma imunização irrisória com a ilusão da imunização, levando muitas pessoas a relaxar as medidas de prevenção. E o pior é que uma nova cepa do vírus, mais contagiosa e possivelmente mais letal, se dissemina pelo País.

O trágico é que à epidemia de covid-19 se sobrepõe uma epidemia de desinformação cujo foco mais deletério é o Palácio do Planalto e cujo exemplo mais emblemático é a campanha pelo tratamento precoce (com cloroquina ou outras drogas), para o qual não há comprovação científica. Recentemente, o presidente do Conselho Federal de Medicina, Mauro Luiz de Britto Ribeiro, acusou aqueles que alertam sobre os riscos desse tipo de campanha de “politizar” a saúde sem conhecimento de causa. Mas uma pesquisa da Associação Médica Brasileira (AMB) mostra que a arrasadora maioria dos médicos (quase 80%) reprova a atuação do Ministério da Saúde.

Entre os quase 4 mil médicos ouvidos pela AMB, 32% se queixam da falta de profissionais; 27%, da falta de diretrizes e orientação; 20%, da falta de leitos; 16%, da falta de materiais de proteção; e 11%, da falta de medicamentos. Não bastasse a exaustão provocada por um combate sem tréguas contra o vírus, mais de 9 entre 10 médicos declaram que seu trabalho é prejudicado por interferências de fake news (do tipo que Bolsonaro promove ostensivamente), como o descrédito da ciência, a dificuldade de os pacientes aceitarem prescrições clínicas, o desprezo às medidas de isolamento ou a pressão para que sejam receitados medicamentos sem eficácia comprovada.

Não à toa, em toda a gestão de Pazuello a aprovação à atuação do Ministério da Saúde se manteve na casa dos 16%, quando à época de Luiz Henrique Mandetta (defenestrado por Bolsonaro justamente por se recusar a adotar protocolos sem comprovação científica) chegou a 72%. O descrédito se traduz em desesperança: se 99% dos médicos acham que deveria haver mudanças na Saúde do Brasil pós-pandemia, 73% não creem que os gestores e autoridades passarão a tratar as fragilidades do sistema de forma mais profissional e prioritária.

Mesmo que o presidente e seu intendente não venham a responder por sua incúria, quando forem convocados pelo inexorável Tribunal da História, não será pela falta de testemunho dos médicos que escaparão à condenação.

Pensamento do Dia

 


E se um desconhecido lhe oferecer uma vacina?

O antigo slogan de um anúncio publicitário famoso não anda agora longe da realidade. Nem vai deixar de estar nos próximos longos meses que se avizinham. Num processo nunca visto, no meio de uma emergência mundial e com dificuldades logísticas de enorme envergadura, ninguém é capaz de garantir que, a qualquer momento, algo não vai correr mal, que não será preciso improvisar uma solução, que as regras não terão de ser adaptadas porque, numa proeza desta magnitude, é impossível ter tudo previsto e calculado. Vivemos tempos de um paradoxo terrível: estamos a iniciar um processo de vacinação universal (na verdadeira aceção da palavra), mas as vacinas continuam a ser um bem escasso e precioso. Elas são o nosso passaporte para a saída do pesadelo, mas sabemos que vão demorar ainda muito tempo a chegar a todos. As doses que temos precisam de ser usadas com rigor e seguindo critérios estritamente científicos, imunes a qualquer debate ideológico ou de puro palpite. O objetivo é apenas um: salvar o maior número possível de vidas. Só que, para alcançar esse objetivo, não basta apenas ir vacinando as pessoas de acordo com o grupo de risco. É preciso que todo o processo de vacinação seja feito com a maior transparência, de forma a criar a outra condição fundamental para o êxito da operação: a confiança da população. É preciso que cada cidadão tenha a certeza de que tudo está a ser feito como deve ser, sem atropelos nas prioridades nem favores aos amigos
do costume.

Esta é uma tarefa enorme e descomunal, de que é preciso ter verdadeira consciência. E, por aquilo que se vai vendo por esse planeta fora, o chamado “chico-espertismo”, que tantas vezes achamos só ser possível “neste país”, está muito disseminado por todas as latitudes, até com requintes que, por cá, ainda ninguém se lembrou.


Da mesma forma que é nos momentos de crise que melhor se conhecem as pessoas, também sabemos, desde Maquiavel, que a posse e o exercício de poder são o que melhor revela o caráter de alguém. E, nestes tempos pandémicos, ter o poder de decidir quem vacinar já começou a revelar como o egoísmo e a impunidade estão presentes em tanto lado, sempre que se pode aproveitar a oportunidade.

No meio do caos do fabrico das vacinas e da sua distribuição, a última coisa que se pode perder é a confiança das pessoas. O que não impede que possam ocorrer imprevistos e que tenha de se recorrer ao improviso. Ou seja: até pode ser que, a dado momento, algum desconhecido lhe venha oferecer uma vacina. O importante é que, nessa altura, todos saibamos que, para chegar até si, já foram percorridas as etapas necessárias e contactadas todas as pessoas prioritárias. Mesmo em tempos de pandemia é preciso ter presente que a transparência é a nossa principal vacina, enquanto cidadãos, contra o abuso de poder − um vírus tão ou mais perigoso do que o da Covid-19.

Neo-colonialismo verde-oliva

 

No Brasil, a barbárie capitalista assume a forma de um processo de reversão neocolonial, cuja essência consiste no rebaixamento sistemático do patamar mínimo de civilização conquistado pelo povo brasileiro ao longo de sua sofrida história. Os ataques aos direitos dos trabalhadores, às políticas públicas e à capacidade de o Estado impor limites à atuação do capital destroem definitivamente os nexos morais entre as classes sociais, que já eram extremamente precários. 

A burguesia abandonou toda e qualquer veleidade civilizatória e instaurou o salve-se quem puder. Tal processo não começou com o Bolsonaro. A cristalização da ditadura militar como uma contrarrevolução burguesa bloqueou definitivamente a possibilidade de  reformas democráticas. Ao transformar a barbárie em razão de Estado,  Bolsonaro levou a reversão neocolonial ao paroxismo.

Plínio de Arruda Sampaio Jr

Eduardo Ramos quebra o silêncio dos generais do Planalto e envergonha os militares

Os generais que garantem a segurança do presidente Jair Bolsonaro no Planalto, digamos assim, vinham fugindo dos jornalistas e mantendo um silêncio obsequioso acerca dos novos rumos desse governo paramilitar, que abriga mais de 6 mil oficiais. E não interessa se são da ativa ou da reserva – para todos os efeitos, trata-se de militares, uma classe que os brasileiros desde cedo aprendem a respeitar.

Não mais que de repente, lembremos Vinicius de Moraes, o ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, quebra esse silêncio estratégico dos generais do Planalto não somente para declarar que não se envergonha de articular com Centrão, mas também garantir que os militares da ativa entendem o momento político por que passa o governo.



Ao fazer essa patética declaração ao repórter Felipe Frazão, do Estado de S. Paulo, o general Luiz Eduardo Ramos conseguiu escorregar duas vezes. Embora este ano não vá haver carnaval, ele tentou vestir a fantasia de articulador político, função que ele jamais conseguiu desempenhar. Parodiando Ruy Barbosa, até as paredes do Planalto sabem que Ramos até tentou fazer isso, mas foi um fracasso.

Com 28 anos de Câmara, o ex-deputado Bolsonaro não precisa de ninguém para fazer sua articulação política. Foi ele quem comandou tudo, com a ajuda do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), dos deputados Ricardo Barros (PP-PR), Osmar Terra (MDB-RS) e outros parlamentares de sua confiança pessoal.

Ramos fez apenas o trabalho burocrático de organizar e comandar os repasses de verbas e cargos para o Centrão, que incluiu cerca de R$ 3 bilhões em verbas extras, distribuídas para contemplar 285 parlamentares. Em matéria de articulação política, desempenho zero.

O pior ponto da entrevista de Ramos foi a tentativa de envolver as Forças Armadas com essa virada de rumo de Bolsonaro, cujo objetivo é evitar o impeachment e blindar os filhos e amigos.

O ministro quis responder ás acusações do general da reserva do Francisco Mamede de Brito Filho, de uma das mais tradicionais famílias do Exército. “A imagem da instituição já está arranhada. Ficam do lado de um governo que comete as barbaridades que estamos presenciando”, afirmou o atual general Mamede, que apoia a oposição que fazem dois outros generais – Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo, e Rêgo Barros, ex-porta-voz da Presidência, integrante da equipe direta de Ramos.

“Tenho contato com vários generais, amigos meus, não há isso, não. Eles entendem que é o momento político, que estou cumprindo uma missão. Não há (constrangimento), muito pelo contrário”, afirmou Ramos, que não tem autoridade para falar em nome dos militares.

Tudo isso é muito desagradável. O general Ramos deveria ter se esquivado de dar declarações. Com essa inoportuna entrevista, quebrou o silêncio dos generais do Planalto e botou na rua o bloco de sujos, mesmo sem haver carnaval.

O fato concreto que resulta é a evidência de que os militares estão cada vez mais divididos em relação ao governo Bolsonaro. Aliás, desde o início, como instituições, as Forças Armadas colaboraram ao máximo com o governo, porém jamais compactuaram com o comportamento extravagante do presidente da República, que não sabe agir como militar de verdade.

E Bolsonaro, na sua ignorância, se acha cada vez mais fortalecido, porém as aparências enganam. Os militares brasileiros jamais compactuarão com um desgoverno de desmoraliza o Brasil interna e externamente. O resto é folclore.

A teimosia ignorante de Bolsonaro

Jair Bolsonaro administra a própria ignorância com o pior dos temperos, a teimosia. Em março passado ele disse que a Covid-19 era uma “gripezinha”, vá lá que fosse, os mortos em Pindorama eram apenas cinco. Em dezembro, ele disse que a pandemia estava no “finalzinho” (os mortos passavam de 150 mil) e um mês antes classificara a segunda onda de contágios de “conversinha”. Veio a tragédia do Amazonas, os mortos já são mais de 233 mil, e a média móvel ficou acima de mil por dia por mais de duas semanas. Conversinha?

O ministro da Saúde, um general da ativa, gosta de brigas. Seu secretário-executivo, um coronel, disse que o governador João Doria estava “sonhando acordado” quando anunciou que a vacinação começaria em janeiro no seu estado. Começou.


Bolsonaro acredita em muitas coisas. A cloroquina ajuda contra a Covid-19, a Amazônia não pode ter queimadas porque é úmida, e a eleição americana foi fraudada. Todas essas crenças têm devotos e, salvo os agrotrogloditas que tocam fogo na mata, nenhum deles causa grandes prejuízos aos outros. No caso da pandemia, a superstição presidencial causa danos. O coronel do Ministério da Saúde talvez não tivesse pulado na jugular de Doria se o Planalto falasse outra língua. Talvez o general Pazuello também não saísse por aí com sua maleta de cloroquina.

O estrago feito, feito está. A eleição para as presidências do Senado e da Câmara mostrou que Bolsonaro não está condenado a perder todas. Ele pode ganhar mais uma: basta esperar o dia em que começará a vacinação dos sexagenários e, em vez de ir a uma padaria numa de suas sortidas cenográficas, para entrar no fim de uma fila de vacinação.

Será um gesto de humildade, exemplo para sua infantaria e desestímulo a seus guerreiros sem causa.

O capitão encantou-se com a popularidade que lhe trouxe o auxílio emergencial e agora está correndo atrás de uma forma de alívio social para as vítimas da crise econômica agravada pela “gripezinha”. Melhor assim, até porque viu sinais de fumaça que poderiam lhe custar um retorno antecipado ao condomínio Vivendas da Barra.

Imaginar que seu governo seja capaz de organizar um plano coerente, como o Bolsa Família, é querer demais. Escravizado pela marquetagem, seu projeto tem um slogan incompreensível — Benefício de Inclusão Produtiva — e vem sendo concebido como uma árvore de Natal de jabutis para serem digeridos pelo Congresso.

A ideia de um benefício acompanhado de contrapartidas voluntárias perdeu-se na confusão da marquetagem. Afinal, um governo que se apresenta como se fosse capaz de fazer um “Plano Marshall” brasileiro é capaz de tudo. Se o general Braga Netto, chefe da Casa Civil e pai da marca de fantasia, levasse uma ideia dessas ao general George Marshall, chefe do Estado-Maior do Exército americano durante a Segunda Guerra, seria atingido por um dos acessos de fúria daquele grande chefe militar. E as broncas de Marshall eram mais pesadas que a de Paulo Guedes: “Não chamem de Plano Marshall, porque revela um despreparo enorme”.

Por falar no general Marshall, vale repetir a orientação que ele deu ao diplomata George Kennan quando o chamou para dirigir o planejamento político do Departamento de Estado: “Evite trivialidades”.

Se Bolsonaro e suas falanges evitassem trivialidades, o governo seria outro.
Elio Gaspari