Folha de S. Paulo" de 4 de outubro de 1981 |
Quase 40 anos depois, no último dia 22 a “diretoria colegiada” da Funai, encabeçada pelo presidente do órgão, o delegado de Polícia Federal Marcelo Xavier, publicou uma resolução pela qual estabeleceu novos critérios para que um indígena possa ser reconhecido como tal além da autodeclaração: “I-Vínculo histórico e tradicional de ocupação ou habitação entre a etnia e algum ponto do território soberano brasileiro; II – Consciência íntima declarada sobre ser índio; III – Origem e ascendência pré-colombiana; IV) Identificação do indivíduo por grupo étnico existente, conforme definição lastreada em critérios técnicos/científicos, e cujas características culturais sejam distintas daquelas presentes na sociedade não índia”.
A resolução provocou a reação imediata da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), principal organização indígena do país. Em nota, a entidade afirmou que “governo racista não define indígenas!”
“A Funai recorre a essas artimanhas para mascarar o real propósito de negar a existência de mais de 42% da população indígena existente no país, que independentemente da sua localização ou da situação fundiária dos seus territórios, mantém vínculos com a sua ancestralidade, cultiva seus modos de vida, mantém viva a sua cultura, e sobretudo, se reconhece a si próprio, individual e coletivamente, indígena, povo originário, execrado e massacrado pelo poder colonial e os sucessivos dominadores ao longo da história. Dessa forma não depende do Estado ou de governo qualquer para que lhe venha a dizer se é ou não indígena”, diz a nota da APIB.
Em parecer jurídico, a APIB apontou que a resolução insere “critérios universais que podem ter como consequência a criação de obstáculos aos direitos de determinados povos indígenas do Brasil, violando diretamente o Princípio da não discriminação dos povos indígenas”. Além disso, apontou que “a publicação vem justamente no início da vacinação contra a covid-19, podendo assim, limitar e prejudicar o processo de vacinação dos povos indígenas”.
O parecer é assinado pelos advogados da APIB Luiz Henrique Eloy Amado, indígena terena, Samara Carvalho Santos, pataxó, Keyla Francis de Jesus da Conceição, pataxó, Mauricio Serpa França, terena, Lucas Cravo de Oliveira e Nathaly Conceição Munarini Otero. O Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e o Ministério Público Federal também condenaram e pediram a revogação da resolução.
Citada em um parecer da Procuradoria Jurídica da Funai usado para embasar a nova resolução, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, integrante da Comissão Arns, professora titular aposentada da USP (Universidade de São Paulo) e professora emérita da Universidade de Chicago (EUA), apontou em texto na sexta-feira (5) que “as citações literais de meus textos são fiéis, mas que de nenhuma forma justificam a resolução da Funai”.
A antropóloga explicou que “o controle social é dos próprios indígenas”. “Quem, por conseguinte, é autorizado a colocar em dúvida, infirmar ou confirmar a identidade de um ou uma indígena são as instituições do povo indígena com o qual se identificam.”
A resolução da Funai tem como precedente um plano elaborado na ditadura militar (1964-1985). No final dos anos 70 e início dos anos 80, durante o governo do general ditador João Figueiredo (1979-1985), a imprensa teve acesso e passou a relatar a existência de “critérios de indianidade” que estavam sendo definidos e aplicados por órgãos diretivos da Funai, passando pela sua presidência, a respeito de determinados grupos indígenas.
A paternidade da ideia foi assumida pelo coronel da Aeronáutica da reserva Ivan Zanoni Hausen, então assessor técnico da Agesp (Assessoria Geral de Estudos e Pesquisas) da Funai, em Brasília. Em uma carta dirigida ao presidente da Funai em 1982, Hausen disse que acataria a decisão de suspender a elaboração dos critérios, mas voltou a defendê-los.
“Permito-me ir mais longe: a Funai não pode ser manietada nem amordaçada em suas pesquisas, em seus estudos, em suas tentativas, quaisquer que sejam seus objetos ou campos; o Governo tem uma responsabilidade histórica de conduzir a integração do índio ‘à comunhão nacional’ e não poderá cumprir tal missão sem a capacidade de perquirir, de tentar, de pesquisar, de discutir seus próprios instrumentos de trabalho, sejam eles legais, teóricos, administrativos ou de qualquer outra natureza.”
Na época, o Cimi denunciou que tais critérios estavam associados a um plano de “emancipação” dos indígenas. A ideia da ditadura era dizer quais grupos indígenas estavam ou não “integrados à comunhão nacional” e, a partir daí, declarar sua “emancipação”. Uma vez feito isso, os índios deixariam de ser considerados beneficiários das políticas públicas voltadas exclusivamente aos indígenas. Em contrapartida, poderiam usar suas terras como bem entendessem, inclusive vendendo-as para terceiros.
O projeto da “emancipação” foi deixado de lado pela ditadura no final dos anos 70 após uma grande reação da sociedade civil encabeçada por diversas organizações indígenas e não indígenas. A ideia de criar “critérios de indianidade”, porém, prosperou no órgão até abril de 1982, quando novas notícias relataram a intenção do coronel Hausen.
Em 1981, as antropólogas Eunice Durham, presidente da ABA (Associação Brasileira de Antropologia) e Lux Vidal denunciaram, em entrevista à “Folha de S. Paulo”, a intenção “fascista e racista” da Funai de estabelecer os “critérios de indianidade”. A denúncia foi a manchete da edição da “Folha” de 4 de outubro daquele ano.
Eunice e Lux apresentaram um documento de seis páginas datilografadas em papel timbrado da Funai que apresentava “indicadores apontados pela comunidade científica”, “indicadores apontados pelo índio (identidade étnica)”, “indicadores ou conceitos apontados pela sociedade nacional” e “os indicadores apontados pela Funai”. O documento foi elaborado por uma equipe nomeada por uma “instrução técnica executiva” assinada por Zanoni Hausen em janeiro de 1981.
Os critérios listados pela Funai falavam de “elementos culturais representativos”, “família extensa ou compacta” e “características biológicas, psíquicas e culturais” e até a medição de “forma ou perfil do nariz”, entre outras bizarrices conceituais.
As antropólogas apontaram que esses “supostos critérios” já estavam sendo usados pela Funai para a análise de determinadas etnias, como os tinguis de Feira Grande, em Alagoas. Um ofício da presidência do órgão dizia que os tinguis não preenchiam os critérios para “caracterizar cientificamente a sua indianidade”.
No dia seguinte à denúncia, a Funai confirmou a adoção dos “critérios” e disse que eles eram usados “para que a Funai tenha instrumentos aprimorados na defesa dos índios”. À “Folha”, a Funai informou ainda que a ideia do órgão era “ampliar os atuais indicadores utilizados pelos antropólogos, que se baseiam apenas nos dados étnicos e históricos”.
“Com os novos indicadores, a partir do momento em que a Funai disser quem é índio, ela assumirá totalmente a tutela e ninguém poderá contestar. Esses indicadores são uma previsão para o futuro, para quando este país tiver 200 milhões de habitantes e os fazendeiros reclamarem dizendo que determinada comunidade não é indígena. Nós teremos condições de dizer que é, e assumir a indianidade do grupo ou do indivíduo”, disse a Funai à “Folha”.
Toda a movimentação em torno desses critérios havia ocorrido na gestão do presidente da Funai João Carlos Nobre da Veiga, ele também um coronel da reserva, que dirigiu o órgão de setembro de 1979 a outubro de 1981. Meses depois de assumir o cargo em outubro de 1981 e saber, pela imprensa, das novas denúncias sobre os “critérios”, Moreira Leal mandou arquivar todo e qualquer estudo sobre o assunto.
Em memorando dirigido a Hausen, o presidente da Funai escreveu que havia uma “propagação por diversos órgãos da imprensa falada e escrita” a respeito do tema. Ele determinou “aos senhores diretores e assessores [que] esclareçam a todos os setores subordinados que esta Presidência jamais autorizou a efetivação desses indicadores, e que, portanto, esse assunto não deve ser mais abordado no âmbito da Funai”.
Em texto distribuído à imprensa no dia 25, a assessoria de comunicação da Funai disse que o objetivo da resolução é “padronizar e dar segurança jurídica ao processo de heteroidentificação, de modo a proteger a identidade indígena e evitar fraudes na obtenção de benefícios sociais voltados a essa população. Os parâmetros irão nortear a atuação da Funai a partir de agora”.
Segundo a Funai, “a resolução tem respaldo em diversos preceitos jurídicos e estudos realizados no país, e foi elaborada com base em entendimento da Procuradoria Federal Especializada junto à fundação. De acordo com o presidente da Funai, Marcelo Xavier, ainda que se considere que a identidade e o pertencimento étnico não sejam conceitos estáticos, mas processos dinâmicos de construção individual e social, a ausência de critérios na heteroidentificação pode gerar uma banalização da identidade indígena”.
De acordo com a Funai, Xavier afirmou que “a resolução contribui para evitar fraudes e abusos que poderiam acabar subvertendo a função social decorrente da identidade indígena”. “Queremos evitar que oportunistas, sem qualquer identificação étnica com a causa indígena, tenham acesso a territorialidade ou a algum benefício social ou econômico do Governo Federal.”
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