quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Em 20 anos, extremos climáticos custaram US$ 3,5 trilhões

Só no ano de 2017, fenômenos meteorológicos extremos causaram a morte mais de 11.500 pessoas e perdas materiais de 375 bilhões de dólares no mundo, revela um relatório da organização ambiental Germanwatch divulgado nesta terça-feira (04/12). Os países que mais sofreram foram Porto Rico, Sri Lanka, Dominica, Nepal e Peru.

Com base em dados da resseguradora Munich Re e do Fundo Monetário Internacional (FMI), o ambientalista David Eckstein e demais autores apresentaram o Índice de Risco Climático Global 2019 na Conferência do Clima da ONU em Katowice, Polônia.


Segundo a Germanwatch, nos últimos 20 anos as condições climáticas extremas custaram mais de 526 mil vidas e um total de 3,5 trilhões de dólares em danos materiais. Ciclones tropicais de dimensões avassaladoras atingiram sobretudo as ilhas caribenhas de Porto Rico e Dominica, ambas seriamente devastadas pelo furacão Maria em setembro de 2017, com mais de 3 mil vítimas, segundo dados oficiais.

"O fato de as tempestades estarem ganhando intensidade, em velocidade dos ventos e precipitação pluvial, confere com os prognósticos da climatologia", comenta Eckstein.

Nos últimos anos, o estudo tem indicado duas tendências: por um lado a violência dos eventos meteorológicos extremos aumenta. Para Porto Rico, com 3,3 milhões de habitantes, e Dominica, com 74 mil, isso significa que a reconstrução exigirá vários anos.

Países como Haiti, Filipinas, Sri Lanka e Paquistão foram tão regularmente atingidos por extremos meteorológicos, que não tiveram praticamente tempo de se recuperar dos danos. No Sul Asiático vem aumentando principalmente a frequência das chuvas de monção, com inundações e deslizamentos de terra.

Os últimos anos provaram que também as ricas nações industriais vêm sendo cada vez mais atingidas pela mudança do clima. "Com a seca recorde e o calor extremo deste ano, deve-se contar que no próximo índice os países europeus entrem ainda mais em foco", prevê Eckstein.

Dos dez mais castigados pelo clima nos últimos 20 anos, oito são países em desenvolvimento e de baixas rendas. Como observa David Eckstein, eles contam com o menor número de recursos para se proteger das consequências da mudança climática ou compensar as perdas, necessitando, portanto, especialmente de ajuda.

Embora no ranking geral de vulnerabilidade figure longe do topo - 79ª posição em 2017 e na 90ª posição na média de 1998 para cá - o Brasil aparece em 18º na lista dos que mais perdem com as mudanças climáticas. Na média das últimas duas décadas, as perdas anuais passam de US$ 1,7 bilhão devido a eventos extremos como tempestades e inundações.

"Os principais Estados causadores precisam, por um lado, apoiar os mais pobres na adaptação à mudança climática. Por outro, devem também ajudá-los a enfrentar as perdas e danos", frisa Eckstein. "Essa reivindicação terá um papel importante em Katowice."

O Índice de Risco Climático só registra, porém, uma parte dos danos ocorridos em todo o mundo. Os efeitos indiretos das intempéries extremas, como incêndios florestais e secas, não são considerados. Do mesmo modo, os eventos de longo prazo, como a elevação do nível do mar ou a salinização dos solos, têm sido, até agora deixados de lado, ressalta Eckstein.

Um problema grande e, até o momento, irresolvido, é que numerosos países e cidadãos arcam sozinhos com seus danos. Quando, além disso, eles praticamente não contribuíram para a mudança climática, então trata-se de um "escândalo de justiça", diz o funcionário da Germanwatch.

Por isso, do ponto de vista da política climática, devem assumir principalmente responsabilidade as nações que causaram a mudança global. Eckstein menciona estimativas de que pelo menos um terço dos eventos meteorológicos extremos em todo o mundo estão relacionados com os efeitos-estufa gerados pela humanidade. "Tomando isso como base, parece justo que os países causadores igualmente assumam cerca de um terço dos custos."

Deutsche Welle

Natal no Brasil


Governo Bolsonaro: 54 milhões de pobres e mais cinco desafios em 2019

Mais pessoas ficaram pobres e desassistidas no Brasil entre 2016 e 2017. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou nesta quarta-feira uma série de indicadores sociais sobre pobreza, detalhando renda, moradia e educação dessa população. Quase todos os números pioraram.

Em 2016, o Brasil tinha 52,8 milhões de pessoas pobres (25,7% da população). Em 2017, esse número cresceu para 54,8 milhões (26,5%).


A economia brasileira viveu altos e baixos desde o último levantamento, em 2014. Passou por baixo crescimento, desaceleração, recessão até atingir uma lenta recuperação em 2017. Por consequência, o mercado de trabalho registrou cortes de vagas, aumento da informalidade e queda do rendimento de assalariados e autônomos.

Para Manuel Thedim, economista e pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), o principal desafio do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) para alavancar a economia do país a partir de 2019 é a insegurança jurídica.

"A economia não consegue em hipótese alguma se divorciar da política. Então, é preciso saber se o presidente eleito vai de fato abraçar e fortalecer a segurança jurídica do país, fazer com que acordos e contratos passem a ser respeitados no médio e no longo prazo. Como alguém já falou, no Brasil hoje até a história é incerta", afirmou à BBC News Brasil.

Investidores temem, por exemplo, que regras e políticas públicas acertadas no presente com uma autoridade sejam desfeitas pelos sucessores. É preciso também, diz Thedim, aguardar o entendimento que a Justiça terá da reforma trabalhista aprovada durante o governo Michel Temer (MDB), com a criação, por exemplo, de jornadas de trabalho intermitentes.

O levantamento aponta também as desigualdades socioeconômicas entre pessoas de diferentes cores ou raças. Pretos e pardos enfrentam muito mais dificuldade para encontrar empregos, vagas em creches e moradias em condições adequadas.

"Ter ensino superior é um fator que contribui para o acesso ao mercado de trabalho com mais intensidade para as pessoas pretas ou pardas, mas não o suficiente para colocá-las em igualdade com as pessoas brancas", afirmou o IBGE sobre os resultados.

Em 2017, trabalhadores brancos ganhavam, em média, R$ 2.615. Ou seja, 72,5% mais que os pretos ou pardos (R$ 1.516). Na diferença de gênero, a diferença entre homens e mulheres era de 29,7%, ou R$ 2.261 e R$ 1.743 respectivamente.

Desde a pesquisa de 2014 até a atual, apurada em 2017, o mercado de trabalho do país registrou um grande corte de vagas, subutilização da força de trabalho (menos de 40 horas semanais), aumento da informalidade (característica de parte das retomadas econômicas) e aumento da desigualdade de renda.

A taxa de desocupação, que era de 6,9% em 2014, aumentou continuamente até atingir 12,5% em 2017. No período, 6,2 milhões de pessoas ficaram desempregadas e outras 5,2 milhões passaram a procurar emprego (a exemplo daqueles que só estudavam ou viviam da renda do cônjuge). Os jovens sofreram mais. Entre pessoas com 14 a 29 anos de idade, a taxa de desocupação passou de 13% para 22,6% em 2017.

Com as idas e vindas da economia, inicialmente, houve uma queda na diferença salarial, que, segundo o IBGE, se deu por causa de ganhos reais concedidos a quem recebia esse valor ou tinha seu rendimento influenciado por ele.

A partir de 2016, o cenário se inverteu, com o aumento do desemprego e da informalidade. Dois em cada cinco trabalhadores não tinham carteira assinada em 2017, um aumento de 1,2 milhão de informais desde 2014.

Para Thiago Xavier, economista e responsável pela área de monitoramento da atividade econômica na Tendências Consultoria, a recuperação consistente do mercado de trabalho depende principalmente da retomada do crescimento do país e da melhora nas expectativas econômicas.

O primeiro ponto passa em essência pela reforma da Previdência. Sem ela, a fatia de recursos destinados a essa área paralisaria o governo, tendo em vista o teto de gastos públicos e seus gatilhos punitivos em caso de descumprimento dos limites fiscais adotados durante o governo Michel Temer (MDB).

Uma eventual melhora do quadro fiscal teria efeito positivo, segundo Xavier, sobre as perspectivas de gastos e investimentos dos principais agentes econômicos: famílias, empresários e Estado. Com a crise de 2014, o endividamento generalizado reduziu a velocidade e mesmo a capacidade de retomada - em crises anteriores, o governo federal conseguiu investir em infraestrutura e expansão do crédito sem perspectiva de descontrole inflacionário, por exemplo.

O IBGE identificou um aumento da pobreza entre 2016 e 2017, tendo como referência a linha de pobreza proposta pelo Banco Mundial (rendimento de até US$ 5,5 por dia, ou R$ 406 por mês). Por exemplo, 54,1% da população do Maranhão (taxa mais alta) e 8,5% de Santa Catarina (a mais baixa) estão nessa faixa de renda.

No período, o número de pessoas pobres passou de 52,8 milhões (25,7% da população) para 54,8 milhões (ou 26,5%). A parcela mais vulnerável é composta por domicílios comandados por mulheres pretas ou pardas sem cônjuge e com filhos de até 14 anos - 64,4% desse grupo vivem nessa situação. A fatia de crianças e adolescentes na faixa da pobreza passou de 42,9% para 43,4%.

Nesse mesmo período, outras 2 milhões de pessoas adentraram a faixa daqueles que vivem em situação de extrema pobreza, com renda em torno de R$ 140 por mês. A situação piorou em todas regiões do país, exceto no Norte. Essa proporção passou de 6,6% para 7,4%, ou, em números absolutos, de 13,5 milhões de pessoas para 15,2 milhões de pessoas. A meta global de erradicação da pobreza extrema é 2030.

Em 2017, o rendimento médio mensal per capita domiciliar no país foi de R$ 1.511, mas quase metade da população das regiões Norte e Nordeste ganhava até meio salário mínimo per capita (cerca de R$ 470); no Sul, essa parcela representa 15,6% do total. Esse cenário tende a acentuar a desigualdade social.

Segundo os dados mais recentes, a renda somada dos 10% com maiores rendimentos do país era 3,5 vezes maior que o total recebido pelos 40% com menores rendimentos. O tamanho do abismo varia a depender da região.

O Distrito Federal era líder nesse quesito. Os 10% do topo concentravam 46,5%, e os 40% com menores rendimentos, 8,4%.

Defesa dos seres mais vivos

Qualquer forma de crueldade contra seres vivos é injustificável e deve ser condenada em todas as instâncias. Mas parece existir certa desproporção com relação a defesa de alguns seres vivos em detrimento de outros, o que mostra que estamos com dificuldade de fazer uma reflexão sobre nossos valores
Vera Iaconelli, doutora em psicologia pela USP

Somos civilizados

E por isso exterminamos “índios” – ou, pelo contrário, “somos civilizados” e, por isso mesmo, os acolhemos (ao lado de todos os seres vivos, inclusive o planeta – esse palco criador e sustentador da vida) na nossa misteriosa humanidade.

O general Cândido Mariano da Silva Rondon (descendente de ameríndios bororos e terenas), inventou o emblema abrangente e pródigo do Serviço de Proteção aos Índios a partir de sua fundação, em 1910: “Morrer se preciso for, matar nunca”.

Há nesse olvidado lema de cunho positivista uma mensagem sobre a qual o presidente eleito Jair Bolsonaro deveria meditar quando transforma as terras indígenas num problema. Porque escolher morrer antes de matar é o mesmo que honrar o governo para o qual se foi eleito a despeito das ocasiões em que a riqueza pública pode ser (como foi) furtada.


Morre-se também por um ideal de humanidade. É esse ideal que nos ancora uns nos outros – “índios” e “civilizados” – e é na consciência desse aprendizado recíproco que, como tem revelado a Antropologia Social, está o segredo de um mundo no qual a obsessão tecnológica pode ser relativizada pela serenidade ecológica constitutiva da sabedoria indígena.

Estou seguro de que Jair Bolsonaro não tem interesse em “matar os índios”. Contudo, devo remarcar que vivi com populações indígenas e as vi massacradas debaixo dessa intenção de “não matar”, precisamente porque suas terras haviam sido invadidas por ambição econômica. Ninguém tinha a intenção de matar; muito pelo contrário. O que se desejava conscientemente era “civilizar”, “amansar” ou “domesticar” sem, entretanto, respeitar outros estilos de vida.

O diabo mora exatamente nesse “domesticar” redutor de diferenças. Chamar de “índios” uma multiplicidade de línguas e culturas é o mesmo que classificar de fascistas aqueles que exprimem o propósito de governar honestamente o País. Do mesmo modo que Bolsonaro foi eleito reagindo à domesticação dos seus valores pessoais, essas populações tribais sem Estado, Exército e Igreja, mas com família, normas de convivência e crenças, têm o direito de conservá-las nos limites da democracia brasileira.

A demarcação não é um ardil. É um dever relacionado aos ideais de Rondon e de todos que, como eu, têm noção de como é árduo abrir-se para o dessemelhante e para quem, por ignorância, julgamos primitivos e selvagens.

Fui uma melancólica testemunha dessas cruéis etapas “civilizatórias”. Posso garantir ao presidente eleito que os indígenas brasileiros não querem morar em Portugal ou na Suécia; ou vender o Brasil para alguns dos nossos amigos e negócios. O que desejam é permanecer nas suas terras ancestrais, sem as quais seriam bloqueados de reproduzir-se com direito à liberdade de manter e adaptar suas línguas, costumes, cânticos e rituais que, afinal de contas, são como os cerimoniais e costumes que marcam as igrejas, as forças armadas, os tribunais e outras corporações conscientes e orgulhosas de suas identidades.

Leio comentários ambíguos sobre a continência do Bolsonaro ao ilustre visitante americano. Seria um gesto amistoso ou um sinal de subordinação? Mas o que é uma continência senão um gesto de reconhecimento e de respeito, equivalente a apertar a mão de um líder partidário ou pedir a bênção de um pai ou padre?

Do mesmo modo e pelas mesma obrigações costumeiras a que temos direito, recebemos visitantes modestos ou ilustres usando os nossos costumes num demonstrativo autêntico do nosso estilo de vida. Mas para realizá-los é preciso ter controle sobre o nosso espaço particular.

Peço vênia para dizer que um presidente eleito não pode confundir “terra demarcada” com “território nacional soberano” como foi o caso americano. Na tradição federativa e individualista dos Estados Unidos, o território soberano dos indígenas foi o ardil que levou a muitas guerras e ao extermínio de muitos grupos tribais. No nosso caso, a demarcação é um reconhecimento da interdependência de humanidades que, por um acaso histórico, foram engolfadas pelo Estado nacional brasileiro.

Estudos antropológicos revelam que essas sociedades de “índios” são mais justas e vivem em notável harmonia com a natureza. Por outro lado, a lição de um mundo desmesuradamente antropocêntrico é que o progresso também tem limites. Há muito que aprender com “índios” e com essa etapa que o governo Bolsonaro ambiciona inaugurar. Mas isso requer muito mais paciência e paz do que – numa boa, capitão! – improvisos irritados e confusos.

Pensamento do Dia


16,38%?Três Poderes contra o povo

Essa foi a porcentagem do reajuste recém-outorgado para os salários dos ministros do STF. Temer sancionou a benesse, com o que perdeu enorme oportunidade de se redimir de erros de seu governo, que superam as virtudes. Mas seria injusto ignorar o papel dos que conduziram o processo no próprio STF e no Senado, pois também atuaram no acordão sobre reajuste.

Uma de suas distorções é ser claramente inoportuno do ponto de vista financeiro e servir de mau exemplo. O setor público brasileiro tem dívida perigosamente crescente, pois apresenta enorme rombo orçamentário, marcado por elevado déficit primário, ao qual se soma uma enorme conta de juros. Disso resulta um déficit final que, avaliado como porcentagem do PIB, está muito distante de padrões internacionais tidos como razoáveis.

O resultado primário é a diferença entre a receita e a despesa desta, excluídos os juros da dívida pública, em razão do que um déficit nessa conta é uma aberração. Imagine o leitor se gastasse em despesas triviais mais do que ganha, e também ficasse sem condições de pagar parte dos juros de uma enorme dívida, que assim seguiria aumentando.

Em setembro o déficit primário do setor público foi de 1,3% do PIB e a conta de juros, de 5,9% do PIB, totalizando um déficit final de 7,2% do PIB. Mais que o dobro do limite prudencial para esse déficit na zona do euro, de 3% do PIB. E usualmente sem déficit primário. E, se necessário, com um superávit desse tipo para cobrir parte dos juros da dívida pública de modo a evitar seu crescimento como proporção do PIB. São porcentagens só na aparência pequenas, pois incidem sobre enormes valores do PIB.

Nosso governo central só tem condições de pagar esse reajuste porque faz déficit primário, e aumenta a dívida e/ou tira o dinheiro de gastos como os de educação e saúde. Para piorar as coisas, num efeito cascata o reajuste elevará remunerações nos três Poderes, e repercutirá também noutros entes federativos, em particular nos Estados, onde ganhos de magistrados e de outros servidores no âmbito do Judiciário e em outras carreiras constituem proporção do salário dos juízes do STF. Recentemente, soube que coronéis da Polícia Militar de Minas Gerais têm o seu salário ligado ao de desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado, com o que também se credenciarão ao reajuste. Só que esse Estado, como outros, está literalmente quebrado, até atrasa o pagamento de salários, uma situação que o efeito cascata agravará. No Estado de São Paulo estima-se que o efeito cascata será de perto de R$ 1 bilhão por ano, cerca de metade no âmbito estadual e metade nos municípios.

O ministro Carlos Marun, da Secretaria de Governo de Temer, publicou ontem na Folha de S.Paulo o artigo O efeito cascata é cascata, e apresentou a sua. Em particular, afirmou que “não existe nada no nosso ordenamento jurídico que estabeleça a automaticidade da extensão do reajuste do reajuste dos ministros do STF aos funcionários públicos do país na sua totalidade”. Ora, quem aponta o efeito cascata não fala nessa totalidade de funcionários. E para esse efeito Marun dá sua receita simplista e inaplicável: “Cada poder de cada unidade da federação terá que analisar suas contas e definir quanto pode pagar de reajuste. O salário dos ministros do Supremo representa um teto, mas não mais que isso”.

Ao contrário, no referido ordenamento jurídico há regras que garantem o efeito e a realidade é esta: foi aprovada essa pauta-bomba em Brasília e os Estados e municípios que se arranjem. Provavelmente vão se voltar para a União e implorar dinheiro para pagar a conta, e noutro efeito, o bumerangue.

Marun também disse que Temer “agiu em absoluta conformidade com as responsabilidades de sua função”. Fez o contrário, mas não sozinho. A ideia do reajuste estava no STF havia tempos. A ministra Cármen Lúcia, de louvável atuação contrária, tentou segurá-lo, mas o ministro Lewandowski conseguiu pautar o assunto numa reunião em 8 de agosto e foi aprovado por 7 a 4 o seu avanço. O sucessor de Cármen Lúcia, Dias Toffoli, levou o pleito ao Senado, com apoio de colegas que em editorial recente este jornal chamou de “sindicalistas togados”.

Ali foi aprovado a toque de caixa, após ser pautado por seu presidente, Eunício Oliveira, numa decisão estritamente pessoal, à revelia do presidente da comissão que examinava o assunto. Na Casa também houve grande lobby de magistrados que seriam beneficiados, a quem Toffoli posteriormente agradeceu pela força. E do lado de quem votou havia vários senadores com pendências judiciais.

Esse reajuste é imoral, mas essa é uma avaliação subjetiva e cada um tem a sua, o que gera uma discussão interminável. Mas é inegavelmente aético, avaliação que se assenta em verificar se a decisão beneficiou ou não o bem comum. Isso claramente não aconteceu, pois o ganho foi para gente no topo da distribuição de renda do País, será pago por gente até lá de baixo e agravou as já combalidas finanças públicas.

Também vi críticas de que o reajuste seria inconstitucional, citando legislação de questões orçamentárias. Mesmo sendo, quem julgaria um recurso ao STF sobre o assunto? Ora, os seus próprios beneficiários. Mas seria bom que viessem recursos, para marcar responsabilidades.

Entendo que o reajuste fere a Constituição também por outra razão. No seu artigo 1.º ela diz que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente (...).” Ora, esse reajuste não emanou do povo – aliás, é uma afronta a ele – e tampouco se pode afirmar que foi aprovado em seu nome. Veio de um acordão maléfico entre os três Poderes e contra o povo.

Alguém discorda? Que tal um plebiscito sobre o assunto?

A vez e a hora da liberal-democracia

O economista americano Milton Friedman, Prêmio Nobel de Economia em 1976, que lecionou na Universidade de Chicago por três décadas, dizia: “Se o governo administrar o deserto do Saara, em cinco anos faltará areia”.

Lembrei-me da frase de Friedman ao ver vários economistas com passagens pela mesma universidade —o berço do liberalismo — assumirem funções no futuro governo, com a finalidade de destravar o Estado brasileiro, mastodôntico e corporativo. Os alvos iniciais serão a alteração das regras e do modelo previdenciário, a desestatização/desmobilização e a reforma do Estado.


O primeiro desafio será a aprovação no Congresso da reforma da Previdência para reduzir o déficit que atingiu R$ 268,8 bilhões no ano passado. A encrenca começa aí. A Previdência urbana e rural tem um rombo de R$ 182,4 bilhões, mas atende a quase 30 milhões de pessoas. O Regime de Previdência dos Servidores Públicos tem déficit de R$ 86,4 bilhões e só atende a 1,1 milhão de pessoas. Isoladamente, as maiores defasagens percentuais entre as arrecadações e os benefícios pagos estão nas previdências rural e dos militares, cujas receitas cobrem apenas cerca de 8% dos pagamentos. Diante desses números, como irão reagir os principais grupos de apoio a Bolsonaro, a bancada ruralista e a caserna, se os seus interesses forem contrariados? Não é simples refazer o pandemônio previdenciário, repleto de “privilégios e direitos adquiridos”, por mais injustos que sejam.

O segundo desafio passa por concessões, privatizações e venda de imóveis do patrimônio da União. O Brasil tem atualmente 138 empresas estatais que possuem 508 mil servidores e movimentam anualmente R$ 1,3 trilhão, mais de cinco vezes o PIB do Uruguai. Em tese, um prato cheio para gerar recursos para abater a trilionária dívida do país. Mas bastou ser anunciado o nome do futuro presidente do Banco do Brasil — e o BB nem está na relação das empresas privatizáveis — para a Associação Nacional dos Funcionários do Banco do Brasil comprar espaço na capa do jornal “Correio Braziliense” para criticar o escolhido por ser “vinculado ao mundo das finanças privadas e defensor inconteste das privatizações”.

Já o valor global do patrimônio imobiliário público federal é estimado em R$ 947 bilhões. O potencial de arrecadação é enorme, mas a falta de estrutura da Secretaria do Patrimônio da União é muito maior. O governo não tem vocação para gerir um conjunto de bens dessa natureza. Paga aluguéis a terceiros no valor de R$ 1,6 bilhão e recebe cerca de R$ 400 milhões como arrecadação decorrente dos seus bens.

O terceiro desafio é a reforma do Estado, com a eliminação de órgãos e atividades superpostas, redução dos privilégios, das reservas de mercado, dos monopólios, dos subsídios e dos generosos financiamentos concedidos pelos bancos públicos aos amigos do rei. A diminuição da quantidade de ministérios deverá implicar a revisão da estrutura de cargos e salários. Existiam 23.140 cargos de Direção e Assessoramento Superior e Funções Comissionadas do Poder Executivo, segundo dados de outubro de 2018. Se reunidos todos os cargos, funções e gratificações atingia-se a 99.403! Os salários dos servidores federais são, em média, 96% superiores aos da iniciativa privada, conforme estudo do Banco Mundial. Nesse sentido, o governo Bolsonaro não participou da festa, mas já chegará pagando a conta, como a do descabido aumento dos subsídios dos ministros do STF, com reflexos de R$ 6 bilhões, e os reajustes salariais autorizados por Temer em 2016, com parcela a vencer em 2019. O corporativismo irresponsável solapa a austeridade fiscal nos Três Poderes e no Ministério Público.

Quando perguntavam ao economista e diplomata Roberto Campos — um liberal de carteirinha —se havia saída para o Brasil ele citava três: o aeroporto do Galeão, o de Cumbica e o liberalismo. Com suas ideias avançadas para a época, Roberto Campos deve estar exultante: atualmente, são vários os aeroportos que nos levam ao exterior e os liberais chegaram ao poder, inclusive o seu neto.