segunda-feira, 15 de junho de 2020

Pensamento do Dia


A razão sobre a emoção

O voto, maior arma de defesa da democracia, está deixando o coração para subir à cabeça. A hipótese pode parecer estrambótica nesses tempos de polarização, quando a emoção parece ganhar o jogo da razão. Mas engana-se quem imagina emoção como sinônimo de explosão, catarse, palavras de baixo calão (frequentes na linguagem dos governantes), slogans, culto aos mitos. Quando alguém, ante uma tragédia como a do Covid-19, diz "nunca vi tanto desgoverno, estou arrependido do meu voto na última eleição" está falando pelo coração ou pela cabeça?

À primeira vista, parece sair do coração. Ocorre que é um somatório de conhecimento da política, comparações, observação acurada do que se passa. Convenhamos que um processo racional se desenvolveu. A razão prevaleceu, coabitando com a emoção. Ultimamente, decepcionadas com os governantes, as pessoas dão as costas à política e revisam sua maneira de votar.

Na Europa, o sentido crítico acompanha os ciclos. Políticas sociais fracassadas, desvios da social-democracia, projetos liberalizantes inadequados e mesmo a corrupção alteram os comandos entre partidos. Os franceses chamam isso de "autogestã" técnica e definem o que esperam dos governos. Nos EUA, em que democratas e republicanos dominam a cena, é mais fácil selecionar seus representantes.

Aqui a paisagem é um deserto de ideias e líderes. Imensos buracos negros se multiplicam na política. Não há expressões de porte, quadros qualificados, pensadores e formuladores de alta densidade como antigamente. Claro que mudaram as condições da política. Os parlamentos perderam força, incluindo oposições, o discurso se torna grupal/ partidário/ fisiológico, sem a liturgia e o calor dos grandes embates.



O carisma, brilho que agiganta perfis, fenece sob a política de resultados. Causas nacionais cedem lugar a interesses de grupos, os comportamentos se igualam. O varejo se instala e a política deixa de ser missão para ser profissão. A ética fica a serviço das circunstâncias.

Coragem, zelo e obstinação, inerentes às lideranças, tornam-se escassos. Rigor na apuração de escândalos só ocorre sob pressão da opinião pública.

E o que faz o líder? Defende frentes de interesses. A liderança natural agoniza. O caso de Lula é emblemático. Seu carisma se esvazia. Tem o PT como seu trono e ali fica onipotente e onisciente. Diz que o partido não assina lista de Frente Ampla porque não é mais aquele do dito politicamente incorreto, "Maria vai com as outras". Pouca razão e muita emoção.

A política desconhece a nova identidade do Brasil, crescendo sob o signo da razão, do planejamento, das oportunidades. Entre as lideranças, a mesmice se instalou com um discurso que não afeta, não entusiasma, não entra na alma. São nomes de 20, 30 anos atrás.

Nesse ano de pandemia, o superlativo dominará o calendário eleitoral, a verdade se cobrirá de fake news e o mundo real se dividirá com o virtual. Esperemos que a razão supere a emoção. E que não deixemos a polarização eleger radicais. Que o cabo de guerra seja substituído pelo tronco da paz.

Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa

O título acima, em latim, não precisa de tradução. Vem de uma reza tradicional da Igreja Católica, o “Confiteor” (Eu confesso), na qual o fiel reconhece seus erros perante o Criador.

A prática do mea culpa é rara no Brasil. O PT foi e ainda é muito cobrado para fazer autocrítica e reconhecer erros cometidos durante os anos em que esteve no poder, nos governos Lula e Dilma. Nunca os reconheceu, nunca pediu desculpas.

Há hoje, no Brasil, uma extensa lista de entidades e pessoas que precisam fazer o mea culpa pela escolha de 2018, quando a disputa democrática oferecia pelo menos seis ou sete candidatos melhores que o eleito.


Políticos influentes se omitiram na campanha eleitoral e deram um “dane-se” ao país. Oportunistas, muitos deles se elegeram governadores e deputados na sombra do candidato presidencial e agora viraram casaca como se nunca o tivessem apoiado, sem uma palavra de arrependimento e desculpas. Empresários só pensaram no próprio quintal e passaram a aceitar “qualquer um” desde que não fosse do PT. Igrejas se animaram com o tom conservador e as ideias retrógradas. Juízes e procuradores influenciaram o voto sem demonstrar constrangimento. Jornalistas olharam para a economia e acharam que Paulo Guedes, o Posto Ipiranga, com sua política liberal, poderia consertar o país. Mesmo que o presidente continuasse andando por aí propagando teorias bizarras, feito criança inconsequente.

Jornalistas, portanto, não podem fugir de suas responsabilidades. Muitos dos que hoje ferozmente expõem as atrocidades presidenciais deveriam reler com distanciamento crítico o que escreveram no passado recente. Julgaram que, uma vez eleito, o presidente não iria se aventurar no autoritarismo. Que as instituições impediriam aventuras desse tipo e consideraram histéricas pessoas que se mostravam temerosas. É possível mesmo que a sociedade organizada consiga evitar o avanço autoritário para uma ditadura, mas o custo será elevado. Já está sendo.

Na hora de assumir responsabilidade por erros, é instrutivo observar o mapa das votações no segundo turno das eleições de 2018. Está lá, em verde e vermelho, uma impressionante divisão do país em dois: o rico e o pobre. Quanto mais rico, mais verde, e, quanto mais pobre, mais vermelho. Em São Paulo, o Estado mais rico, Bolsonaro venceu em 631 dos 645 municípios. No Nordeste, a região mais pobre, ele perdeu em 98% dos municípios. A faixa verde se estende desde Rondônia, Mato Grosso e Goiás, áreas do próspero agronegócio, até o sul de Minas, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, as regiões mais industrializadas do país. A vermelha domina o Norte e o Nordeste.

Está claro que a escolha do presidente foi responsabilidade das elites brasileiras, do agronegócio à indústria, passando evidentemente pelo setor financeiro. Não há clichê esquerdista algum nessa afirmação que usa a palavra “elites”. Foram, sim, os mais ricos e teoricamente bem informados que elegeram ou trabalharam com mãos e mentes pela eleição do atual presidente. Precisam agora fazer mea culpa.

Ao escolher Bolsonaro, a classe dominante sabia que ele se juntaria ao conservadorismo de Trump, que adotaria comportamento hostil em relação à China, maior parceiro comercial do Brasil, que daria uma banana para as causas ambientais, que desprezaria os povos indígenas, que poria ideologia conservadora nas escolas, que incentivaria a homofobia e o uso de armas pela população, que tiraria recursos da cultura, que a contragosto apoiaria o arrocho fiscal recessivo, que flertaria com o autoritarismo antidemocrático.

O atual presidente tem muitos e graves defeitos, mas também uma qualidade: nunca mentiu sobre suas intenções autoritárias. As elites só não sabiam, mas poderiam desconfiar, que ele adotaria uma política tão desastrosa na área da saúde. Nem que o país enfrentaria a infeliz coincidência de ser liderado por alguém que despreza a ciência e promove a morte em meio a uma pandemia nunca vista em cinco gerações.

Por que o Brasil elegeu um cidadão que agora obriga brasileiros a lutar feito leões para manter a democracia? Por que o eleitorado foi tão incompetente a ponto de minar seu próprio terreno com bombas que agora exigem tempo e energia para a sua desativação?

Assustados, heróis da campanha das “Diretas já” dos anos 1980 emergem da aposentadoria para alertar os mais jovens sobre o perigo iminente. A batalha ideal de hoje seria pela saúde, pelo crescimento econômico, pela distribuição de renda, pela educação universal e por outras causas sociais que possam melhorar a vida dos brasileiros. Mas não, 35 anos depois de ter derrubado a ditadura, cá está novamente a nação lutando para salvar sua democracia.

Só a luta amada evita a ditadura

Meu texto sobre a urgência de uma resposta coletiva aos avanços autoritários de Bolsonaro alcançou muita gente de minha geração.

Felizes com a ideia, todos se preparam, sabendo que o bastão há muito foi passado para as novas gerações. Não importa a importância do papel, o que importa é estar presente.

Da minha parte, a situação é clara. No passado, deixei o país. Hoje, sinto que o país é que está me deixando, dissolvendo-se numa bruma viscosa, tornando-se irreconhecível.

Por isso, quando um grupo gaúcho sugeriu a ideia de uma luta amada, disse imediatamente que para mim caía como uma luva.

Durante muitos anos, ao lado de outros, construímos uma legislação ambiental para proteger nossos recursos naturais. Relatei, por exemplo, o projeto do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, conhecido como Snuc. Parece um nome de cachorrinho, Snuc, mas encerra uma realidade de florestas, montanhas, rios e manguezais que visito com frequência.

Quando vejo que estão querendo desmontar a legislação, aproveitando-se do nosso foco na pandemia, quando ouço que querem fazer uma boiada passar sobre a tenra grama de nossa rede de proteção, sinto claramente que estão nos levando o Brasil.

Ao saber que Bolsonaro decapitou a direção do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, apenas para atender ao dono da Havan, sinto um calafrio. É um homem que vendia produtos chineses e tem uma cadeia de lojas com uma cafona Estátua da Liberdade na porta.

O Iphan foi dirigido por intelectuais como Rodrigo Melo Franco, Aloísio Magalhães, e Bolsonaro escolheu agora a esposa de um dos seus seguranças, para tomar conta de 1.300 bens materiais e 25 mil sítios arqueológicos. Foi barrado pela Justiça Federal.

Bolsonaro acha que nosso patrimônio se confunde com o que ele chama de cocô de índio cristalizado.

Das estátuas do Aleijadinho às pinturas rupestres da Serra da Capivara, é desse rico conjunto que extraímos o sentido de identidade nacional e também postos de trabalho para muita gente. Passam com uma boiada sobre os bens naturais e com um bando de javalis sobre nossos bens culturais.


Pena que os militares tenham embarcado nessa canoa. São potenciais interlocutores. Conhecem bem o Brasil. O escorregadão geográfico do general Pazuello foi apenas um acidente isolado.

Não sei se os militares estão usando Bolsonaro como um bode na sala, para depois se apresentarem como moderadores no pântano que ele criou. Ou se simplesmente se deliciam com o acúmulo de soldos e salários como os militares da Venezuela.

Em ambos os casos, estarão perdidos para sua tarefa maior, a defesa nacional. Não importa quantos aparatos de guerra possam comprar, se não têm mais o respeito do povo brasileiro.

De que adianta entrar para o Ministério da Saúde e empilhar cadáveres com a naturalidade com que pintam as árvores de branco?

Nossas populações indígenas estão sendo dizimadas pela Covid-19, nossa juventude negra massacrada pela opressão policial, nossas favelas organizam-se como podem para substituir um governo ausente na pandemia, ausente em todos os tempos.

Só não saímos às ruas porque o vírus tem sido implacável com os mais velhos. Por mais que Bolsonaro arme seus aliados e os filhos lutem para trazer do exterior novos brinquedos de morte, é preciso viver um pouco.

Na verdade, é preciso cautela nas ruas, pois todos precisam estar vivos. Cada um de nós que resiste é um pedaço do Brasil que pede socorro à humanidade, ao que resta de humano na humanidade.

Nem todos sabem como este país é grande, diverso, solidário, magnífico em sua beleza. Impedir que se dissolva nas mãos de vendedores de bugigangas, grileiros, racistas, incendiários é a grande tarefa de construir uma civilização tropical onde querem apenas pasto, fuzis, asfalto, carros e eletrodomésticos.

Como não suprimir o “r” das lutas passadas e chamar isto de uma luta amada? Como não compreender que todas as gerações pretéritas nos lembram de que o Brasil existe para todo o sempre, e que reinventá-lo depende de nós?

Vivendo com os carrascos

O dia amanhece com essa cara de zangado, disposto a raios e trovões. para ainda aumentar nossa tristeza, companheira de pandemia.

Estamos há meses convivendo com diversas batalhas, dia a dia somando mortos e estabelecendo estatísticas como se essas fossem vida. Não há números para expressar o sofrimento nem dos que morrem pela doença ou sofrem com ela. Mas pandemia será apenas conta? E gente, um número a mais ou a menos?

No mundo afora se usa ciência e todos os gastos para lutar contra o vírus, e tome doses de esperança para o povo sentir menos a opressão. Aqui há todo um armamento bélico desde a saúde e maciças porradas de selvageria para acabsar com o vírus. Os botocudos, à solta, atropelam a esperança e pisam no sofrimento alheio com a valentia de vândalos. A barbárie da matança tem nome e endereço fixo dos vândalos, mas o que importa?

É preciso assegurar a ordem e o progresso da desgovernança custe o que custar, morra quem morrer, sofra quem sofrer. Ficam a bater continência para os desmandos, a ignorância, a barbárie, a petulância como se fosse comum tais arbitrariedades medievais neste século XXI.

O custo não será pequeno para tanta bestialidade. O país sairá como pária da humanidade com certeza. Um título desprezível que pouco importa a quem apenas quer assegurar a legalidade da baderna executiva.

Pior ainda serão as mortes de tantos inocentes da política e do bem-estar sepultados em valões para que uns privilegiados entrem para a história como os carrascos heróis da maior matança governamental da história do país.
Luiz Gadelha

Brasil do naufrágio


Por que não te calas, estúpido?

“Quem que quer ganhar com isso? … tem um ganho político dos caras”.
“Tem hospital de campanha perto de você? Tem hospital público? Arranjem uma maneira de entrar e filmem…” (JMB, ao vivo em redes sociais, dia 11 de junho de 2020).
– Chega!

– Cala a boca, porra!

– Sai daí!

Respondo-te com teu linguajar chulo e autoritário, que não é o meu. Assim tu compreenderás,com teus simplórios atributos intelectuais, o que quero dizer. Exigimos respeito, como médicos e profissionais de saúde. Não mentimos ou desprezamos fatos, nem temos tua boca suja a cuspir palavrões, insanidades e acusações levianas.

Respeitamos, ao contrário de ti, os 40.000 mortos e seus familiares. Tu és ingrato. Nenhuma palavra de agradecimento ou apoio aos que labutam bravamente contra essa doença. Tu és covarde. Escuda-se atrás de militares de alta patente para esconder tua inépcia e incapacidade gerencial. Teu passado é sombrio, tenente cínico.Foste enxotado da caserna por trair os regulamentos militares. Deputado medíocre. Nunca defendeu algo nobre. Apologista da tortura, prestarás conta dos teus atos.

Desce dos helicópteros em que te penduras e macaqueia pelos céus. Desce do cavalo de narinas dilatadas em que tu, sacudido como um esqueleto sem máscara, avança para teu triunfo, o triunfo da morte. Vem governar, estúpido! Não tememos tuas ameaças e milícias.

Venham aos hospitais públicos. Encontrarão cansaço, faces marcadas pelas máscaras do trabalho, mãos limpas, amor e dedicação a profissão. Encontrarão doentes se recuperando, alguns ainda próximos da morte, corpos no necrotério e lágrimas dos familiares.

Documentarão familiares agradecidos ao trabalho de profissionais e gestores sérios que lutaram pela vida e contra a morte. Beócio, tudo isso te causa ira, inveja e despeito e corrói tuas pútridas entranhas. Teu ocaso deixará alívio e não saudade. Se calados ficarmos, teu desgoverno deixará um rastro de miséria com uma legião de desempregados e subempregados, devastará o meio ambiente, aniquilará minorias, fortalecerá o obscurantismo, destruirá a cultura, a ciência e o pensamento, infringindo a nós, povo brasileiro, os piores vexames perante a comunidade internacional.

Tu não passas de um soldado bisonho marchando em círculos, acompanhado de um pelotão de coveiros, a administrar cemitérios lotados e negar os fatos.
Sérgio Pessoa. médico membro do coletivo Rebento (Fortaleza)

Engenheiros do caos

Quando Jair Bolsonaro tomou posse no Planalto, em 2019, dois chefes de governo estavam presentes, Viktor Orbán, da Hungria, e Benjamin Netanyahu, de Israel. Ambos primeiros-ministros e líderes dos movimentos populistas, em seus respectivos países. Por motivo de força maior, Donald Trump não pôde vir a Brasília; mas enviou, por Twitter, mensagem calorosa ao novo presidente do Brasil.

Nada disso escapou a nossos analistas mais atentos. Mas tenho a impressão de que só agora começamos a entender, com mais clareza, o significado de suas consequências para o país. Talvez só recentemente tenhamos tomado consciência de que o presidente eleito já tinha um projeto no bolso, embora acreditássemos que não havia nenhum. O apoio daqueles políticos, além dos que não puderam vir à festa, indicava uma escolha ideológica consciente de Bolsonaro e sua turma mais próxima. A festa e os convidados estão no livro “Os engenheiros do caos” (Editora Vestígio, tradução de Arnaldo Bloch), escrito em francês pelo italiano Giuliano Da Empoli que, tendo sido conselheiro de Matteo Renzi, o derradeiro primeiro-ministro italiano social-democrata, hoje vive em Paris. 

Da Empoli narra as origens de um movimento político que, tendo sido formatado nos Estados Unidos, de Hollywood a Washington, teve seu primeiro pleno e proclamado sucesso na Itália, a partir das eleições de 2018. O que ele chama de “populismo real” é o resultado de uma concentração tecnológica contemporânea na disputa política, o uso de Algoritmo e Big Data, de trolls e fake news, para orientar os eleitores no rumo que interessa ao movimento. Uma revolução de direita sem armas, através dos princípios formais da democracia, feita para bagunçar com ela (a democracia). “Qualquer um pode crer na verdade”, escreveu Mencius Moldbug, blogueiro da direita alternativa americana, “mas acreditar no absurdo é uma real demonstração de lealdade”. Invente, invente sempre, porque a mentira vai dar a volta ao mundo, enquanto a verdade ainda calça os sapatos.



O grande ideólogo do populismo real é o americano Steve Bannon, que ficou famoso por “ter eleito”, em 2016, o improvável Donald Trump, graças a macetes originais com a internet e os algoritmos. Em reconhecimento, o novo presidente instalou Bannon num escritório vizinho ao seu, na Casa Branca, e deu-lhe um salário invejável. Em menos de um ano, Trump expulsou-o dali por inconveniente e ainda espalhou um tuíte em que dizia: “Steve, o babão, chorou e me suplicou por seu emprego quando eu o demiti”. O novo populismo de direita se alimenta também de emoções negativas e do escárnio, como instrumento de desprezo e imposição.

Bannon se instalou na Itália e, lá, participou das surpreendentes concertações entre o ascendente Movimento 5 Estrelas e a Liga, partido de extrema direita, com apenas 17% do eleitorado, onde Matteo Salvini, curiosamente chamado de “o Capitão” (?), até hoje espalha o medo e incita o ódio racial aos imigrantes. Bannon acabou tendo papel decisivo na eleição de Giuseppe Conte, atual presidente do Conselho de Ministros. Da Empoli conta que Conte foi desmascarado e humilhado pela imprensa, que desmentiu seu falso currículo de estudioso na NYU, Cambridge, Sorbonne e outras prestigiadas universidades. 

O livro de Da Empoli começa lembrando a passagem do poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe por Roma, no ano de 1787, durante o carnaval. Hospedado na Via del Corso, Goethe assiste perplexo à transmutação da sociedade italiana, com homens que viram mulher e mulheres que viram homem, tudo terminando em extrema violência. A descoberta da face sombria do carnaval, combinação de desvario, festa e porrada, sem critério e sem regras, “um festejo que o povo oferece a si mesmo”, se parece com a montagem do populismo real. Uma carnavalização da democracia.

A leitura de “Os engenheiros do caos” nos faz entender as razões do sucesso do populismo, de direita ou de esquerda, que cresce vitorioso pelo mundo afora. Ele tem sido uma alternativa às dificuldades contemporâneas da democracia representativa, da qual não podemos abrir mão. No último capítulo, “A era da política quântica”, encontramos portas de saída para a crise, ou como evitar na política o jogo, a mentira e o caos. Temos muita responsabilidade nessa história. Sempre que Da Empoli cita exemplos de populismo real no mundo de hoje, Donald Trump naturalmente encabeça a lista. Mas logo depois vem o nome do presidente Jair Bolsonaro. 
Cacá Diegues 

Inimigos mortais

Temos aprendido a voar como os pássaros, a nadar como os peixes, mas não aprendemos a sensível arte de viver como irmãos
Martin Luther King

À brasileira

Ainda é outono, há tulipas-do-gabão pelas calçadas, deve haver. E há uma lista tremenda de crimes imputáveis ao tirano, que segue livre de sentença, sorridente, jogando seus jogos mortais, negociando. Como a pedra que cai na água e faz brilhar círculos concêntricos, se somarmos aos nossos milhares de óbitos todos aqueles que vão se quebrando sem morrer completamente, teremos uma terra imensa de gente entristecida que não poupa de empestear com náusea a paisagem de quem ainda rega sua paz postiça no meio de uma guerra. Os dias têm amanhecido vermelhos, daquele vermelho denso de fornalha. Em qualquer lugar pode rebentar uma calamidade. Alguém é levado pela violência da voragem como se o chão se abrisse de repente, como se por azar, como se por acaso. Não dura meio minuto para uma mulher armadilhar uma criança só apertando um botão e deixando fechar-se uma porta. E como sair desse pesadelo de apocalipse se ainda há os que fazem festa, os que acarinham suas pistolas, seu muque de mata-leão, seu couro de porrete, e se ainda há os mais perversos que a polícia, em seus quase invisíveis gestos assassinos, em suas palavras-para-a-mídia, em suas assépticas maldades. Como barrar o mal sem sujar as mãos e os pés, sem desaprender a temperança, a diplomacia, o diálogo? A força bruta bate estaca cedo pela manhã, a força burra. Outro tempo corre nos cassinos do poder. Pessoas se amontoam nas lojas recém-reabertas, umas quantas de máscara à brasileira, arriada para o queixo. E os helicópteros continuam a invadir a nossa primeira hora iluminada. Os helicópteros, as sirenes, as serras. Também os bem-te-vis e os sabiás continuam. Como você está?, pergunta o amigo. Como tem passado esses tempos? Como um desses sabiás, você pensa. Escusada a pretensão, como um desses bem-te-vis. Ainda absurdamente vivo.
Mariana Ianelli

O labirinto de Bolsonaro

Seguir a política brasileira é uma mistura entre subir numa montanha russa e ver uma telenovela. Trepidante, o enredo é sempre complexo. Principalmente quando alguém como Jair Messias Bolsonaro, de 65 anos, praticamente monopoliza a cena. Nestes tempos de pandemia, ele conseguiu se destacar no mundo como o mais negacionista entre os líderes eleitos democraticamente e o único que demitiu não um, mas dois ministros de Saúde. Em vez de dedicar seus esforços para gerir a crise do coronavírus, concentra-se em satisfazer seus fãs com selfies e apertos de mão. Resultado: a curva de contágios continua subindo no país mais populoso da América Latina, novo epicentro de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). O Brasil é o segundo país com mais casos e (e isso que pouca gente faz o teste) e o também o segundo com mais mortos ―mais de 42.000 no balanço mais recente, neste sábado.

Bolsonaro politizou a pandemia como poucos mandatários. Deixou isso claro ao proclamar: “Os de direita tomam cloroquina; os de esquerda, tubaína.” A polarização que atinge o Brasil nos últimos anos se estendeu ao coronavírus por obra do presidente ―que, de quebra, ativa sua base eleitoral.


A crise sanitária preocupa, mas também inquietam cada vez mais os flertes de Bolsonaro com o autoritarismo. “É preciso resistir à destruição da ordem democrática, para evitar o que aconteceu na República de Weimar quando Hitler, após eleito pelo voto popular e posteriormente nomeado pelo presidente Paul von Hindenburg como chanceler da Alemanha, não hesitou em romper e em nulificar a progressista, democrática e inovadora Constituição de Weimar, impondo ao país um sistema totalitário de Poder”, escreveu o ministro Celso de Mello a seus colegas do Supremo Tribunal Federal (STF), dias atrás, pelo WhatsApp.

O presidente deixou claro, desde o primeiro contágio, que as recomendações sanitárias lhe pareciam uma idiotice; e os meios de comunicação, histéricos. Embora oscile de tom à medida que se abrem tumbas nos cemitérios, ele não deixou de incentivar atos multitudinários e, mais recentemente, incentivou apoiadores a invadir hospitais para checar se havia mesmo doentes neles. O que tira seu sono não é o vírus, e sim a possibilidade de que este arrase a economia, que parecia começar a se recuperar lentamente. Apesar das críticas dentro e fora do país, ele nunca deixou de defender a reabertura das empresas. Quer se desvincular a todo custo da hecatombe econômica que espreita logo ali. Os milhões de desempregados, um eventual aumento dos crimes e a instabilidade social... Quer assegurar que a culpa pela situação que o país enfrentará na pós-pandemia poderá ser jogada em outros ―os governadores, os prefeitos. E evitar, de qualquer jeito, que um bichinho invisível frustre sua reeleição em 2022.

Bolsonaro ameaça não cumprir ordens que considera “absurdas”. Nesta sexta, fez seu ministro da Defesa acompanhar uma nota em que diz que não apenas ele, mas também as Forças Armadas, não vão cumprir “ordens absurdas” ou vereditos de “julgamentos políticos”. A escalada retórica coincide com as novas frentes se abrem contra dele. A demissão de um símbolo anticorrupção como o ex-juiz Sergio Moro desatou várias reações em cadeia. A investigação que o Supremo abriu para saber se o presidente interferiu na Polícia Federal para proteger seus filhos, o espetáculo de uma reunião ministerial que mais parece um encontro “conspiranoico” e uma avalanche de pedidos de impeachment. Nesta semana, uma nova trama se juntou à coleção de problemas: dois dos oito processos contra a chapa Bolsonaro-Mourão começaram as ser julgados no TSE (Tribunal Supremo Eleitoral). Apesar dos trâmites serem extremamente lentos, as ações, especialmente as que investigam o suposto envolvimento de sua campanha em um esquema massivo de fake news, podem custar o mandaro a ele e ao vice. Bolsonaro está fraco, sim, mas a chave é quanto. “É o seu momento de maior fraqueza com relação ao poder institucional. Mas, se olharmos fora do campo democrático, não saberia dizer se ele está mais fraco ou mais forte”, explica Flávia Bozza Martins, professora de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná. “Sempre tivemos Governos que, com erros e acertos, tinham um pacto com os princípios democráticos.”

O ambiente político está muito tenso. A erosão da democracia avança com os constantes ataques do mandatário à separação de poderes e à imprensa. Bolsonaro legitima o golpismo que cresce em grupos de WhatsApp quando, nos atos públicos, incentiva os seguidores que defendem uma intervenção militar. Os desmentidos dos ministros militares são quase rotina. A cúpula das Forças Armadas parece não estar confortável, mas, ao mesmo tempo, a sua cara mais visível é justamente o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, que se mostrou ao lado de Bolsonaro em manifestações e agora na nota ameaçadora.

Nesse contexto, não surpreende que a rejeição a Bolsonaro bata recordes. Seus críticos, que antes da pandemia eram metade dos entrevistados, agora são dois terços. Os bolsonaristas mais pragmáticos, os que votaram nele para ver o Partido dos Trabalhadores (PT) longe do poder, agora o abandonam por causa de Sergio Moro ou porque veem o líder avançando sem considerar os perigos. Mas esse um terço que ainda o apoia se mantém firme. São os bolsonaristas duros, os que viram a demissão de Moro como uma traição. Os que votaram no capitão reformado para dar um bom “chute no traseiro” do sistema. “São os que se extasiam ao vê-lo na reunião ministerial enquanto fala dezenas de palavrões, os que consideram que esse vídeo mostra o Bolsonaro genuíno.”

É um respaldo sólido. Três vezes maior que o apoio que Dilma Rousseff tinha quando caiu no impeachment de 2016. Embora haja dezenas de pedidos de destituição, neste momento as contas para um julgamento político como aquele são insuficientes. Bem sabe disso a destituída presidenta de esquerda. “Bolsonaro tem os votos garantidos para impedir um impeachment. Esta será uma luta longa”, explicou Dilma recentemente a um grupo de correspondentes por videoconferência. Uma destituição assim demanda o que a jornalista Vera Magalhães chama de “uma alinhamento de astros: vontade do Congresso, apoio popular, uma economia em frangalhos e justificativa de crime de responsabilidade.” Até pouco tempo, as únicas manifestações de rua desde que a pandemia colocou meio país em quarentena eram as de partidários de Bolsonaro, exigindo a flexibilização das medidas de segurança. Mas esse quadro começou a mudar há duas semanas, com atos anti-Bolsonaro de torcidas organizadas que se autodenominam “antifascistas” ao qual se uniram também movimentos antirrascistas e alguns partidos de oposição —neste domingo, os dois lados prometem voltar às ruas. Na economia, todos os indicadores são ruins, mas ainda não estão em queda livre, embora o Banco Mundial preveja para o Brasil uma recessão pior do que a média mundial, com recuo de 8% em 2020. Por fim, resta ver as chances de prosperarem as acusações contra ele no campo legal, já que em todos os caminhos, menos o do TSE, é preciso autorização do Congresso para avançar.

O impeachment é a via política clássica, precisando do endosso inicial do presidente da Câmara dos Deputados, até agora inexistente, para existir. Mas também existe a via penal, no inquérito que corre no Supremo. Embora ainda em fase de investigação, é a frente mais avançada. O procurador-geral, apontado por Bolsonaro em setembro passado, decidirá se há material para denunciá-lo ―mas, em qualquer caso, o pedido precisaria de autorização do Congresso para virar uma ação penal e afastar o presidente. A tentativa de se blindar com apoio parlamentar está em pleno vapor. O presidente, que que governou o primeiro ano com uma maioria parlamentar instável, agora investe em assegurar cargos para garantir os votos do chamado Centrão. Recriou até um ministério exclusivamente para isso.

No horizonte, há outro fator: o general da reserva Hamilton Mourão. O vice-presidente assumirá o poder se Bolsonaro cair —salvo que ambos sejam retirados nas ações que correm no TSE. Ainda que Mourão tenha sido a primeira escolha do presidente, os seguidores de Bolsonaro consideram que o fato de Mourão proceder das Forças Armadas poderia ser um elemento dissuasivo ante a tentação de destituir o presidente. A cientista política Martins aponta outro fator importante: “Mourão não é um político, o que dificulta sua conversa com o Congresso” para realizar uma eventual destituição. Salvo surpresas, as eleições municipais previstas para o fim do ano, e a renovação do comando do Senado e da Câmara no começo do ano que vem, serão o melhor termômetro para medir as forças de Bolsonaro e seus aliados.