terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Natal do Brasil


Weintraub é uma ideia

Especula-se sobre uma reforma ministerial e a queda de Abraham Weintraub. Não sei se este é o intento do presidente. Sei que a campanha contra o ministro da Educação tem por fonte — por cérebro e motor — a ala ideológica do governo, a que dá formulação e discurso ao bolsonarismo, e que ocupa território privilegiado, falando ao ouvido de Jair Bolsonaro, no Planalto. Sei também que este grupo não age — jamais agiu em quase um ano — sem o aval do presidente; e que nunca rachou. Terá sido a primeira vez?

Não faltam elementos a expor a fervura do óleo na panela amiga em que se quer empanar o ministro. Isso não significa, porém, que Weintraub cumpra mal a missão que lhe foi designada.

Bolsonaro estimula os conflitos internos. Há método na forma como multiplica inseguranças entre auxiliares. Ninguém estaria tão firme. O vaivém de sua palavra — o modo como provoca confrontos inclusive entre colaboradores os mais graduados — tem como meta também desautorizá-los. Ele o faz em público. Distribui derrotas. O mais forte no núcleo duro governista é o menos fraco.


Já escrevi, nesta coluna, sobre “a lógica do fusível” com a qual o presidente gere ministros. O fusível é um dispositivo cuja existência consiste em ser um anteparo condenado a queimar para que queimado não seja o sistema; para que protegidos restem governo e governante. Bolsonaro não hesita em atropelar acordos — firmados por delegados seus, sob sua chancela — se puderem ser entendidos como triunfos em excesso da agenda de um assessor.

Terá sido assim — sob o espírito do “não se pode ganhar sempre” — que dinamitou o envio ao Parlamento da reforma administrativa costurada por Paulo Guedes. Foi assim que não mobilizou nem sequer minuto contra a diluição — a perda de identidade — do pacote anticrime de Sergio Moro; isto enquanto articulava para secar a independência lavajatista do ministro da Justiça, o popular ex-Moro, e transformá-lo no que ora é: espécie de advogado do bolsonarismo.

Com poucas exceções circunstanciais, auxiliares — mesmo os de primeiro escalão — estão no governo para se desgastar. O presidente não os poupa. Coloca-os em campo, como para-raios, sob as descargas das intempéries políticas, para que sejam eles, e não ele, os eventuais fulminados pela tempestade; não tendo pena de inutilizar um subordinado caso a agenda deste —autorizada por ele — desenvolva-se mal e represente risco de escalar para ameaçá-lo.

Isso não quer dizer, contudo, que os queimados sejam imediatamente descartados. Bolsonaro é hábil gestor de zumbis. Há também uma dimensão militar em sua estratégia: manter um cinturão de gordura, uma camada de esvaziados (Onyx Lorenzoni), fanfarrões provocadores menos (Damares Alves) e mais nocivos ao país (Ricardo Salles, Ernesto Araújo e o próprio Weintraub), e enrolados (Marcelo Alvaro Antonio); bois de piranha conservados para o exercício de assombrar (e distrair) os críticos, notadamente a imprensa, mas cujo propósito adiposo seria, por distância, escudar o presidente.

Assim pensa Bolsonaro: “Se não conseguem nem sequer derrubar o ministro do Turismo, muito longe de me abalar estarão.”

Nada disso significa — repito — que Weintraub cumpra mal sua missão. Ele é um executivo. E executa. Opera sob a dinâmica da guerra cultural, do combate ao inimigo, aquele agente do establishment encravado na máquina estatal, cuja derrota só será possível com a destruição da máquina estatal. Weintraub veio para destruir. E entrega resultados.

Por que, então, a campanha por derrubá-lo?

Afora o fato de que choques ceifadores internos sejam normais na dinâmica revolucionária, a blitz da ala ideológica contra o ministro deriva de ele trabalhar com algum grau de concepção econômica liberal. Quer diminuir o tamanho do ministério e ousou se mover para asfixiar a inexpressiva TV Escola. Mexeu numa entre as tantas tetas abocanhadas pelos pançudos jacobinistas, que consideram que a batalha consiste em destruir sem necessariamente reduzir, ocupando os espaços e os aparelhando. Em suma: destruir sem dieta, enquanto engordam. A revolução dos reacionários tem fome. Quer assegurar a boquinha.

Essa é a razão por que se investe — desde dentro do Planalto — contra Weintraub. Se ele tombar, entretanto, tudo indica que outro com o mesmo objetivo devastador terá lugar. Enquanto os próprios bolsonaristas coziam o antecessor Vélez Rodriguez, adverti para que aqueles perplexos com sua gestão não comemorassem — porque a chance de que viesse alternativa pior era imensa. Não deu outra. Repito a advertência agora.

Este 2019 já está perdido em matéria de Educação. Mais um. Outros anos natimortos virão. Não importa o ministro. Nada se pode erguer sobre um chão cuja instabilidade é projeto de governo. Weintraub é o espírito do tempo. Vai, fica: ele permanece. Weintraub é uma ideia.

Bandidagem empoderada

Os criminosos estão se sentindo empoderados. Eles apostam na impunidade. O discurso de ódio, de descaso feito contra os índios, que nunca havia sido feito por nenhum Governo, estimula essas milícias rurais e florestais. Como se não bastassem as milícias urbanas agora temos as milícias rurais e florestais que assassinam pessoas com requintes de crueldade
Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente  

O resgate da cortesia

O episódio é um clássico do país ibérico. Era o dia 12 de outubro de 1936. Num ambiente eletrizado pelos conflitos que ameaçavam deixar a sociedade exangue, diversos oradores se sucediam atacando aqueles que acusavam de ser a “anti-Espanha”. Foi nesse contexto que o filósofo Miguel de Unamuno pediu a palavra e, do alto dos seus 72 anos, explicou para a audiência: “Vencer não é convencer. É preciso, antes de mais nada, convencer — e o ódio não pode convencer”. Ele estava nesse ponto quando foi interrompido pelo general Millán Astray, um ícone do franquismo, clamando aos berros “contra o câncer da nação, que precisa ser exterminado, cortando na carne viva como um frio bisturi”. Tão exaltado estava, tendo uma saúde bastante fraca, que ficou sem fala e teve que se sentar, não sem antes bater continência para o público. A parcela da audiência que era adepta dessas teses — num país dividido ao meio — explodiu em frenesi, no meio das exclamações de “Viva a Espanha!”.


Nesse contexto, no meio do público escutou-se o grito alguns decibéis acima dos outros: “Viva la muerte!”. Fez-se então um silêncio sepulcral — e todos os olhos se voltaram para o orador original. Um indignado Unamuno recompôs-se e pronunciou as palavras que se tornaram um marco daquela década infame: “Acabo de escutar um grito necrófilo e insensato. Ele corresponde a dizer: ‘Muerte a la vida!’. E eu, que passei anos criando paradoxos que irritavam àqueles que não os compreendiam, devo dizer a vocês, com a autoridade que tenho na matéria, que este paradoxo ridículo me parece repugnante”. A outra metade da plateia veio abaixo. O resto — três anos de uma Guerra Civil atroz — é História.

Corta para quase cinco décadas depois, no Brasil, saindo do regime militar, numa transição difícil e com a situação ameaçando desandar, pela tensão associada aos grupos radicais. Tancredo Neves conduzia o processo com a experiência de quem tinha visto de perto o suicídio do Getúlio, a construção de Brasília, o auge e a cassação de JK, a renúncia de Jânio, a experiência parlamentarista de Jango e o ciclo militar completo de 1964 em diante. Um deputado da sua “tropa”, dividindo o grupo de apoiadores em categorias, se refere aos dois ou três segmentos mais importantes e, no fim, fala “do resto”. Eis então que Tancredo o interrompe e, com muita calma, lhe dá uma pequena lição de vida: “Meu filho, não fala do ‘resto’. Fala dos ‘outros parlamentares’”.

Poucos meses antes, eu tinha tido a oportunidade de conhecer Tancredo, na única vez em que estive com ele. Eu carregava, na época, toda a empáfia dos meus 20 anos e as marcas de quem tinha saído da Argentina anos antes, num quadro de polarização política que lembrava muito o da Espanha da década de 30. Com esse curriculum, achava a pregação conciliadora do Tancredo algo entre o deprimente e o condenável. E, mesmo com toda a pretensão própria dos meus poucos anos e a ignorância profunda que eu não sabia que tinha acerca da vida, saí da conversa com a percepção clara de que tinha conversado 15 minutos com um dos grandes da História — e que teria muito a aprender com esse velhinho de ar aparentemente frágil. Só muitos anos mais tarde fui perceber que tinha recebido uma aula de sabedoria. Sem falar da fidalguia com a qual ele reagiu a minhas provocações juvenis acerca da necessidade de radicalizar o discurso contra o governo Figueiredo.

Corta para quase quatro décadas depois daquele 1980 e algo. É preciso dizer o óbvio: o Brasil está doente. E digo isso com olhos de observador externo. Nasci aqui, mas como fui embora com menos de 1 ano de vida, quando voltei na adolescência foi como se chegasse pela primeira vez. A prosperidade é incompatível com nosso grau atual de polarização. O Brasil de hoje não guarda qualquer relação com o lugar que conheci em 1976, onde forças opostas conversavam e havia espaços de entendimento. Sem resgatar o diálogo, o futuro do país será feito de fúria, tristeza e sombras.
Fabio Giambiagi

(Nova) Paisagem brasileira

Hélio Lombardo dos Santos (agricultor) e seu cachorro,
em uma área florestal queimada em Porto Velho (RO)

Retrato do Brasil

Assim como a fotografia é a imagem que se capta de um momento, a pesquisa de opinião faz a mesma coisa. Sem o visual da imagem , ela é capaz de reter o sentimento, a tendência, a ideologia que prevalece numa situação. Na semana passada, o Datafolha divulgou a sondagem que fez para saber se a população aprova ou não o governo.

O resultado é o retrato político de um País que, em meu entender, não tem fotogenia. A pesquisa detectou que existe uma tendência favorável da opinião pública para o presidente que não ouso dizer o nome. Os números são bons para ele e indicam que a escalada de reprovação do governo teve ritmo sustado, pois a impopularidade ficou estabilizada.

Curiosamente quem segurou a queda foram os tímidos índices da economia como a quase imperceptível retomada na geração de empregos e os números do PIB. Antes de a pesquisa ser publicada, eu jurava que era o contrário. Mas, descubro, fatalmente, estou numa bolha.


Se você quiser emoção mais forte, o levantamento também acusou que há uma avaliação positiva da ministra Damares Alves (ministra de quê mesmo?). Lógico, Damares fica bem atrás de Moro e Paulo Guedes. No entanto, é a única entre os ministros citados, que recebeu melhor avaliação entre os mais pobres do que entre os mais ricos. Juro!

Nas entrelinhas, a pesquisa está afirmando que hoje já existe quem goste desse governo. De quê, não sei: é um governo que exalta o conservadorismo, prega menos liberdade, opta por uma economia de mercado, é elitista e condena as políticas públicas. Neste primeiro ano de gestão, o presidente tem dado provas que não é um conciliador, é chegado a um confronto, a polarizações radicais, quer manter privilégios para grupos específicos e rejeita os direitos das minorias. Para quem gosta, é um prato delicioso.

Certamente há no País muita gente que despreza essas atitudes. Mas, se a pesquisa diz que a economia segurou a barra e o ajudou, é preciso entender que se os índices dessa economia melhorarem, o autor dela também se fortalece.

No ano passado, na campanha eleitoral, quando cientistas políticos analisavam o comportamento dos eleitores e tentavam identificar suas escolhas e motivações, justificavam que as pessoas eram favoráveis ao então candidato que hoje é presidente porque queriam dar um voto de protesto. Ou, principalmente, porque o sentimento anti PT era grande.

Passado um ano, essas avaliações não servem mais para analisar quem insiste em apoiar um governo que oferece mais desvantagens do que vantagens ao povo.

O governo tem a cara de quem o apóia com convicção. As sondagens, se a gente quiser entender assim, sugerem haver um percentual de brasileiros bastante fiel à direita e quer manter a situação política do jeito que está. Essa convicção só pode ser explicada por uma palavra: identificação. Ideológica, partidária ou de classe.

Vamos combinar. Grande parte da população (o povão, inclusive) é moralista e quer viver numa sociedade que rejeita as políticas progressistas. Uma ampla parcela quer a manutenção das instituições sociais tradicionais e gosta de ser assim. Quando a pesquisa diz que há quem aprove o governo ela realmente é o retrato de um parte do Brasil .
Cícero Belmar

Aviso aos mal educados



O Brasil precisa brigar menos e investir mais em educação
Jorge Paulo Lemann, considerado este ano pela revista Forbes como o segundo homem mais rico do Brasil

O Brasil, para frente ou para trás

A minha geração veio ao mundo nos anos 40/50. Sobreviventes, somos testemunhas do país que resistiu à toda sorte de desmandos e pede passagem para entrar segunda década do século XXI. A única certeza é a dúvida: em que direção?

Olhemos para trás: no decênio 40/50, éramos 52 milhões de habitantes e, hoje, 208 milhões, quinta nação mais populosa do mundo; economicamente irrelevante, o Brasil era uma gigantesca fazenda mono-exportadora de café, atualmente, figura entre as 10 maiores economias do Planeta; a expectativa de vida ao nascer era de 45,5 anos, hoje, chega a 72,8 para homens e 79,9 para mulheres; a taxa de mortalidade infantil era de 146 óbitos por 1000 nascidos, em 2018 estão registrados 12,4 óbitos por 1000 nascidos.

Com efeito, os números são quantitativamente expressivos, porém quando cotejados com certos indicadores revelam desafios monumentais a serem enfrentados urgentemente. É o que revela o PISA, indicador da OCDE que trienalmente avalia alunos de 15 anos, em 79 países, mostrando o Brasil estagnado na 57ª posição; O IDH, atolado no 79° lugar entre 189 países; medido pelo coeficiente de Gini, o Brasil aparece como o 9° país mais desigual do mundo.




Ora, existe alguma incongruência na comparação dos dados? Não. Os primeiros medem aspectos quantitativos e o segundo conjunto se baseia em critérios qualitativos. A qualidade fará a diferença na medida em que aperfeiçoa as pessoas, tornando-as aptas a assimilarem os súbitos avanços da ciência e da tecnologia, assim como participarem das novas configurações político-institucionais. Neste sentido, o desafio central da humanidade é assegurar a liberdade em todas as suas dimensões.

E o Brasil pode? A sociedade brasileira, em vários episódios, vem mostrando a força das instituições e espírito empreendedor a exemplo da competitividade do agronegócio: terceiro produtor agrícola do mundo; safra de 2018/19, produção de 240 milhões de toneladas (área plantada de 2008/09, 42 milhões de hectares e, em 2018/19, 49 milhões de hectares, 16% para um incremento na produção de 78%). A produtividade é amiga da floresta.

E o Governo? “Cuidar da porteira para fora”, diz um líder do setor, referindo-se à precariedade da logística.

Eis aí o caminho a ser trilhado: tornar produtivas as pessoas para a vida e, como é impossível predizer o futuro, seguir o conselho de Yuval Harari: “Se libertar do passado e imaginar destinos alternativos”.

A arte de fazer chover

Comprei no iTunes vários álbuns com o som de chuva caindo em florestas tropicais, aves cantando ao longe, besouros zumbindo. A ideia era escutá-los durante os longos voos noturnos que sou obrigado a cumprir, cada vez com menos paciência, ao longo do ano. Experimentei esses sons em diversas ocasiões. Colocava os fones, fechava os olhos, e tentava imaginar-me numa tenda, naufragado entre árvores altas e muito verdes. Nunca funcionou, porque logo o vizinho do lado me acertava uma bruta cotovelada no estômago, ou me pisava um pé, ou uma aeromoça me interrompia para me perguntar asperamente se preferia carne ou peixe para o jantar. 

Passei a ouvir esses álbuns em casa, no computador, enquanto escrevo. Há dias, estava quase concluindo um novo romance, inteiramente esquecido do mundo e dos seus inumeráveis desastres, quando Kianda Ainur, a minha filhinha de 19 meses, irrompeu no escritório como um cataclismo feliz:

— Chuva, papá! — Gritou, com o seu irresistível sorriso de quatro dentes: — Piu, piu, piu!

Estendemo-nos os dois no soalho, de costas, ouvindo cair sobre nós aquela fresca chuva imaginária. Foi a melhor chuvarada que apanhei na vida. 

Aumentei o som. Fiz chover sobre um palmeiral no norte de Moçambique; sobre as águas sagradas do Nilo; sobre uma cabana com tecto de colmo, numa qualquer ilha do Pacífico. Coloquei mais pássaros: sanhaços, sabiás, curiós. Acrescentei o resfolegar de um elefante brincando na lama, o uivo distante de um lobo nas estepes da Mongólia, cavalos correndo ao longo de uma praia deserta, na Tasmânia — tudo isso na intenção de surpreender a pequena Kianda Ainur. 

Desde então, ela acredita que sou eu quem comanda as chuvas e os cantos e os gritos dos bichos nas florestas e savanas. Tenho receio de que ao sair para a rua, numa tarde de sol, sob um vasto céu azul metálico, ela me peça, sorrindo mansamente: “papá, chuva!”
Como irei resistir ao sorriso dela? Terei de voltar correndo para casa, com a pequena ao colo. Ligarei o computador, para selecionar as melhores chuvas, as brisas mais melodiosas e perfumadas, as trovoadas mais poderosas, as aves com os cantos mais belos e mais raros. 

Nos últimos dias, venho gastando pequenas fortunas (felizmente não posso gastar senão fortunas mesmo muito pequeninas) a comprar sons da natureza — a estocar vento, digamos assim. Já possuo uma coleção impressionante. 

Mais difícil do que criar temporais é descriá-los. Percebi isso ontem, enquanto principiava a escrever esta coluna, quando uma chuva verídica começou a crescer sobre a ventania ficcional soprada pelo meu computador, anulando-a. Vi as grandes árvores, lá fora, dançando, saltando e contorcendo-se, como se tivessem incorporado poderosas entidades — e talvez tivessem. O céu escureceu. Segundos depois vieram os relâmpagos, a trovoada sacudindo as vidraças. Kianda entrou nesse instante. Apontou para a janela:

— Medo, papá. Desliga!

Olhei-a, atordoado. Acho que ela adivinhou o meu desconcerto. Sorriu, como se perdoasse a minha adulta ineficácia, e, erguendo a pequenina mão, abriu e fechou os dedos — então o vento serenou, o céu abriu-se e um fio de sol rolou pelo soalho.

Não queremos ver isso: mas só as crianças nos podem salvar. 
José Eduardo Agualusa

Pensamento do Dia

Daniel Spacek

Uma guerra particular

Me segura que vou ter um troço. Esta é uma frase cômica, talvez muito vulgar para um tema clássico como a política externa de um país. No entanto, ela me parece adequada para definir os passos de Bolsonaro neste primeiro ano de governo.


Ele começou questionando a relação com a China, o nosso maior parceiro comercial. Os chineses não podem comprar o Brasil, dizia. Com o tempo, a turma do deixa-disso o convenceu de que as relações com a China são necessárias. Os próprios chineses, do alto de muitos séculos de experiência, estavam tranquilos. Hoje, Bolsonaro já fala de um futuro comum com a China.

Bolsonaro resolveu transferir a embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém. De novo, a turma do deixa-disso o convenceu de que não era oportuno. O filho Eduardo insiste na tese. Isto indica, pelo menos, que na próxima geração de Bolsonaros no poder a transferência pode ocorrer. Isso leva tempo e depende das urnas.

Bolsonaro disse a Trump que o ama. Sua ideia era se alinhar totalmente com os Estados Unidos. De novo, a turma do deixa-disso alertou: calma, é preciso se aproximar sim, mas com cautela.

Ele achou que os Estados Unidos indicariam o Brasil para a OCDE. Pensava que isto viria de uma hora para outra. Os americanos indicaram a Argentina, pois já tinham compromisso anterior com o vizinho. Trump vai cumprir a promessa. Mas no seu tempo. Por enquanto, fala em taxar aço e alumínio do Brasil sem, ao menos, telefonar para Bolsonaro.

Por falar em Argentina, Bolsonaro criticou a escolha popular e disse que aquilo iria se tornar uma nova Venezuela. Resolveu que não iria à posse de Alberto Fernández. Em seguida, designou um ministro. Voltou atrás e disse que não iria mais ninguém. De novo, a turma do deixa-disso entrou em campo. Bolsonaro atenuou seu discurso e resolveu enviar o vice, general Mourão.

Nem sempre foi possível segurar Bolsonaro. Às vezes, ele teve um troço, como no momento em que divulgou o vídeo do golden shower. Sua ideia era mostrar como o mundo estava perdido.

Bolsonaro de novo teve um troço quando foi criticado por Macron e ofendeu Brigitte, a mulher do presidente francês.

No campo da política ambiental, aí sim não foi possível contê-lo. Ele não consegue entender a preocupação mundial com a Amazônia, muito menos com o aquecimento do planeta.

Mesmo contido em vários momentos, continuou tendo um troço, dessa vez acusando Leonardo DiCaprio de financiar as queimadas na Amazônia. Em seguida, investiu contra Greta Thunberg: pirralha, pirralha.

Bolsonaro não entende a influência crescente da juventude. Ainda mais quando é encarnado por meninas. Ele mesmo disse que fraquejou quando fez a filha, depois de tantos varões na família.

Mercenários

O Brasil foi um mercenário, que prometeu só fazer os esforços de redução das emissões, do desmatamento e das queimadas, se os países ricos pagarem para que se faça isso a Amazônia é de nossa inteira soberania.
 
Mas soberania implica em responsabilidade. Não posso dizer que sou soberano, mas só cuido daquilo que eu sou soberano, se alguém me pagar 
Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente

Política é missão, não profissão

A política não é um fim em si mesmo, mas um sistema-meio para administrar as necessidades do povo. Logo, é uma missão, não uma profissão. Aristóteles ensina que o cidadão deve servir à polis visando ao bem comum. Ao se afastar dessa meta, dá lugar à corrupção, pois “se desvia do objetivo e passa a governar de acordo com seus interesses”.

Por conseguinte, a política não deve ser escada para promover pessoas ou facilitar negócios. O sistema político desenvolve a capacidade de responder aspirações, transformar expectativas em programas, coordenar comportamentos coletivos e recrutar para a vida pública quem deseja cumprir uma missão social.

Utopia? Pode ser, mas deve servir de inspiração. Infelizmente, entre nós, a política tem sido tratada como bom negócio. Longa tradição. Ao criar e doar 14 capitanias hereditárias a donatários entre 1534 e 1536, d. João III plantava a semente do patrimonialismo. De posse da terra, os donatários podiam até transferi-las para os filhos, mas não vendê-las. Capitania virou possessão, propriedade.


Hoje, parcela dos nossos representantes considera espaços públicos como feudos. Assim a política se transforma num dos melhores negócios da Federação. O caminho: primeiro, conquista-se o mandato; a seguir, a política vira instrumento de intermediação no mercado de 27 Estados (com o DF). São estruturas, cargos e posições nas esferas federal, estadual e municipal.

Um negócio com cerca de 150 milhões de consumidores, o contingente eleitoral. Para chegar até eles, um candidato gasta bons trocados (custo médio hoje entre 12 a 15 reais por eleitor), a depender do cargo, de vereador a presidente da República.

Candidatos ricos bancam suas campanhas. A maior parte recebe recursos do fundo partidário ou doações. Para 2020, o fundo partidário deve ser em torno de R$ 2,5 bilhões. PSL e PT, os dois maiores partidos na Câmara, devem receber as maiores fatias. Numa campanha despende-se entre três a quatro vezes mais do que a quantia apresentada aos Tribunais eleitorais. Poucos se elegem com somas pequenas.

Dessa moldura, surge a pergunta: se a campanha política é tão dispendiosa e se candidatos gastam mais do que ganham, por que o empenho para assumir a sacrificada missão de servir ao povo? Ou há muito desvio entre o espírito cívico de servir e o sentido prático de se servir?

Arriscado inferir sobre o comportamento dos políticos, pois parcela atua de maneira nobre. E acaba sofrendo injustamente críticas por desvios cometidos por alguns.

Onde brota a corrupção? Começa pelo costume do superfaturamento. Obras públicas geralmente recebem um dinheiro a mais, que paga achacadores e engorda campanhas no círculo vicioso do lamaçal, hoje devassado pela Operação Lava Jato. Mas há sempre uma fresta, uma vez que em postos chaves estão os indicados pelos políticos.

Portanto, há um PIB informal formado por recursos extraídos das malhas da administração nas três instâncias federativas. Sanguessugas predadoras escondem-se em parcela do corpo político para sugar as veias do Estado brasileiro.

Dinheiro e poder são as vigas da vida pública, mas começam a soçobrar nesse início de ciclo da ética e da transparência.

Bolsonaro aparece em HQ do Batman identificado como Bozo

Perfil satírico de Bolsonaro diz 'Se dependesse de mim,
todo cidadão de bem teria uma arma de fogo em casa
O presidente Jair Bolsonaro talvez seja o primeiro brasileiro a aparecer em uma história do Batman. Mas, neste caso, ele foi retratado como um vilão, mencionado como uma figura que promove a violência.

Uma nova edição de série "The Dark Knight Returns" traz em uma das páginas a imagem de um perfil fictício do Twitter, com a foto de Bolsonaro, identificado pelo nome 'JM. Bozo'.

Abaixo do retrato de Bolsonaro, em inglês, a suposta mensagem tuítada pelo perfil: "Se dependesse de mim, todo cidadão de bem teria uma arma de fogo em sua residência".

Publicada pela DC Comics, esta edição da revista foi escrita pelo renomado roteirista Frank Miller e ilustrada pelo premiado artista brasileiro Rafael Grampá.

E Bolsonaro não está sozinho na edição, cujo título é "The Dark Knight Returns: Golden Child": o presidente americano Donald Trump aparece repetidas vezes.

Na trama, que é a quarta sequência do clássico "The Dark Knight Returns", manifestantes protestam na cidade de Gotham contra a possível reeleição de Trump quando são atacados por uma multidão vestida de Coringa.

A situação só é controlada quando a Batwoman aparece na cena e ajuda no combate aos agressores pró-Coringa (associados a simpatizantes de Trump).

Na mesma página, o quadrinho faz críticas a cobertura da imprensa e mostra as manchetes de um jornal, a "Gotham Gazette", com os títulos: "Manifestantes selvagens trazem caos para Gotham" e "Vândalos infelizes com a campanha de reeleição destroem e queimam a cidade".

Há também um blog, "True News", que diz que um cidadão de Gotham, vestido de palhaço, é "atacado subitamente por manifestante".

Ao lado desses quadros, aparece a referência ao presidente do Brasil com uma reprodução do perfil fictício no Twitter de JM. Bozo.

Observando o desaparecimento do Cerrado

Com o carro em movimento, sem tirar os olhos do mapa na tela do celular, Sérgio Nogueira, pesquisador da Universidade Federal de Goiás (UFG) indica o ponto exato da parada. No local, zona rural de Pium, oeste de Tocantins, uma estrutura grande de metal está construída sobre o solo vermelho, agora exposto.

Foi dali que partiu, em maio último, um alerta de desmatamento captado pelos satélites do Deter, Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Seis meses depois do alerta emitido, não há resquício do cerrado. A mata nativa foi substituída por um armazém de grãos.

A área entrou na conta do desmatamento do cerrado em 2019. O levantamento divulgado nesta segunda-feira (16/12) pelo Inpe estima que 6.484 quilômetros quadrados foram devastados de agosto de 2018 a julho de 2019. O número é 2,26% menor que o desmatamento verificado no período anterior, porém ainda alto e muito próximo ao valor absoluto medido em 2018, que foi de 6.634 quilômetros quadrados.

Sérgio Nogueira não conhecia esse dado quando foi a campo no interior do Tocantins, semanas antes da divulgação. Parte do trabalho dele, na verdade, é inspecionar a qualidade do sistema de monitoramento do Inpe: ele integra o grupo independente do Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento (Lapig), da UFG, que visita áreas apontadas como desmatamento e também revisa os dados no laboratório.

A expedição pelo Tocantins foi a última das quatro realizadas com o objetivo de produzir uma nova avaliação sobre a qualidade dos dados do Deter e Prodes. No total, foram 367 visitas – ou inspeções - em áreas de desmatamento apontadas pelos satélites nos estados da Bahia, Maranhão, Piauí, Tocantins e Goiás.

A primeira análise produzida pela UFG, que se concentrou em dados de derrubada da mata processados de 2000 a 2017, apontou uma alta precisão. "A acurácia global do Prodes e do Deter no cerrado corresponde a 93,4% por meio da inspeção visual”, detalha Nogueira.

É comum, durante as visitas de campo, se deparar com restos de árvores derrubadas e madeira queimada no terreno. Em outros locais, onde o desmatamento apontado ocorreu há mais tempo, plantações de arroz, soja e pasto para gado são dominantes.

Tocantins lidera o ranking de alertas emitidos pelo Deter desde 2017 para o cerrado. Segundo a plataforma MapBiomas, que refina dados coletados em diversas fontes, dos 768 alertas de desmatamento identificados de janeiro a setembro deste ano no estado, 710 não tinha autorização para derrubada da mata. São mais de 92% de ilegalidade.

Desde 1970, o cerrado brasileiro já perdeu quase metade de sua área original, segundo levantamento de 2018 da ONG WWF. Estima-se que apenas 8% do cerrado estão hoje de fato protegidos do avanço do desmatamento. Há alguns anos, um estudo publicado na revista Nature pelo Instituto Internacional para a Sustentabilidade (IIS) já alertava que, se a destruição avançar nessa toada, o cerrado brasileiro pode ser testemunha da maior perda de espécies vegetais da história.

Andrea Scheide, auditora do projeto Prodes Cerrado, integra a expedição. No Inpe, ela revisa o trabalho dos intérpretes, como são chamados os profissionais que identificam e delimitam no mapa a área desmatada vista pelo satélite. Nenhum dado é divulgado sem que os auditores internos façam essa leitura crítica.

A partir de 2018, o monitoramento da perda do cerrado passou a ser anual, seguindo os moldes do Prodes Amazônia. A dificuldade de fazer a diferenciação da imagem gravada pelo satélite, porém, é maior: no cerrado, segundo maior bioma do país, há grandes variações na vegetação, incluindo campos naturais que parecem pastos e mata um pouco mais densa.

"É importante participar dessas expedições para confirmar os desmatamentos que vemos por satélite e entender melhor como as paisagens naturais aparecem nas imagens captadas”, explica Scheide, que trabalha com sensoriamento remoto há 21 anos.

Foi a primeira vez que ela viu ao vivo os murundus, formações com árvores de baixo porte que se agrupam em círculos por planícies. "Na imagem de satélite, murundu parece uns pontinhos pintados com canetinha”, comenta Scheide.

Campos de murundu são cada vez mais raros. A substituição da vegetação por plantações de arroz foi flagrada em vários momentos da visita de campo em Tocantins.

"De maneira geral, o bioma vem sofrendo uma pressão muito grande da agropecuária e dos sistemas de plantio comerciais e extensivos. Dentro dessa proposta de monitoramento, além da preservação de áreas importantes para biodiversidade, existem questões que vão muito além”, diz Raquel Trevisan, bióloga. "É de extrema relevância conhecer o que se tem aqui”, comenta sobre o papel do cerrado.

O cerrado é considerado o berço das águas do país. É na área desse bioma que nascem rios importantes para abastecimento de vários setores, como os que integram as bacias do Tocantins-Araguaia, do São Francisco e do Prata.

"Manter a vegetação do cerrado é crucial para manter a qualidade e quantidade dessas águas que vão abastecer essas bacias”, pontua Cláudio Almeida, coordenador do sistema de monitoramento do Inpe, sobre a vigilância por satélites.

Desde que o cerrado se transformou na região mais importante do país para produção de grãos, como soja, a partir da década de 1970, metade da vegetação original desapareceu.

"É importante monitorar o cerrado também para a agricultura brasileira”, comenta Almeida. "O cerrado tem um peso fundamental para produção de divisas, de emprego, produção de riqueza, então precisamos entender muito bem para onde a agricultura está expandindo, qual impacto que isso tem até para preservar essa agricultura, preservar em termos de manter a quantidade de água para irrigação, manter calendário de chuvas na região e também garantir que essa produção respeita critérios de sustentabilidade”, ressalta.

Deutsche Welle