Passei a ouvir esses álbuns em casa, no computador, enquanto escrevo. Há dias, estava quase concluindo um novo romance, inteiramente esquecido do mundo e dos seus inumeráveis desastres, quando Kianda Ainur, a minha filhinha de 19 meses, irrompeu no escritório como um cataclismo feliz:
— Chuva, papá! — Gritou, com o seu irresistível sorriso de quatro dentes: — Piu, piu, piu!
Estendemo-nos os dois no soalho, de costas, ouvindo cair sobre nós aquela fresca chuva imaginária. Foi a melhor chuvarada que apanhei na vida.
Aumentei o som. Fiz chover sobre um palmeiral no norte de Moçambique; sobre as águas sagradas do Nilo; sobre uma cabana com tecto de colmo, numa qualquer ilha do Pacífico. Coloquei mais pássaros: sanhaços, sabiás, curiós. Acrescentei o resfolegar de um elefante brincando na lama, o uivo distante de um lobo nas estepes da Mongólia, cavalos correndo ao longo de uma praia deserta, na Tasmânia — tudo isso na intenção de surpreender a pequena Kianda Ainur.
Desde então, ela acredita que sou eu quem comanda as chuvas e os cantos e os gritos dos bichos nas florestas e savanas. Tenho receio de que ao sair para a rua, numa tarde de sol, sob um vasto céu azul metálico, ela me peça, sorrindo mansamente: “papá, chuva!”
Como irei resistir ao sorriso dela? Terei de voltar correndo para casa, com a pequena ao colo. Ligarei o computador, para selecionar as melhores chuvas, as brisas mais melodiosas e perfumadas, as trovoadas mais poderosas, as aves com os cantos mais belos e mais raros.
Nos últimos dias, venho gastando pequenas fortunas (felizmente não posso gastar senão fortunas mesmo muito pequeninas) a comprar sons da natureza — a estocar vento, digamos assim. Já possuo uma coleção impressionante.
Mais difícil do que criar temporais é descriá-los. Percebi isso ontem, enquanto principiava a escrever esta coluna, quando uma chuva verídica começou a crescer sobre a ventania ficcional soprada pelo meu computador, anulando-a. Vi as grandes árvores, lá fora, dançando, saltando e contorcendo-se, como se tivessem incorporado poderosas entidades — e talvez tivessem. O céu escureceu. Segundos depois vieram os relâmpagos, a trovoada sacudindo as vidraças. Kianda entrou nesse instante. Apontou para a janela:
— Medo, papá. Desliga!
Olhei-a, atordoado. Acho que ela adivinhou o meu desconcerto. Sorriu, como se perdoasse a minha adulta ineficácia, e, erguendo a pequenina mão, abriu e fechou os dedos — então o vento serenou, o céu abriu-se e um fio de sol rolou pelo soalho.
Não queremos ver isso: mas só as crianças nos podem salvar. José Eduardo Agualusa
Não queremos ver isso: mas só as crianças nos podem salvar. José Eduardo Agualusa
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