sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Pensamento do Dia

 


O ano e seu adversário

A virada do ano confirmou, para mim, as prioridades que me parecem óbvias no Brasil de 2021: vacinação em massa e retomada da economia com ênfase em sustentabilidade e responsabilidade social. Uma retomada verde.

No entanto, não adianta muito pura e simplesmente repetir prioridades. Em primeiro lugar, não significam tudo e, em segundo, não resolvem as emergências.

A pandemia voltou a se agravar, com o aumento de casos em dezembro. A expectativa de alguns cientistas é de que tenhamos um dos mais tristes janeiros da História.

Respondendo a uma pergunta do deputado Ivan Valente (PSOL-SP), a comissão do governo encarregada do tema afirmou que não havia previsão de uma segunda onda de coronavírus no País. Isso significa que a existência real de uma segunda onda, agravada pelos excessos das festas de fim de ano, vai se desenrolar diante da indiferença do governo em Brasília.

Nessas circunstâncias, a vacina e a retomada verde não produzem um milagre. O caso da Inglaterra revela como o processo de vacinação, sobretudo na fase inicial, não transforma a realidade.



Os ingleses já estão usando dois tipos de vacina, Pfizer e Oxford, mas foram obrigados a decretar de novo um lockdown. De certa forma, tudo se paralisa de novo. Pesou na decisão inglesa a existência de uma nova cepa do coronavírus com capacidade de contaminação, segundo os cientistas, 70% maior que as outras.

No Brasil, por falta de recursos, há menos pesquisas genéticas sobre os tipos de corona que circulam entre nós. Mas, de qualquer maneira, os ingleses reagiram não somente porque havia uma nova cepa, e sim porque havia um aumento substancial de casos.

É o que acontece no Brasil, um aumento de casos. Ao negar a existência de uma nova onda, o governo prossegue na sua posição inicial de negar a importância da pandemia, justamente quando chegamos ao patamar de 200 mil mortos.

Assim como sua inércia pode enfraquecer o estímulo que a imunização nos trará, a incompetência mais ampla transformou o processo de vacinação brasileiro num drama patético. Os órgãos de imprensa no Brasil conseguiram criar um consórcio que informa o número diário de mortos e contaminados. Ainda não é possível, todavia, mostrar com clareza todos os meandros desse labirinto que é o futuro processo de vacinação no Brasil.

O presidente Bolsonaro é o único estadista no mundo a ter uma visão negativa da vacina. Sua posição, revelada inúmeras vezes, é a de investir em remédios. Ele também é o único a suspeitar que a vacina traga efeitos adversos, até mesmo transfigurando a pessoa em jacaré.

Ele não tem força para negar totalmente a vacina. Contenta-se em empurrar com a barriga. Isso nos coloca diante de uma encruzilhada. Será preciso simultaneamente realizar o processo de vacinação e cobrar de Bolsonaro sua responsabilidade histórica.

Para que isso se concretize de forma mais eficaz é preciso uma aproximação da sociedade, do Parlamento, da Justiça, todos com uma visão clara de como pressionar e, simultaneamente, colher as peças de acusação.

Se Bolsonaro é o principal adversário da prioridade número um, o que dizer da outra, a retomada verde?

Nunca houve na História recente tamanha disponibilidade de capitais, uma conjunção de políticas públicas tão favoráveis ao desenvolvimento sustentável. Trilhões estão à espera de boas oportunidades para investimento em recursos naturais. Vê-se hoje nos jornais algo que era difícil no passado. O interesse de Wall Street pelo Rio Colorado, por exemplo.

Os recursos naturais, que ontem eram vistos apenas como um acessório da produção, passam a ser considerados importantes fontes de riqueza. E apesar de suas dificuldades momentâneas, o Brasil, assumindo-se como potência ambiental, tem diante de si um tipo de futuro muito mais promissor do que os constantes voos de galinha.

Mas esbarramos de novo no grande obstáculo: Bolsonaro. Ele tem uma visão de crescimento econômico típica do século passado. Na verdade, talvez não a tenha muito articulada, mas reage às aspirações imediatistas de alguns produtores rurais que o apoiam.

Esse é o quadro do conflito em 2021. Bolsonaro segue negando a emergência na pandemia, arrasta o processo de vacinação e fecha o Brasil para as imensas oportunidades de investimento externo.

Portanto, é um ano que pede muita sabedoria tática. Ela implica pressão para que as prioridades nacionais sejam cumpridas e, ao mesmo tempo, confronto com o grande obstáculo. Como são questões de vida ou morte, até determinando nosso nível de mobilidade, de associação, de presença física, não é possível dissociá-las.

A campanha pela vacina é, ao mesmo tempo, uma campanha contra a indiferença de Bolsonaro. A tentativa de preservar nossos recursos naturais e transformá-los em nossa máxima riqueza passa por denunciar a política destrutiva de Bolsonaro.

Quando existe um obstáculo tão nítido diante de nós, é possível que exista também a possibilidade de ignorar pequenas diferenças, ressentimentos, vaidades. Que a força da vida nos guie a todos em 2021.

Complexo vira-lata


Bolsonaro consegue superar os delírios e os devaneios de Trump
Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, Rodrigo Maia

O normal e o patológico

O ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, numa longa entrevista coletiva de sua equipe — na qual falou muito e foi embora sem responder perguntas —, anunciou a intenção de compra de 100 milhões de doses da vacina CoronaVac, de origem chinesa, produzida pelo Instituto Butantan, do governo de São Paulo, com o propósito de iniciar a vacinação dos grupos de risco, primeiramente, o pessoal da área de saúde. Aproveitou a ocasião para criticar duramente a imprensa, acusando a mídia de não se ater aos fatos e fazer interpretações fantasiosas sobre a atuação do governo e a sua própria no combate à pandemia.

Ao cobrar objetividade da imprensa, Pazuello tangenciou um universo que, talvez, tenha estudado na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, por onde passam oficiais de alta patente: a sociologia. É uma disciplina desprezada pelo presidente Jair Bolsonaro, ao qual, diga-se de passagem, se aplicariam com perfeição as críticas que fez à interpretação dos fatos relacionados à pandemia por parte dos jornalistas. Émile Durkheim, o pai da sociologia moderna, foi o primeiro a defender a objetividade dos fatos sociais, ou seja, sua externalidade em relação ao observador, como pilar metodológico de estudo das sociedades.



A grande sacada de Durkheim foi distinguir o fato social normal — aqueles que decorrem do desenvolvimento da sociedade dentro de uma norma comum, um padrão que visa o aprimoramento dos indivíduos e a manutenção da coesão e da vida em sociedade — do patológico. O fato social normal observa a ordem institucional, a vida individual mantém em funcionamento os laços solidários que unem os indivíduos de um grupo. O fato social patológico desenvolve-se fora da norma, como uma doença. Ele é perigoso, e quando atinge uma dimensão maior, pode afetar negativamente a sociedade.

Quando uma sociedade é tomada pela criminalidade e pela violência, como o Rio de Janeiro, ou regiões de periferia de outras cidades, como o Sol Nascente, aqui no Distrito Federal, é possível dizer que há um fato social patológico, que foge da normalidade esperada por uma sociedade. Durkheim partiu do pressuposto de que as sociedades apenas se mantêm coesas quando, de alguma forma, compartilham sentimentos e crenças comuns, mas, também, compreendeu que os povos não são, necessariamente, superiores uns aos outros, apenas são diferentes em sua estrutura, seus valores, seus conhecimentos, sua forma organizacional.

Em razão disso, estabeleceu alguns pressupostos: (1) os fatos sociais devem ser tratados como coisas; (2) a análise dos fatos sociais exige reflexão prévia e fuga de ideias preconcebidas; (3) o conjunto de crenças e sentimentos coletivos são a base da coesão da sociedade; (4) a própria sociedade cria mecanismos de coerção internos que fazem com que os indivíduos aceitem, de uma forma ou de outra, as regras estabelecidas; (5) a explicação dos fatos sociais deve ser buscada na sociedade e não nos indivíduos. Os estados psíquicos, na verdade, são consequências e não causas dos fenômenos sociais, daí serem objeto de outras ciências, como a antropologia, nos casos coletivos, ou a psicologia e a psiquiatria, nos casos individuais. Loucos no poder, como Nero, Hitler e — por que não? —, Donald Trump, porém, são um problema político.

Pazuello prestou contas das negociações para compra de vacinas, seringas e agulhas, defendendo-se da acusação de atraso nas aquisições. Estariam assegurados 2 milhões de doses de vacinas da AstraZeneca importadas pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); 100,4 milhões de doses da Fiocruz/AstraZeneca até julho (produção nacional com ingrediente farmacêutivo ativo (IFA) importado; 110 milhões da Fiocruz/AstraZeneca (produção integral nacional) de agosto a dezembro; 42,5 milhões (provavelmente da AstraZeneca) a serem adquiridas por meio do mecanismo internacional Covax/Facility; e 100 milhões de doses do Instituto Butantan. No total, afirmou que o Brasil tem assegurados 354 milhões de doses de vacinas para 2021, mas não disse quando começa a vacinação em massa da população.

“Na hipótese média, estaríamos do dia 20 de janeiro ao dia 10 de fevereiro. Contamos aí com as vacinas produzidas no Brasil, tanto no Butantan quanto na Fiocruz. E, na hipótese mais alongada, a partir do dia 10 de fevereiro até o começo de março, que seria caso os registros e produção tenham quaisquer percalços”, disse Pazuello. Jornalistas não são sociólogos, mas foram treinados para distinguir um tigre de um elefante, mesmo sem saber sua anatomia. O problema de Pazuello — vamos deixar o presidente Jair Bolsonaro de lado — foi tratar como “coisa” normal a escalada da pandemia no Brasil, que já registra 200 mil mortos por vítimas da covid-19. Trata-se de uma patologia. Por ora, objetivamente, nem o ministro nem os brasileiros sabem quando começa a vacinação.

Vândalos da democracia

Se ainda havia dúvidas, as inacreditáveis cenas do assalto ao Capitólio, sede do Poder Legislativo dos Estados Unidos, ocorrido na tarde de quarta-feira passada em Washington, confirmaram de forma cabal o perigo da política de ressentimento estimulada pelo chamado tecnopopulismo, do qual o presidente americano, Donald Trump, é o maior expoente.

Atônitos, milhões de pessoas em diversos países puderam acompanhar em tempo real os danos que vândalos da democracia como Trump e seus imitadores mundo afora são capazes de causar. Eles vão muito além do estímulo à polarização política e à subversão da verdade factual nas redes sociais, o que já seria grave por si só. O ódio que essas lideranças populistas promovem contra as instituições democráticas, o que chamam de “sistema”, a diversidade e todos que não pertençam ao “povo” encarnado pelo líder ungido, se traduz em violência e morte.

Enquanto o Congresso dos Estados Unidos realizava uma sessão conjunta para certificar a eleição de Joe Biden como o 46.º presidente americano, um ato que em condições normais seria meramente protocolar, o presidente Donald Trump proferia um de seus mais virulentos discursos contra o que chamou de “eleição roubada”. Furioso porque seu vice, Mike Pence, simplesmente decidiu cumprir a Constituição e se recusou a participar da sedição que o manteria no poder, Trump afirmou que “jamais aceitaria” a derrota e insuflou uma horda de extremistas a “lutar” de forma “patriótica” contra a “fraude” da qual diz ser vítima.

Não houve fraude alguma na eleição presidencial dos Estados Unidos. Trump não passa de um mau perdedor e, a partir de agora, de um golpista malsucedido. Sua manutenção no poder, ainda que por mais poucos dias, representa um enorme perigo. Donald Trump deve ser impedido ou retirado da presidência de acordo com a 25.ª Emenda à Constituição americana, que prevê que o presidente pode ser destituído por incapacidade de desempenhar suas funções após uma declaração conjunta de seu vice e da maioria dos membros de seu Gabinete.

 


A responsabilidade pelo que aconteceu em Washington é exclusiva de Trump. “Palavras de um presidente têm peso”, disse o presidente eleito, Joe Biden. “Hoje vimos de um jeito duro o quão frágil é a democracia. Para preservá-la são necessárias pessoas de boa vontade e líderes com coragem, que se dediquem não a perseguir o poder e os interesses pessoais a qualquer custo, mas sim o bem comum”, disse o presidente eleito.

Controlada a invasão do Capitólio pelos radicais trumpistas – um rematado ato de terrorismo doméstico que culminou na morte de pelo menos 4 pessoas e na prisão de mais de 50 –, o Congresso retomou a sessão conjunta e certificou a decisão do Colégio Eleitoral, que em 14 de dezembro elegeu a chapa democrática formada por Joe Biden e Kamala Harris. A posse ocorrerá no próximo dia 20.

No final, a secular democracia americana resistiu à infame tentativa de sublevação insuflada por Trump e da qual fizeram parte alguns senadores republicanos, como Ted Cruz, Josh Hawley e Ron Johnson. Mas o abalo seguramente foi sentido em democracias mundo afora.

O presidente Jair Bolsonaro, do tugúrio de onde expele fartas doses de mentiras e de veneno antiliberdades, voltou a prestar apoio a Trump e a dizer que a eleição americana foi “fraudada”, tal como a eleição brasileira em 2018, cantilena que repete sem apresentar provas. O presidente brasileiro afirmou que, “se tiver voto eletrônico no Brasil em 2022, vai ser a mesma coisa lá dos Estados Unidos” (sic). Se Bolsonaro não se conforma com o sistema eleitoral do País, que tente mudá-lo de acordo com as regras do jogo democrático. Se não conseguir e continuar inconformado, que renuncie à Presidência e deixe a ribalta, que não participe de um jogo de cujas regras discorda.

Como ele não tem estofo para isso, que as declarações temerárias sirvam de alerta para as autoridades brasileiras quanto ao risco de o presidente repetir no Brasil daqui a dois anos a intentona de seu ídolo americano.