Partido foi aos poucos adotando o modelo econômico que estava no seu programa original, com intervenção estatal, expansão desmensurada do gasto públicoAs falhas inerentes ao ser humano nos atormentam desde os tempos mais remotos. Para os que não conseguem conviver com tal realidade, a infalibilidade, pessoal ou doutrinária, aparece como um antídoto que torna possível a negação de fatos evidentes. Esse antídoto foi utilizado pelos faraós do Egito, que avocaram para si o título de infalíveis, e pelos papas da Igreja Católica, que eram infalíveis no tocante à interpretação do que seria a vontade de Deus servindo-se de um arcabouço teológico e doutrinário.
No mundo moderno, a infalibilidade no campo das doutrinas políticas foi o estado de espírito que animou os regimes totalitários nazista e comunista. Hitler, apoiado na mitologia pangermânica, acreditava-se imbuído da missão de resgatar uma raça pura e superior a todas as demais raças. Em nome dessa missão caberia, não somente ao aparato paramilitar da SS, mas também aos seus “carrascos voluntários”, eliminar de forma sistematizada judeus, deficientes físicos, homossexuais, ciganos etc., com o objetivo de construir um Reich de mil anos. De outro lado, o totalitarismo comunista, ao apresentar-se como redentor das classes oprimidas, tratou de aniquilar, e com uma forma mais sofisticada que o nazismo, todos aqueles que possuíam uma identidade coletiva que pudesse estar em desacordo com o novo “homem soviético”. A infalibilidade doutrinária nazista e comunista se baseou e ainda se baseia na negação da História e na negação de falhas na concepção filosófica. Neonazistas contemporâneos negam o holocausto. A esquerda, principalmente depois da revelação dos crimes cometidos pelo stalinismo, negou que o socialismo real tenha sido fiel à doutrina marxista, assim como o Papa Bento XVI tentou recentemente revigorar a Igreja Católica buscando o núcleo duro da teologia produzido por doutrinadores como Santo Agostinho.
De forma mais atenuada, o PT vive esse dilema — digo atenuada porque seria um exagero atribuir a este partido o rótulo de totalitário —, que consiste em tentar atribuir sua crise atual a um desvio das suas origens como partido de classe. Esse caminho de busca pelas origens demonstra que as falhas não estão na concepção filosófica original, e sim no afastamento delas.
Já foi apontada por uma vasta literatura a originalidade representada pelo PT no cenário partidário brasileiro do final do regime militar. Partido formado por laços orgânicos em que se abrigaram sindicalistas, Comunidades Eclesiais de Base e intelectuais, o PT lutou contra a ditadura, mas sempre se mostrou arredio com relação à adesão às regras do jogo democrático. A “democracia representativa” ou a “democracia burguesa” era vista como um instrumento para alcançar uma democracia substantiva, o que unia na legenda uma multiplicidade de vertentes marxistas.
Após três derrotas consecutivas nas eleições presidenciais, sob o comando de José Dirceu, o PT fez uma inflexão ao centro e lança mão da “Carta ao povo brasileiro” e busca uma aliança “estratégica” com setores da direita que foram apoiadores do regime militar. Com o escândalo do mensalão, logo se percebeu que essa inflexão ao centro era meramente uma estratégia eleitoral. O PT, com seu desprezo pelo jogo democrático, usou da corrupção das instituições representativas para não precisar partilhar o poder. Com o escândalo denunciado de dentro, e com um quadro econômico favorável, o PT foi aos poucos adotando o modelo econômico que estava no seu programa original, com intervenção estatal, expansão desmensurada do gasto público e o desmantelamento das agências reguladoras. E ainda, fazendo jus à megalomania populista, lançou mão da construção de “estranhas catedrais”.
Gustavo Müller