segunda-feira, 6 de abril de 2020

Estupidez não é com Ele

Se Ele existe, é inteligente e grande. E, se é inteligente e grande, despreza os estúpidos e pusilâmines
Andrzej Szczypiorski

Bolsonaro rompe o cordão sanitário montado para contê-lo

Em versão light de fim de semana (do mais recente porque nem sempre é assim), o presidente Jair Bolsonaro repetiu sem levantar a voz tudo o que vinha dizendo até que os ministros militares que o vigiam de perto, mas que não conseguem domá-lo, riscaram uma linha que ele não deveria ultrapassar, mas que ultrapassou.

O presidente usou um encontro com devotos evangélicos à saída do Palácio da Alvorada para voltar a atacar governadores, “mas não todos” como fez questão de sublinhar, a imprensa que não perde uma chance de malhá-lo e, indiretamente, o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, sua mais nova obsessão.

Enquanto ouviu o que ele dizia, o general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, passou a mão na cabeça mais de uma vez como se pensasse que aquele não era o script combinado. Se não foi por isso, pode ter sido pelo vento que soprava na direção de suas costas despenteando sua rala cabeleira.


A recaída de Bolsonaro desatou uma série de manifestações dos que rezam por sua cartilha ou fazem sua cabeça. Abraham Weintraub, ministro da (des)Educação, entrevistado ao vivo no Facebook pelo deputado Eduardo Bolsonaro, retomou os ataques da ala ideológica do governo à China. Disparou ao seu modo tosco: "Eles têm contato com um monte de bicho que não é pra comer. E comem. E têm muito contato com porco e frango. Nos próximos 10 anos virá outro vírus desses da China? Probabilidade é alta".

O autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho valeu-se das redes sociais para novamente a bater sem piedade no general Hamilton Mourão: “Lembro-me de haver promovido, na modesta medida das minhas possibilidades, a escolha do general Mourão para vice-presidente. Mais uma cagada numa vida já tão repleta delas”.

Não ficou só nisso. Sobrou ainda para Mandetta, os militares e até Bolsonaro:

“O Punhetta é o exemplo típico do que acontece quando um governo escolhe seus altos funcionários por puros "critérios técnicos", sem levar em conta a sua fidelidade ideológica. O que os comunistas mais desejam é que o adversário tente vencê-los fugindo da briga ideológica. Os militares de 1964 fizeram exatamente essa cagada”.

Para seu desgosto recém-filiado ao PT e ao PSOL, uma vez que tornou público os números de sua carteira de identidade e CPF e os engraçadinhos logo disso se aproveitaram, o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, atirou no governador do Maranhão e acertou no próprio pé. Disse:

“Flávio Dino, governador do Maranhão, creditou ao presidente Bolsonaro os 300 óbitos do Covid-21. Sempre acreditei, pelo passado histórico, que comunistas são seres alienados, sonsos, insensíveis e insensatos. Atitudes como essa confirmam esse perfil”.

Após cerca de duas horas no ar, tempo necessário para ser copiado pelos interessados, o comentário foi apagado. Dino (PC do B) não creditou morte alguma a Bolsonaro. E o Covid em questão é o 19, não o 21. Salvo se o general, responsável pelo setor de inteligência do governo, saiba de algo que prefira esconder por enquanto.

Foi um fim de semana e tanto no âmbito e nas cercanias de um governo que parece não ter mais o que fazer a não ser chamar a atenção para a sua inutilidade e sabotar os esforços dos que enfrentam a mais grave pandemia dos últimos cem anos. Os próximos 10 dias se encarregarão de demonstrar isso.

Não, não vai tudo ficar bem

Dia 22.

Desculpem-me, mas não consigo repetir a frase “porreirista” do momento. Não consigo sequer dizê-la aos meus filhos, ou incentivá-los a que a usem e muito menos que a pintem em desenhos fofinhos. Não gosto, nunca gostei, de responder às crianças com outra coisa que não seja a verdade. E a verdade hoje é muito mas negra do que o arco-íris que fica bem mostrar ao mundo.

A visão unicórnio da pandemia, repetida mesmo ad nauseum nas televisões em mensagens a pensar nas audiências, é só bonita para quem está em casa, sentado no sofá, ligeiramente entediado por não ter mais séries de Netflix para ver, mas a quem o salário continua a cair, como de costume, direitinho na conta ao fim do mês. Para os que estão tranquilos no seu confinamento, sem problemas de maior, só com o aborrecimento de não poder sair de casa durante um Estado de Emergência que lhes trocou as voltas e os planos para as férias da Páscoa.

Normalmente são também esses os que dizem que de tudo isto vai nascer um mundo muito melhor. Que a Covid-19 resolverá todos os males do planeta, que acabará tanto com o egoísmo humano como com o aquecimento global e outras conversas de auto-ajuda new age 2020. “Isto até tem sido bom para as famílias, ficam mais tempo juntas, fazem desporto”, oiço um ator dizer num canal noticioso enquanto escrevo estas linhas…

Mas são tantos, tantos, os que não têm a mesma sorte. Bom?!

Conheço empresários que não sabem como vão pagar salários aos funcionários já no fim deste mês e quanto tempo se aguentam sem faturar. Tenho duas primas e uma grande amiga que já foram colocadas em lay-off. Os meus familiares que trabalham no teatro não sabem quando, alguma vez, vão ver as salas – o seu ganha-pão – reabertas. Outros amigos têm restaurantes e estão com a corda na garganta, a tentar sobreviver. Para não falar dos freelancers: designers, arquitetos, produtores, jornalistas que conheço, que ficaram sem mercado, sem negócio e sem salário, com uma mão atrás e outra à frente. Um vizinho fazia casamentos e agora viu todas as festas adiadas sem dia marcado. Uma amiga trabalhava em grandes eventos e vai ficar pelo menos um semestre parada. Um primo está a fazer contas à vida porque o contrato, renovável, termina em Agosto. Um outro vivia de alugar casas no Airbnb e não sabe como vai refazer a vida nos próximos meses. Uma amiga de infância está muito doente e fragilizada, não pode de maneira nenhuma apanhar a Covid-19.

Para todos estes, que são só uma pequena amostra à minha volta, não lhes venham com a conversa do “vamos todos ficar bem”. Não, não vamos.

Mais de 22 mil empresas já recorreram ao regime para evitar encerramentos e despedimentos de trabalhadores. O número de portugueses em lay-off já supera o do desemprego. O PIB nacional vai garantidamente afundar este ano para território negativo: 2%, 3%, mais? É difícil de prever.

Estamos mergulhados numa aflição sem precedentes, a tentar mantermo-nos à tona enquanto o tsunami leva tudo à sua frente. Quando isto passar, vamos tentar resgatar quem sobreviveu, limpar os destroços e levantar um novo País dos escombros. Há, claro, coisas boas e bonitas, como há sempre mesmo no meio do caos e da calamidade.

Mas bem, garantidamente, não vamos ficar. Melhor ou pior, haveremos de sobreviver.

Brasil, parquinho da 'famiglia'


Que diria Susan Sontag sobre a Covid-19?

Quando a escritora americana Susan Sontag descobriu que tinha câncer, fez o que intelectuais como ela fazem nesse tipo de situação: pôs-se a escrever. O resultado, publicado em 1978 na "New York Review of Books", é um de seus ensaios mais conhecidos, sagazes e profundos: "Doença como metáfora". Em 1989, quando a aids devastava o planeta sem perspectiva de tratamento, veio o capítulo seguinte: "Aids e suas metáforas". Em ambos, Sontag desmonta a lógica perversa com que tratamos as doenças ao longo da história, expõe as metáforas subliminares usadas para transformar doentes em culpados pelo próprio mal, traduz a linguagem empregada para estigmatizá-los, isolá-los, afastá-los — e para nos manter distantes do mundo da morte. Sua crítica ao modo como nossa mente lida com a tuberculose, o câncer e a aids permanece viva e essencial. Que diria Sontag — que morreu de outro câncer, há 15 anos — sobre a Covid-19?


Parte da resposta está lá em seus escritos de 30 e 40 anos atrás. A infecção pelo novo coronavírus mistura, em nossa imaginação, ingredientes das doenças anteriores. Como o câncer, é insidiosa e sub-reptícia no modo como se espalha pelo corpo. Como a aids, é causada por um vírus misterioso, um mutante genético imperscrutável. Como o câncer, tem um caráter “primitivo”, “invasivo”, “coloniza” os pulmões. Como a aids, dribla as “defesas” do organismo, sem que ele possa controlar seu destino. Como o câncer, mobiliza recursos de inspiração militar, fala-se que vivemos uma “guerra”. Como a aids, espalha o terror dos resultados “positivo” e “negativo” nos exames. Como o câncer, está vinculada à vida moderna em cidades superpovoadas, ao desdém pela natureza, a produtos artificiais. Como a aids, atinge um grupo de risco, aqueles a quem será preciso manter isolados, protegidos não pelo “sexo seguro”, mas pelo “distanciamento social”. Como no caso do câncer, circula a máxima de que “o tratamento é pior que a doença” — para a economia, não para o paciente, já que, como no caso da aids, não há tratamento para quem der azar e se tornar “vítima” da variante mais severa e letal.

Os demais, em particular as crianças, não estão a salvo. Sentirão doravante a culpa de se tornar transmissores sem saber. Sem ter sintomas, sem fazer nada, guardarão o estigma do contágio por um reles abraço, aperto de mão ou beijo inocente. Onde câncer e aids espelhavam o fracasso de sociedades movidas pelo excesso, a Covid-19 traz o espectro do afastamento, das fronteiras fechadas, dos freios à globalização, do nacionalismo, do chauvinismo, dos rostos cobertos por máscaras, do adeus ao mundo em que, nas palavras do escritor católico Paul Elie, “viajamos para toda parte de avião, mas paramos de lavar as mãos”. A epidemia, ao contrário do que Sontag escrevia há três décadas, voltou a ser uma prova de caráter, como as pestes de outrora. A própria palavra “vírus”, a exemplo da palavra “câncer”, se tornou metáfora antes mesmo de a pandemia ser uma ameaça real. Em vez do “câncer” a representar o mal supremo que precisa ser extirpado — comparação “crassa” no entender de Sontag —, o “vírus” é o exemplo do mundo sem fricção, do “contágio” espontâneo via computadores e redes sociais.

O risco de tratar doenças como metáforas é esquecer os doentes e evitar o único tipo de discurso que pode aliviá-los ou curá-los: a discussão científica racional. “Meu ponto é que a doença não é uma metáfora, e a forma mais verdadeira de encará-la — e a mais saudável de ficar doente — é a mais resistente ao pensamento metafórico”, escreveu Sontag. Por uma dessas ironias que não escapam ao leitor atento, nem ela resistiu. Na primeira linha de seu ensaio, lança mão de uma metáfora: “A doença é o lado noturno da vida, uma cidadania mais onerosa. Cada um nasce com dupla cidadania, no reino dos sadios e no reino dos doentes. Embora todos prefiramos usar apenas o passaporte bom, cedo ou tarde cada um de nós é obrigado, nem que por um breve período, a nos identificar como cidadãos desse outro lugar”. É para lá que milhões deverão rumar nos próximos meses. Nem todos voltarão.

Armas do século XIX contra a pandemia do XXI

A última grande pandemia de gripe aconteceu em 1968 e matou um milhão de pessoas. Muitas das vítimas da atual Covid-19 a viveram. “Que triste que, apesar de todos os avanços médicos obtidos desde então [...], os tratamentos que podemos oferecer aos pacientes em muitas áreas atingidas pela Covid-19 sejam os mesmos que teríamos adotado há mais de 50 anos”, confessam os médicos John Hick e Paul Biddinger, especialistas em emergências médicas das universidades de Minnesota e Harvard, em um artigo recente publicado em uma das revistas médicas de maior prestígio do mundo.

É mais que isso: as principais armas com as quais o mundo luta hoje contra a pandemia de coronavírus remontam ao século XIX. Ao contrário do que se possa pensar, não há razão para deixar de usá-las.

A primeira pandemia do século XXI, a SARS (síndrome respiratória aguda grave, na sigla em inglês), também foi causada por um coronavírus, o SARS-CoV, que foi o primeiro grande vírus impulsionado pela globalização. Pulou para os humanos das civetas e de outros mamíferos vendidos em mercados úmidos da China. O vírus se espalhou pelo mundo a bordo de voos comerciais, chegando a 29 países. Durante os 20 meses de duração da epidemia, mais de 8.000 infecções e quase 800 mortes foram confirmadas. São números que em janeiro ―há apenas dois meses― ainda pareciam longínquos, mas agora ficaram para trás como um algo praticamente insignificante. Só na Espanha, a Covid-19 mata mais pessoas por dia do que a SARS em toda a sua história.

Contra a SARS “os Estados aplicaram medidas do século XIX, como o monitoramento dos contatos de cada infectado, a quarentena e o isolamento social”, lembra o médico japonês Shigeru Omi, chefe da OMS na Ásia durante a pandemia, em um livro sobre como se conseguiu acabar com aquele vírus.

Autoridades inspecionam grupo de socorristas em Chicago, em 1918
Também foram adotadas pela primeira vez medidas do século XXI, como o sequenciamento genético do vírus. O vírus responsável pela epidemia foi identificado, mas “não foi acrescentado nada substancial à contenção, principalmente porque faltavam testes de diagnóstico”. Ao todo, o papel desempenhado por esta “ciência do século XXI” na contenção do agente patogênico “foi menor”, explica o livro, editado pela OMS.

Embora seja impossível saber o resultado da atual pandemia, tudo indica que agora também serão as medidas clássicas que acabarão com a epidemia, reconhece o enfermeiro Luis Encinas, que trabalha para os Médicos sem Fronteiras (MSF) desde 1994 e viveu algumas das piores epidemias de ebola na África. Ele integra agora o conselho consultivo dos MSF contra a Covid-19. “Por enquanto, não há outra forma de conter o vírus, não temos outras medidas no curto prazo”, explica. “Mas nem mesmo o isolamento será suficiente. É como se você se jogasse no fundo de uma piscina para evitar um tiroteio. Você pode se salvar, mas se as balas continuarem por muito tempo, você tem de sair de novo e agir”. O enfermeiro lamenta que nem Espanha nem muitos outros países tivessem pronta uma estratégia a seguir em caso de pandemias, com medidas de ação para curto, médio e longo prazo.

“Desta vez tivemos sorte”, dizia outra das grandes lições que a OMS tirou da epidemia de SARS. Conter aquele vírus foi muito mais fácil do que agora. Os infectados só eram contagiosos quando começavam os sintomas, principalmente a febre, por isso podiam ser identificados com um simples termômetro, e a expansão do vírus pôde ser contida internando-os e colocando seus contatos em quarentena. “O agente patogênico se movia melhor dentro dos hospitais do que fora, por isso foi mais fácil contê-lo”, recorda Isabel Sola, microbiologista do Centro Nacional de Tecnologia da Espanha (CNB-CSIC). “Além disso, o animal que tinha originado a zoonose foi identificado rapidamente e os contatos com humanos foram radicalmente evitados”, lembra.

A outra tecnologia mais necessária no momento, os testes rápidos de anticorpos, também não é uma tecnologia de ponta do século XXI, requerem apenas métodos que foram aperfeiçoados no século XX. “A única coisa necessária para fazer um teste rápido é ter a capacidade de criar uma tira, um suporte físico no qual colocar o fluido e que indique se há infecção, algo ao alcance de muitas empresas de biotecnologia”, explica Sola.

Os infectados pelo SARS-CoV-2, o novo coronavírus, podem passar dias, até mesmo semanas, sem nenhum sintoma. Durante esse tempo, podem espalhar o vírus por onde forem. Esses infectados nunca detectados pelas autoridades provavelmente explicam a rápida expansão da pandemia na China, Itália e Espanha, e mostram como será difícil contê-la.

Para alguns especialistas, o mais provável é que não se consiga deter esta epidemia antes que o vírus tenha contagiado cerca de 60% da população. A estratégia seguida agora por países como a Espanha é tentar fazer com que essas infecções não aconteçam de uma só vez, e sim ao longo de meses, para evitar o colapso total dos hospitais. Enquanto isso, as velhas medidas do século XIX continuam salvando vistas. Uma projeção matemática do Imperial College de Londres calcula que as medidas de isolamento salvaram 16.000 vidas só na Espanha, quase 60.000 em toda a Europa, embora as margens de erro sejam altas.

“Nossas melhores armas continuam sendo o acompanhamento de todos os contatos que uma pessoa infectada teve, embora humanamente seja muito difícil fazer isso sem alta tecnologia”, afirma Ildefonso Hernández, porta-voz da Sociedade Espanhola de Saúde Pública. “De qualquer forma, as grandes contribuições científicas e tecnológicas que forem conseguidas, como os tratamentos e as vacinas, só estarão disponíveis, com sorte, para a próxima onda de coronavírus”, ressalta.

O novo coronavírus se espalha tão rápido e há tantas pessoas suspeitas de infecção que é impossível rastrear sua propagação à mão, como se fazia até agora. Pesquisadores da Universidade de Oxford desenvolveram um modelo matemático segundo o qual até metade dos contágios pelo novo coronavírus se devem a indivíduos não diagnosticados e sem sintomas aparentes. O número é semelhante ao observado em Cingapura (42%) e na China (62%). A única forma de derrotar um vírus tão invisível é usar um sistema automático que calcule quanta pessoas estiveram perto do indivíduo infectado durante dias, recorrendo, para isso, ao GPS dos celulares, explicaram pesquisadores esta semana na revista Science. Isso seria feito à custa, é claro, de sua privacidade e de sua liberdade individual, pois essas pessoas teriam de ficar obrigatoriamente de quarentena. E isso sem levar em conta os obstáculos burocráticos e legais que poderiam impedir que algo assim fosse posto em prática em boa parte do mundo.

O aparente sucesso de países como China, Coreia do Sul e Cingapura na contenção do SARS-CoV-2 se explica em parte porque depois da SARS e da MERS (síndrome respiratória do Oriente Médio), outro coronavírus que pulou de camelos para humanos em 2012 e continua ativo, eles sabiam que era preciso agir depressa. Mas o caso mais paradigmático no Sudeste Asiático é o do Vietnã, um país com menos recursos, que em fevereiro anunciou ter contido a pandemia. Todos os infectados se curaram. Nenhum habitante morreu. Mas foi uma vitória de pirro que prenuncia o que pode ocorrer com muitos outros países a partir de agora. No início deste mês, as autoridades vietnamitas reconheceram 35 novos casos, todos importados por avião, e os últimos dados indicam que já há 154 casos ativos. O Vietnã foi um dos países que agiu de forma mais rápida e decidida contra a SARS em 2003. Havia aprendido a lição.

Da epidemia de SARS, a OMS não se cansou de alertar o mundo de que talvez na próxima não houvesse tanta sorte. Em seu último relatório sobre o nível de preparação mundial para pandemias, de 2019, alertou: “O mundo não está preparado para uma pandemia viral respiratória de rápida expansão. A gripe de 1918 adoeceu um terço da população mundial e matou 50 milhões de pessoas. Se uma pandemia similar ocorresse hoje, com uma população quatro vezes maior que a daquela época e com tempos de viagem de menos de 36 horas para qualquer ponto do globo, até 80 milhões de pessoas poderiam morrer”.

Em termos econômicos, é muito lucrativo estar preparado. As perdas por uma pandemia alcançam 60 bilhões de euros (344 bilhões de reais) anuais, segundo um dos maiores painéis de especialistas internacionais no assunto, reunidos em 2016 pela Academia Nacional de Medicina dos EUA. Estar preparado para combatê-la em nível internacional custaria apenas 4,5 bilhões de euros (26 bilhões de reais) ao ano. Seria um dinheiro bem gasto, argumentam, pois permitiria não só conter vírus emergentes, como também combater a resistência a antibióticos, um problema que pode nos devolver à idade Média mais rápido do que imaginamos.

Coronavírus evidencia que cartilha de Bolsonaro é delírio de loucura

“Victor Hugo era um louco que se julgava Victor Hugo”, disse Jean Cocteau. Com pequenas adaptações, o chiste se presta para definir o atual ocupante do Palácio do Alvorada: Jair Bolsonaro é o mito inventado por um bando de malucos.

Analistas, por dever de ofício, devem decifrar o comportamento dos políticos, conferindo racionalidade a seus atos. A tentação de atribuir cálculo ao presidente tresloucado é enorme. Diz-se que há método na loucura, que tudo não passa de encenação meticulosamente arquitetada.

Dizer que está mirando 2022 não é senão reafirmar o óbvio. Que político não tem olho voltado para os eleitores e para as próximas eleições? E Bolsonaro nunca escondeu que só pensa em sua reeleição, que esta é sua única preocupação e que, para tanto, precisa abater toda e qualquer liderança, no seu governo ou fora dele, que possa lhe fazer sombra.

Comprou briga com João Doria e Wilson Witzel porque os dois podem enfrentá-lo no futuro. Disto não se duvida. A questão é se fez as escolhas certas e se o seu comportamento destemperado lhe renderá votos.

Para dizer o mesmo de outro modo: para ser reeleito, o presidente tem que cumprir o que prometeu. Mesmos os mais fiéis, mesmo os que acreditam em mitos, precisam ser satisfeitos. E é aí que entra o coronavírus.


O destempero e a insensatez não são novidades. Bolsonaro sempre foi e será assim. O cavalão, como era conhecido no Exército, é indomável. A novidade é o desespero.

A reeleição que dava por assegurada está indo para o ralo com a desorganização da economia. As perspectivas já não eram as melhores antes da epidemia; as promessas da retomada do crescimento não passavam disso, de promessas.

Mas Paulo Guedes (ministro da Economia), tanto quanto Bolsonaro, acredita no mito que criou para si mesmo, o de que seria simples resolver os problemas econômicos do país. Rebento do neoliberalismo original, aluno de Milton Friedman, o ministro acredita que basta diminuir o Estado para que o Brasil experimente um novo surto de crescimento.

O nó da questão estaria na regulação excessiva a tolher a iniciativa empresarial virtuosa. Para a Escola de Chicago, tudo quanto o Estado faz é atender interesses especiais de grupos organizados.

Pode parecer estranho, mas o fato é que o neoliberalismo primitivo tem grande afinidade com o discurso populista. Não por acaso, ao tomar posse, Paulo Guedes encheu os pulmões para dizer que o Brasil era o “paraíso dos rentistas”, que o reino destes verdadeiros parasitas chegaria ao fim.

De forma mais elaborada, em seu discurso de posse, declarou: “Os bancos públicos se perderam em grandes problemas com piratas privados e burocratas políticos. Burocratas corruptos e criaturas do pântano político se associaram contra o povo brasileiro”.

A harmonia do casal Bolsonaro-Guedes foi consumada no altar do populismo, com apelos simplistas em defesa do povo contra elites sanguessugas. Contudo, antes da eclosão da pandemia, Guedes vinha colhendo derrota atrás de derrota. O anúncio do pibinho e das revisões para baixo do crescimento deste ano foram as mais claras delas.

E todos os economistas de prol batiam na mesma tecla: sem reformas não haveria retomada do crescimento. O consenso, contudo, repousava na indefinição da lista de reformas prioritárias e de seu conteúdo. Em um ponto, contudo, quase todos concordavam: a disciplina fiscal não poderia ser abandonada.

E aí veio a pandemia, e qual foi a reposta de Guedes? No mínimo, tão atabalhoada quanto a de seu chefe. Inicialmente, defendeu que não havia motivos para mudar de rumos, que avançar as reformas teria se tornado ainda mais premente. Ou seja, o ministro não viu razões para abandonar a sua cartilha.

Com ou sem pandemia, o remédio seria o mesmo, diminuir o papel do Estado. Quando se convenceu de que alguma medida emergencial seria necessária, só se lembrou de aliviar o lado dos empresários, assinando medida provisória permitindo a suspensão temporária do pagamento de salários.

Enquanto isto, reconhecendo o inusitado da situação, a maior parte dos economistas ouvidos pela imprensa passou a defender programas de transferência de renda para os mais afetados, independente dos seus efeitos fiscais. Momentos extraordinários pediriam medidas excepcionais, e cada um dos entrevistados contribuiu com seu elenco de medidas emergenciais a serem adotadas.

Neste debate, a equipe econômica pouco contribuiu. Foi a voz discordante no novo consenso formado. Guedes saiu de cena, refugiando-se em seu apartamento, ao mesmo tempo em que Bolsonaro armava a sua guerra particular contra o isolamento social e suas repercussões sobre a renda dos trabalhadores impedidos de correr atrás de seu sustento.

Em nenhum momento, tudo indica, sua equipe econômica o instruiu de que havia alternativas, de que os autônomos e desempregados poderiam ser assistidos por programas de transferência de renda.

E se Bolsonaro quer se reeleger, se tem uma estratégia eleitoral, não seria mais apropriado assumir a paternidade dos programas defendidos pelos economistas? A solução da charada é simples: Bolsonaro não o faz porque não é isso o que ouve de seu guru.

Em meio a seu sumiço, o ministro encontrou tempo para se reunir com investidores. Pressionado a se posicionar, afirmou que, como cidadão, apoiava as medidas de isolamento social preconizadas pelo Ministério da Saúde. Por que precisou do adendo “como cidadão”? Qual sua posição como autoridade máxima da política econômica do governo? Evitou entrar em conflito com o chefe ou o apoia?

O fato é que o ministro resistiu o quanto pôde, recorrendo a inúmeros subterfúgios, postergando a entrada em vigor do plano aprovado pelo Congresso. Provavelmente, para parafrasear um de seus ídolos, vê no programa o início do caminho que leva à servidão. Carlos Bolsonaro, com sua sutileza e tato habitual, foi direto ao ponto: quem defende programas deste tipo são os esquerdistas.

A urgência do cenário que se desenha, contudo, recomenda que Bolsonaro e a ideologia que fundamenta seu governo sejam ignorados, como são ignorados os delírios dos loucos e dos que acreditam em mitos. Aplicando a regra usada pelo presidente para identificar seus filhos, não seria inadequado tratá-lo como o zero-zero, isto é, como um zero à esquerda.
Fernando Limongi

Aqui dentro

Há pouco mais de dois meses, quando me disseram pela primeira vez a palavra, julguei ouvir caronavírus, Um vírus que gosta de caronas não pode ser muito mau, gracejei, forçando um sotaque brasileiro. Estávamos a jantar na pizzaria no fim da minha rua. Um dos meus amigos acrescentou, É na China, e outro mostrou imagens no seu telemóvel de hospitais improvisados em pavilhões desportivos. Olhámos para o cenário quase apocalítico da cidade de Wuhan, talvez um de nós tenha dito, Parece coisa de filme, mas logo mudámos de assunto. A China era ainda tão longe. E 2020 estava ali, novinho em folha. A nossa vida seguiria como sempre.

O meu corretor ortográfico continua a sinalizar a vermelho a palavra coronavírus, tratando-a como erro. A linguagem está quase sempre atrasada em relação à vida. Ou então adiantada. Isso pode ser perigoso.

Por estes dias, não consigo raciocinar como deve ser, muito menos pensar histórias. Uma coisa e outra exigem um fio invisível que ligue com alguma coerência o princípio e o fim, e o meu pensamento está sempre a partir-se. Um vidro frágil que se estilhaça em pedaços pontiagudos e cortantes. O medo é um deles.


Sigo um grupo de psicólogos no Facebook. Lá, é explicado que, nestas circunstâncias, é normal ter medo, estar-se confuso, zangado, inseguro. Sinto algum conforto por ser normal quando tudo desaba. Quis acreditar na Direção-Geral da Saúde, que informou, em janeiro, ser pouco provável o vírus chegar a Portugal. O futuro tratado com doses iguais de Ciência e de Fé. As notícias sobre a epidemia na China continuavam a ser recebidas com a indiferença que dispensamos ao que é distante, ou ao que é próximo e não nos interessa. Pelo sim, pelo não, alguns de nós deixaram de ir a lojas e restaurantes geridos por asiáticos e o assunto parecia arrumado.

Num par de semanas, o novo vírus estava na Europa. O dia em que se soube do primeiro infetado em Itália calhou ser o mesmo em que fui ao Teatro São Luiz ver o primeiro solo da Mónica Calle de Isto é o meu corpo. A Lombardia não ficava tão longe de nós quanto a província de Hubei, mas ainda era suficientemente longe para que pudéssemos continuar a confiar que estávamos a salvo. Nada foi travando a tragédia. Em breve, havia dezenas de infetados noutros países europeus. E finalmente soube-se do primeiro em Portugal.

Não percebo nada de matemática, mas sei a tabuada do dois. Dois vezes um, dois, dois vezes dois, quatro, quatro vezes dois, oito, oito vezes dois, dezasseis… E sei contar pelos dedos. Aparentemente, se não se fizer nada para conter a Covid-19, o número de infetados duplica a cada dois dias. Sexta-feira, 13, foi o último dia em que as escolas estiveram abertas. Pela tabuada do dois devia haver, então, sessenta e quatro infetados em Portugal. Havia cento e doze. O governo só decretou medidas que permitiam um recolhimento mais generalizado dos portugueses quase uma semana depois, porque – dizem – a economia não pode parar. Entretanto, a tabuada do dois também não tinha parado e, segundo ela, nessa altura haveria quinhentos e doze infetados. Havia setecentos e oitenta e cinco. O período de incubação do vírus faz com que qualquer medida de contenção leve duas semanas a produzir resultados. Sabendo o número de camas dos hospitais portugueses, os recursos humanos hospitalares, a quantidade de ventiladores existentes – pouco mais de mil – e fazendo as contas…

Prometo a mim própria que só verei notícias de três em três horas. Nunca consigo cumprir. Se pelo menos soubesse o que fazer com tanta informação desencontrada. É, no entanto, certo que pertenço a um dos grupos de risco, caso seja infetada.

Fazia uma residência literária na Alemanha quando percebi que havia qualquer coisa errada nos meus pulmões. Foi há dez anos. Entretanto, os médicos têm-se inclinado para que seja um problema congénito, apesar de que nem eu nem os que me são mais próximos demos conta disso. Ninguém deu importância ao facto de eu, quando era criança, não querer entrar no concurso de encher balões que os miúdos do bairro organizavam a pretexto das festas de aniversários. Logo eu, que era tão exuberantemente participativa em todas as brincadeiras. Depois de cheios, os balões coloridos eram pendurados nas folhas de palmeiras que cobriam os muros de cimento do quintal do aniversariante. Ficava sem fôlego a encher balões e por isso esquivava-me, Não me apetece. Se tivesse dito a verdade, talvez alguém se tivesse apercebido.

Tenho medo. Não propriamente da morte. Pelo menos da minha. Morrer não deve ser nada de especial. Deve ser alguém a apagar-nos a luz, como a minha mãe ao sair do meu quarto de criança, Agora dorme. Tenho medo da morte da minha mãe, da morte daqueles que amo. Um medo enorme. E mais do que da morte, do sofrimento. Do sofrimento de que não voltamos.

Pertenço também ao grupo dos desprevenidos, dos que não se abasteceram a tempo. Tenho a despensa quase vazia. O dono da loja da esquina ofereceu-me generosamente a possibilidade de comprar uma garrafinha de álcool por nove euros, Só para os clientes como a senhora, disse. Ainda não toquei na preciosidade que coloquei majestosamente em cima do armário da casa de banho. Tenho desinfetado tudo com lixívia. A minha casa e eu cheiramos às vizinhas da minha infância.

Não saio de casa desde o dia 11 de março. Vou arrumando armários. Encontrei a caixa dos frasquinhos de gel de banho que trazia de hotéis estrangeiros, quando os meus livros começaram a levar-me de um lado para o outro. As viagens foram-se sucedendo e perdi interesse em ter tantos bocadinhos de mundo na minha casa de banho. Ontem à noite, ao tomar duche, usei um gel que cheirava a bergamota e tangerina que trouxe de Bruxelas. Por instantes, fui transportada para o hotel Metrópole, mas logo uma âncora pesada me puxou para aqui e para agora.

Mantenho-me em contacto com os outros pelo WhatsApp, Messenger, Skype, Zoom, Houseparty. Tenho trocado mensagens com pessoas com quem já não falava há muito tempo. Algumas despedem-se desejando-me boa sorte. Como se eu fosse concorrer a alguma coisa ou estivesse a entrar num casino. Também dizem, Coragem.

Não sei quanto tempo terei de estar fechada em casa, mas existe, de certeza, tanta coisa para descobrir aqui dentro. Todas as casas têm passagens secretas. Se nos pusermos a procurá-las, descobri-las-emos. Hão de levar-nos a sítios onde nunca fomos. Se nos unirmos nessa busca, poderemos torná-los maravilhosos. E outro futuro há de chegar.

Pensamento do Dia


Os robôs do presidente

Mais da metade das publicações no Twitter favoráveis ao presidente Jair Bolsonaro, por ocasião das manifestações do dia 15 de março, foi realizada por robôs, revela estudo da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Após analisar mais de 3 milhões de mensagens no Twitter, o levantamento ajuda a dar uma dimensão mais exata do tipo de apoio que o presidente Jair Bolsonaro tem nas redes sociais, bem como a expor os efeitos deletérios da manipulação digital.

Segundo o estudo, a hashtag #bolsonaroday foi a mais compartilhada na plataforma do Twitter no dia 15 de março de 2020, com cerca de 1,2 milhão de menções. “Os dados apontam uma ação expressiva de perfis não humanos – tanto de robôs, contas automatizadas, como de ciborgues, contas semiautomatizadas – nas publicações do Twitter, chegando a atingir picos de 55% de automatização das postagens no dia do evento”, afirma o estudo.


Em geral, as pessoas que usam o Twitter publicam cerca de três a dez tuítes por dia. Os usuários mais ativos chegam a publicar até 50 tuítes por dia. No dia 15 de março, cada robô favorável ao presidente Jair Bolsonaro publicou, em média, 700 mensagens com a hashtag #bolsonaroday. Houve casos de robôs com mais de 1,2 mil tuítes naquele dia.

O porcentual de 55% de interação por robôs é uma taxa incrivelmente alta, que supera amplamente outros casos recentes de manipulação do debate público por instrumentos digitais. Na eleição do presidente Donald Trump, por exemplo, as contas automatizadas geraram aproximadamente 18% do tráfego do Twitter, segundo o Internet Institute da Universidade de Oxford. No caso do Brexit, dois pesquisadores, Samuel Woolley e Bence Kollanyi, avaliaram que 32% das publicações no Twitter favoráveis à saída da Grã-Bretanha da União Europeia foram realizadas por contas desproporcionalmente ativas, o que indica algum grau de automação.

O estudo da FESPSP e da UFRJ relata algumas evidências empíricas sobre o papel desempenhado pelos robôs nas redes sociais. “A disseminação de mensagens e orquestração de campanhas online com o uso de automação e inteligência artificial tem consequências sociais, políticas e culturais relevantes: (a) sequestram a atenção da rede de usuários e ajudam a manipular os algoritmos das plataformas; (b) criam cascatas de informação que tendem a influenciar o comportamento de outros usuários por meio de contágio; (c) contribuem para a distorção e manipulação da opinião pública em constante construção e mutação; (d) pautam o debate e as conversações online e offline”. O uso dos robôs não apenas falsifica o tamanho do apoio ao presidente Bolsonaro, como deturpa todo o espaço público de diálogo, debate e informação.

Outro ponto destacado no estudo é o uso da estratégia de “campanha permanente” nas redes sociais pelos bolsonaristas, “com hashtags e mensagens cujo apelo, frequência e quantidade são típicos de períodos de campanha, incluindo alusão às eleições presidenciais de 2022 e 2026”. Entre as ações da campanha permanente está a “ativação constante da militância virtual para se defender e atacar seus adversários e o uso de narrativas de testemunho de diferentes atores sociais para a construção ‘do bem e do mal’”, diz o estudo. Um dos alvos mais frequentes dos bolsonaristas é o Supremo Tribunal Federal (STF). “Ainda que o Congresso tenha ganhado maior destaque mais recentemente, a campanha permanente se nutre do universo lavajatista que vê no STF um obstáculo para a continuidade da operação, além da questão da prisão em segunda instância”, aponta o estudo.

Os robôs bolsonaristas não só apoiam o presidente Bolsonaro, como atacam as instituições. Se é um alívio saber que muito dessa movimentação contra o Estado Democrático de Direito não vem de pessoas reais – é mera atuação de robôs –, é grave ver o presidente Bolsonaro tão próximo dessas milícias virtuais, que se servem de manobras digitais para atacar o ambiente de liberdade e diálogo próprio de uma democracia.

Isto, sim, é um crime

Quando a ideologia e a animosidade política obstruem a solução dos desastres humanitários, isso pode ser considerado um crime
Ai Weiwei 

Coronavírus ameaça elevar em até 22 milhões as pessoas em pobreza extrema na América Latina

Do baixo crescimento à recessão sem solução de continuidade. O coronavírus transformou o sombrio horizonte econômico da América Latina no pior em mais de meio século, como lembra ao EL PAÍS o chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI) para a região, Alejandro Werner. O braço econômico das Nações Unidas para o desenvolvimento da América Latina e do Caribe, a Cepal, somou-se na sexta-feira ao pessimismo sobre a freada da atividade em escala global e sobre o baque que isso provocará em uma região sempre exposta aos vaivéns das matérias-primas, da manufatura, do turismo e das remessas. O choque será particularmente forte em uma métrica-chave do desenvolvimento social: a pobreza extrema. Segundo os dados do organismo, se o avanço da pandemia provocar uma queda de 5% na renda média da população ativa, o número de latino-americanos em extrema pobreza passará dos 67,5 milhões atuais para 82 milhões. Se a diminuição da renda da população economicamente ativa for de 10%, o número disparará para 90 milhões de pessoas (ou seja, 22 milhões de pessoas a mais em relação ao número atual).


Mesmo antes da chegada da Covid-19, a região não estava num bom caminho para acabar com o flagelo da pobreza extrema em uma década, como propunha um plano da ONU. Depois de uma longa década de melhoria, a taxa de população em situação de pobreza extrema na América Latina —a região mais desigual do mundo— já acumula mais de cinco anos de aumento sobre bases já muito altas: depois do mínimo de 2012 (8,2%), essa porcentagem cresceu até chegar aos dois dígitos. O baixo crescimento e a menor pujança redistributiva de muitos Governos da região já vinham sendo sentidos nos últimos tempos nesse indicador-chave do avanço social, mas a pandemia é o pior golpe: sem o efeito da Covid-19, esse indicador alcançaria 10,7% no final deste ano; com o coronavírus já no mapa de risco, disparará para 13,3%.

Para 2030, antes do novo cenário, os cálculos mais otimistas (que contemplavam uma redução de 1,5% na desigualdade e um aumento de 5% no PIB per capita) apontavam para uma pobreza extrema em torno de 2,9% em 2030; os mais pessimistas (sem alteração no padrão distributivo e com um crescimento per capita de 1%), para quase 9%. Mas o abalo causado pelo vírus nas próprias bases da economia é, mais uma vez, a pior estocada: hoje o cálculo mais otimista aponta para uma pobreza extrema de 5,7% da população em 2030 e o mais pessimista, de 11,9%.

“O mundo enfrenta uma crise sanitária e humanitária sem precedentes no último século”, ressaltou na sexta-feira a secretária executiva da Cepal, Alicia Bárcena, na apresentação de um estudo sobre as sequelas econômicas e sociais do vírus na região. “O mundo não será o mesmo depois desta pandemia e a reativação econômica levará tempo. Não é uma crise financeira, mas de saúde e bem-estar. E será imprescindível o papel do Estado, não o do mercado: é o Estado, o público, que vai nos tirar desta crise. Não podemos voltar a transitar pelos mesmos caminhos que não trouxeram a estes grandes abismos”, disse Bárcena em Santiago. “Estamos diante de uma mudança de era, de paradigma. E temos de mudar nosso modelo de desenvolvimento.”

No plano macroeconômico, a Cepal prevê um golpe múltiplo para a América Latina, basicamente através de seis canais: diminuição da atividade econômica em seus principais parceiros (Estados Unidos, Europa e China), barateamento das matérias-primas, interrupção das cadeias globais de valor, menor atividade turística, redução das remessas e intensificação da aversão ao risco nos mercados mundiais. “Estamos diante de uma profunda recessão”, alertou. Ainda é cedo para falar em números, mas a Cepal acredita que a previsão inicial de impacto, de 1,8% do PIB, já ficou obsoleta. “Se somarmos o impacto que está tendo nos EUA e na Europa, além da China, já falamos de 3% ou 4%.” Embora a mordida econômica das medidas de distanciamento social vá ser forte, Bárcena fez um apelo para que sejam mantidas ou ampliadas essas medidas: “Se não cumprirmos as quarentenas na América Latina e no Caribe, o impacto econômico será muito maior”, sentenciou.

Como resposta a este novo panorama econômico, “a integração regional é crucial para enfrentar a crise, independentemente das diferenças políticas”, afirmou a chefa da Cepal. “O mais urgente é reconstituir as cadeias regionais de valor para diminuir a volatilidade externa. É, talvez, uma oportunidade de olharmos para dentro.” Desta vez, “o salva-vidas não serão as matérias-primas: o impulso virá dos pacotes fiscais”, assinalou. E a América Latina “não tem espaço suficiente" para responder à conjuntura com o mesmo vigor que as economias avançadas. Diante dessa situação, segundo Bárcena, a opção mais conveniente seria a comunidade internacional apoiar os países de renda média por meio de “uma redução ou um reperfilamento” de sua dívida. “Precisamos de medidas de fora da caixa, inovadoras: precisamos que o FMI e o Banco Mundial nos ajudem.”

No plano estritamente sanitário, Bárcena lembrou que o nível de leitos hospitalares disponíveis na América Latina e no Caribe está muito longe do da Europa, onde o coronavírus está causando estragos e mostrando que nenhum sistema de saúde é suficientemente forte para resistir a um choque desta magnitude. Na região, os únicos países que têm um nível de disponibilidade de leitos semelhante ao da União Europeia são, segundo os dados da Cepal, Cuba e duas pequenas nações caribenhas: Barbados e São Cristóvão e Névis. E o gasto público médio de saúde na América Latina e no Caribe mal passa de 2,2%, um terço do recomendado pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas).

Com medo da penúria e da morte? Bem-vindos ao mundo real

1.

Você vai até a janela, olha para o céu, estica o braço apontando o telefone para cima, fecha o olho esquerdo, olha o céu no quadro do telefone – é o mesmo. Você tira uma fotografia, a examina, volta a olhar para o céu: as nuvens desembestaram a mudar de lugar, o sol talvez agora lhe cegue um pouco.

Mas você estava lá, e por isso publica um instantâneo daquele céu onde não havia nada de especial, apenas o panorama difuso do círculo solar por trás de nuvens em contraluz, visto por uma nesga entre edifícios e antenas de São Paulo. As pessoas vão olhar sua fotografia, cada uma dentro de cada apartamento, e ler seu nome impresso no canto esquerdo sobre a imagem do céu nos cristais dos telefones, e pensar em você, talvez olhando pela janela – talvez sentindo o mesmo pavor.

Andamos assim, silenciando no meio das frases.

Especialmente, os privilegiados que hoje podem isolar-se em cápsulas domésticas. Nas últimas semanas, nossas horas foram ocupadas por tentativas de trabalho remoto, aulas online, ativismo de internet, drinks via zoom e houseparty – e uma enevoada sensação de luto antecipado. Até que percamos o emprego, enterremos nossos mortos ou, na melhor das hipóteses, tenhamos que nos confrontar com um mundo que ainda desconhecemos do outro lado desta quarentena.

São tempos estranhos? Talvez não mais que há três semanas – a diferença é que agora todos sabemos disso.


2.

Nas últimas décadas, o capitalismo tardio promoveu mudanças climáticas irreversíveis e um aumento exponencial na concentração de renda mundial. Pouco importava aos detentores dos meios de produção e do capital financeiro – e às classes médias que votam nos representantes daqueles no governo – que a política econômica de seus países causasse desigualdade, doenças e morte aos menos favorecidos.

No Brasil, o 1% mais rico hoje concentra 28,3% da renda total do país, segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) da ONU divulgado em dezembro do ano passado. É a segunda maior concentração de renda do mundo, apenas atrás do Catar, um emirado absolutista sem eleições legislativas desde os anos 1970 que usa a charia como sistema legal, onde mulheres supostamente adúlteras são punidas com chibatadas e relações homossexuais, com a pena de morte.

Essa combinação nefasta de concentração de renda e ameaças aos direitos humanos também encontra-se por aqui.

Ainda que, durante o recente ciclo do Partido dos Trabalhadores no poder, tal desigualdade tenha sido mitigada via programas de distribuição de renda e uma economia aquecida, os brasileiros moradores de periferias e favelas seguiram tendo direitos desrespeitados pelas polícias militares de todo o país, assim como os povos indígenas originários ameaçados por ruralistas, grileiros, milícias e superfaturadas obras de infraestrutura. E, se nossas favelas são guetificadas pelo Estado, o que dizer dos presídios brasileiros, verdadeiros campos de concentração para negros e pobres?

Abrindo o panorama, pesquisas do IBGE em 2017 e 2018 apontaram que 64,9% da população brasileira não têm pelo menos um dos seguintes direitos garantidos: educação, proteção social, moradia adequada, serviços de saneamento básico e comunicação (internet). A realidade é certamente pior: o relatório usa o conceito de autodeclaração e só inclui os brasileiros que tenham domicílios, excluindo moradores de rua. Entre mulheres negras ou pardas, sozinhas, e com filhos pequenos, o número é ainda maior: 81,3% . Entre idosos, são 80%.

O Estado Democrático de Direito, garantido pela Constituição de 1988 e ameaçado pelo bolsonarismo, nunca foi democratizado no Brasil pós abertura – jamais chegou plenamente aos cantos menos favorecidos do país, mesmo sob governos supostamente de esquerda. E, com a guinada abertamente fascista da política brasileira depois do golpe de 2016, a situação, que já era trágica, piorou.

Em tempos de pandemia, talvez um pouco – apenas um pouco – do pesadelo distópico no qual já viviam milhões de brasileiros pareça agora democratizado. Insegurança financeira e ameaça constante à vida: antes tão normalizados quando no andar de baixo, agora motivos para ansiedade generalizada.

3.

A grande novidade não é a pandemia. É o fato de que as classes mais abastadas brasileiras possam enfrentar, pela primeira vez em gerações, circunstâncias em que sua casta superior não lhes oferece grande vantagem de sobrevivência.

No Brasil, hospitais particulares já sofrem estrangulamento semelhante ao SUS – e mal começamos a escalar a curva de casos e mortes. Tragédia com horizontalidade semelhante, talvez apenas durante guerras, sob bombardeio. O que nunca tivemos por aqui.

Quando isso tudo acabar, talvez a espera e o testemunho da catástrofe, a implosão do que entendíamos como vida normal, faça os abastados da Zona Sul do Rio de Janeiro e da Zona Oeste de São Paulo mais empáticos com quem convive com o medo de ver o chão abrindo sob seus pés desde que nasceu.

Mas não sei se eu apostaria nisso.
J.P. Cuenca

Use máscara

Use máscara. No tempo em que as pessoas cuidavam da saúde recebendo do sol a sua carga diária de vitamina D, Pedro Bial fez sucesso com um poema-canção de dicas sobre o planejamento da felicidade futura. “Use filtro solar”, dizia o refrão. A vida era uma experiência errante, reticenciava o poeta-jornalista. As outras dicas que ele poderia dar eram tão incertas como a eficácia de mascar chicletes para resolver uma questão de álgebra.

Hoje, se eu pudesse oferecer uma única dica, não sobre a felicidade a ser buscada, que isto ficou na sombra, mas sobre a possibilidade de chegar ao futuro e aí então voltar a lutar por esses luxos da existência, esta única dica seria: use máscara.

Não se sinta culpado por não estar lendo as 900 páginas do “Guerra e Paz”, o velho sonho há muito adiado. Talvez, pela primeira vez na vida, você esteja sentindo um medo de verdade, como diz o poema, uma vontade de chorar baixinho, como diz o samba-canção, e isso vale por todos os romances deixados de ler.

Stephen King foi para a prateleira de terror infantil, a barata do Kafka já não parece tão absurda. Quando isso acontece não há dicas a se oferecer. O poema do Bial, tradução de um original da americana Mary Schmich, falava da necessidade de se cuidar dos joelhos, pois um dia você precisaria deles. Chegou a hora. Ajoelhe, reze forte e chame os deuses que porventura estejam desocupados. Se algum aparecer, tenha fé. Peça a salvação com toda a ênfase que lhe estiver ao alcance - mas, por favor, use máscara.

Você fez poupança, engordou o porquinho financeiro, apostou numa aposentadoria privada. Tudo na crença de que o gerente de banco é o grande administrador do futuro e, diante de um desemprego, da vontade inarredável de dançar no Central Park, seria só sacar. Deu ruim. O parque fechou, o futuro acabou e agora só resta dançar trancado no quarto. Faça um vídeo. Para respirar afeto no confinamento, mande aos amigos.

Encrencas não têm esse nome feio à toa. Surgem, de um mercado de bichos na China, de um aperto de mão no casamento grã-fino, e morrem de rir de nossa cabeça programada com antigas preocupações. Eu, você, o gerente de banco, todos ficaremos diferentes, talvez menos mesquinhos em distribuir sentimentos, se formos adiante com as lições desse inimigo de quem nunca ninguém supôs. Mas para isso não se esqueça. Escreva a hashtag em suas mensagens no Twitter: #usar máscara.

A poesia de Schmich e Bial soa otimista quando diz que a peleja é longa e, no fim, é só você contra você mesmo - um verso sobre o qual há divergências em abril de 2020. Guarde o filtro solar para quando sair da quarentena. Amanhã, por exemplo, é o Dia dos Jornalistas. Alguns deles têm cumprido a pauta de ir pela manhã até a porta do Palácio da Alvorada. Em tempos de coronavírus, são corajosos. Perguntam, não respondem às ofensas, publicam. Lembram Joel Silveira, que mandou notícias do front da Itália na Segunda Guerra, ou José Hamilton Ribeiro, que perdeu a perna numa mina terrestre para informar sobre o Vietnã. Os novos heróis de Brasília, autênticos correspondentes de guerra, têm se saído muito bem na batalha contra os perdigotos do presidente. Parabéns. Continuem. Usem máscara.