quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Pensamento do Dia

 


Da salvação da pátria

Posto em sossego por uma cirurgia e suas complicações, eis que o sossego subitamente se transforma em desassossego: minha filha surge esbaforida dizendo que há revolução na rua .

Apesar da ordem médica, decido interromper o sossego e assuntar: ali no Posto 6, segundo me afirmam, há briga e morte. Confiando estupidamente no patriotismo e nos sadios princípios que norteiam as nossas gloriosas Forças Armadas, lá vou eu, trôpego e atordoado, ver o povo e a história que ali, em minhas barbas, está sendo feita.

E vejo. Vejo um heróico general, à paisana, comandar alguns rapazes naquilo que mais tarde o repórter da TV-Rio chamou de “gloriosa barricada”. Os rapazes arrancam bancos e árvores. Impedem o cruzamento da Avenida Atlântica com a Rua Joaquim Nabuco. Mas o general destina-se à missão mais importante e gloriosa: apanha dois paralelepípedos e concentra-se na brava façanha de colocar um em cima do outro. Estou impossibilitado de ajudar os gloriosos herdeiros de Caxias, mas vendo o general em tarefa aparentemente tão insignificante, chego-me a ele e antes de oferecer meus préstimos patrióticos, pergunto para que servem aqueles paralelepípedos tão sabiamente colocados um sobre o outro.

– General, para que é isto? O intrépido soldado não se dignou olhar-me. Rosna, modestamente:

– Isso é para impedir os tanques do I Exército! Apesar de oficial da Reserva – ou talvez por isso mesmo – sempre nutri profunda e inarredável ignorância em assuntos militares. Acreditava, até então, que dificilmente se deteria todo um Exército com dois paralelepípedos ali na esquina da rua onde moro. Não digo nem pergunto mais nada. Retiro-me à minha estúpida ignorância.

Qual não é meu pasmo quando, dali a pouco, em companhia do bardo Carlos Drummond de Andrade, que descera à rua para saber o que se passava, ouço pelo rádio que os dois paralelepípedos do general foram eficazes: o I Exército, em sabendo que havia tão sólida resistência, desistiu do vexame: aderiu aos que se chamavam de rebeldes.

Nessa altura, há confusão na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, pois ninguém sabe ao certo o que significa “aderir aos rebeldes”. A confusão é rápida. Não há rebeldes e todos, rebeldes ou não, aderem, que a natural tendência da humana espécie é aderir.

Os rapazes de Copacabana, belos espécimes: de nossa sadia juventude, bem nutridos, bem fumados, bem motorizados, erguem o general em triunfo. Vejo o bravo cabo-de-guerra passar em glória sobre minha cabeça. Olho o chão.

Por acaso ou não, os dois paralelepípedos lá estão, intatos, invencidos, um em cima do outro. Vou lá perto, com a ponta do sapato tento derrubá-los. É coisa relativamente fácil.

Das janelas, cai papel picado. Senhoras pias exibem seus pios e alvacentos lençóis, em sinal de vitória. Um cadillac conversível pára perto do “Six” e surge uma bandeira nacional. Cantam o Hino também Nacional e declaram todos que a Pátria está salva.

Minha filha, ao meu lado, exige uma explicação para aquilo tudo.

– É carnaval, papai ?

– Não.

– É campeonato do mundo?

– Também não.

Ela fica sem saber o que é. E eu também fico. Recolho-me ao sossego e sinto na boca um gosto azedo de covardia.
Carlos Heitor Cony, Correio da Manhã 2/04/1964 ("O Ato e o Fato")

O método Bolsonaro: um assalto à democracia em câmera lenta

Em 20 de janeiro de 2021, uma assessora do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos durante o Governo de Donald Trump, Valerie Huber, escreveu um último e-mail aos seus aliados de outros países, no qual dedicou especial atenção ao Brasil. Huber ―uma forte defensora da abstinência, que trabalhava em larga escala contra programas de educação sexual e reprodutiva― se despediu de seus colegas com o anúncio: “O Brasil, gentilmente, se ofereceu para servir agora como coordenador dessa coalizão histórica”, escreveu ela no e-mail ao qual o EL PAÍS teve acesso. A “coalizão histórica” era basicamente uma aliança internacional ultraconservadora criada para influenciar as decisões da Organização das Nações Unidas, da Organização Mundial da Saúde e de outros organismos multilaterais. Fracassada a tentativa de Trump de permanecer no poder, a ofensiva da direita global contra os direitos de uma nova geração foi deixada nas mãos do Governo Jair Bolsonaro.

Bolsonaro não ganhou como herança de Trump somente uma responsabilidade, mas também um manual não escrito de táticas de como erodir a democracia, que alguns líderes começaram a replicar sem sutilezas pelo mundo. Nenhum, talvez, com o atrevimento e determinação que fizeram do presidente brasileiro um porta-estandarte mundial da direita. Embora o ímpeto do golpe o acompanhe desde que chegou ao Palácio do Planalto, sua estratégia para enfraquecer as instituições e permanecer no poder torna-se cada vez mais evidente à medida que sua popularidade diminui e as eleições de 2022 parecem mais claras no horizonte.

“Ou fazemos eleições limpas, ou não teremos eleições”, disse Bolsonaro na última quinta-feira, 8 de julho, a seguidores que o esperam todos os dias na porta do Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente, em Brasília. Atacar, sem apresentar evidências, a legitimidade das urnas eletrônicas ―o mesmo sistema eleitoral que o elegeu presidente e a outros cargos eletivos ao longo de sua carreira política― faz parte de sua campanha mais recente para não entregar o poder no ano que vem caso seja derrotado. No dia seguinte, Bolsonaro foi além. “Não tenho medo de eleições, entrego a faixa para quem ganhar no voto auditável e confiável. Dessa forma [como é hoje], corremos o risco de não termos eleições no ano que vem”, repetiu ele uma vez mais na sexta, 9.



O impulso golpista, entretanto, desta vez gerou uma reação em cadeia nos Três Poderes, que fizeram defesa pública do processo eleitoral brasileiro. “Não podemos admitir fala, ato, menção que seja atentatória à democracia”, disse o senador Rodrigo Pacheco, presidente do Congresso Nacional, descartando a possibilidade de haver qualquer interferência nas eleições. O presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, o convidou dias depois para uma reunião, para “fixar balizas sólidas sobre a democracia brasileira” em nome da estabilidade política. O empenho por refrear os arroubos autoritários parecem insuficientes diante da velocidade com que o presidente impõe seu projeto de poder.

Bolsonaro não é o primeiro populista de extrema direita no mundo. Mas, sem dúvida, “é o adversário mais poderoso que a democracia brasileira já enfrentou em meio século”, como advertia em 2019 Yascha Mounk, professor da Universidade John Hopkins (EUA), no seu livro O povo contra a democracia, onde retratou como os líderes eleitos em países como Turquia, Hungria e Filipinas destroem o regime democrático por dentro. Em pouco mais de dois anos e meio como mandatário, já é possível decifrar o modus operandi do político forjado pelo Exército brasileiro que assumiu a Presidência em 1 de janeiro de 2019. Enquanto parte de sua atividade se concentra em perseguir seus críticos, inventar notícias falsas ou meias verdades que precisam ser desmentidas pelos jornais, e fomentar crises políticas com os outros Poderes, a máquina do Estado é utilizada para fortalecer os pilares que poderiam sustentá-lo no poder para além do voto. Se sua estratégia discursiva parece uma cópia da empregada por Donald Trump, sua metodologia mais poderosa é, paradoxalmente, a mesma que a adotada pelo chavismo: garantir a lealdade dos militares.


Os militares são hoje a espinha dorsal do Governo Bolsonaro. Há pelo menos 6.157 fardados espalhados entre diretorias, conselhos administrativos e gerências de empresas estatais, como Petrobras, Itaipu, Correios e Eletrobras. De seus 22 ministérios, nove são atualmente ocupados por militares da ativa ou da reserva. Eram dez até a queda do general Eduardo Pazuello do Ministério da Saúde, em março. “As Forças Armadas servem tanto como base política-eleitoral para o Governo Bolsonaro, mas também como instrumento de intimidação da oposição. Ele tenta passar a ideia de que pode usar a força contra seus inimigos políticos, por mais que não seja verdade”, diz o cientista político Octavio Amorim Neto, professor da Fundação Getulio Vargas. O mandatário já incorporou ao seu discurso até a expressão “Meu Exército” para demonstrar sua influência.

O Governo federal já gastou o equivalente a 86,8 bilhões de reais em privilégios à categoria, uma alta de 17% nos anos Bolsonaro. Neste cálculo, estão os benefícios concedidos pela reforma da Previdência da caserna ―podem se aposentar com salário integral, por exemplo—; um reajuste salarial de 13% —enquanto o dos demais servidores públicos não superou os 8%— e a concessão de comissionamentos extraordinários aos militares que participam de conselhos administrativos de estatais. A conta foi feita, a pedido do EL PAÍS, pelo cientista político Willian Nozaki, que em maio publicou o estudo A Militarização da Administração Pública no Brasil: projeto de nação ou projeto de poder?. Na equação não está inclusa a mudança na regra que permite que militares aposentados, como Bolsonaro ou seus ministros Walter Braga Netto (Defesa), Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil) e Augusto Heleno (Gabinete da Segurança Institucional) possam receber acima do teto constitucional de 39.293 reais.

Bolsonaro estende benefícios aos policiais militares das 27 unidades da federação. Os PMs são uma base natural do presidente, que poderiam jogar a favor dele, a despeito do comando dos governadores, a quem respondem. O presidente aprovou recentemente um programa de financiamento habitacional exclusivo para as forças de segurança. Também incluiu na reforma Administrativa que tramita na Câmara dos Deputados um artigo que entende que os policiais seriam carreira típica de Estado, portanto, não correriam o risco de demissão, como as demais funções.

A pergunta é se todo esse prestígio alcançado pelos militares e PMs no Governo vai se converter em apoio em caso de uma tentativa de golpe do presidente no ano que vem. “Se isso acontecer, as Forças Armadas terão que tomar uma decisão. Se agirão dentro da legalidade, rompendo de vez publicamente com Bolsonaro ou não”, alerta Amorim Neto. As PMs, por sua vez, seguem a corrente que estiver mais forte. “As polícias no Brasil têm duplo comando. Elas obedecem aos 27 governadores e ao comandante do Exército. Se você perguntar para um oficial da PM quem ele irá seguir em caso de ameaça, a resposta que ele lhe dará será: quem estiver mais forte”, diz o professor Zaverucha.

O ex-ministro da Defesa e das Relações Exteriores sob Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, Celso Amorim, acredita que nenhum comandante das Forças Armadas está de acordo com uma intervenção. “Isso é uma discussão mais entre alguns generais da reserva. Por mais que boa parte da tropa concorde com as ideias do presidente, ela vai contra o que pensa o Alto Comando do Exército. Ela não vai ultrapassar essa linha”, diz. Para Amorim, o presidente não é bem visto na caserna, quando forçosamente leva a política para dentro dos quartéis, como no episódio que resultou na demissão coletiva do ministro da Defesa e dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, em maio, por discordarem da linha de atuação do presidente. O ex-ministro lembra também que todo golpe requer apoio internacional, algo que o Brasil deixou de ter após o início do Governo Joe Biden.

Os militares, contudo, também vivem o desgaste do poder ao lado de Bolsonaro. Eles emprestaram sua imagem a um Governo que perdeu prestígio com os resultados desastrosos da pandemia, alto desemprego e agora acossado com acusações de corrupção na compra de vacinas contra a covid-19 que alcançam integrantes do Exército. As acusações de propina, investigadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia, começam agora a levantar suspeitas sobre vários militares que ocupam ou ocuparam cargos no Ministério da Saúde.

Jair Bolsonaro não vive exatamente seu momento mais popular nem entre as instituições, nem junto à opinião pública. Rejeitado por metade da população pela gestão da crise sanitária, o mandatário tem encarado protestos puxados por partidos de esquerda contra sua administração desde maio. As pesquisas eleitorais já mostravam uma erosão do apoio popular pouco antes do noticiário brasileiro ser tomado pelas denúncias de corrupção no Ministério da Saúde na última semana de junho. Um levantamento feito pelo Instituto Ipec entre os dias 17 e 21 daquele mês revelava queda preocupante da sua popularidade diante do ex-presidente Lula: 49% a favor do petista, contra 23% do presidente, o que levaria Lula a ganhar em primeiro turno. Numa pesquisa mais recente, feita pelo instituto Datafolha entre os dias 7 e 8 deste mês, Lula aparece com 58% de apoio para sua candidatura presidencial contra 31% de Bolsonaro —a rejeição ao presidente chega a 59%, contra 37% do petista.

Faltando um ano e três meses para as eleições presidenciais, Bolsonaro ainda tem tempo, eleitores e alianças fiéis, além da máquina pública a seu favor para navegar nestas águas revoltas até chegar a 2022 competitivo para se reeleger. Ao farejar o risco de perder as eleições, o presidente já plantou as sementes do caos ―assim como Trump fez no ano passado― inventando um risco de fraude. A verborragia calculada para atormentar adversários e incomodar as instituições ajuda a desviar a atenção. É o método adotado desde que assumiu a presidência.

E ―novamente seguindo o roteiro trumpista―, dia sim, dia não, submete o país a sobressaltos com seus discursos radicais e falas distópicas que confrontam a realidade e desafiam a Constituição. Enquanto distrai a opinião pública, muda leis por atos institucionais que não dependem do Congresso. No dia 19 de julho de 2019, por exemplo, durante um café da manhã com jornalistas estrangeiros, Bolsonaro afirmou que não existia gente passando fome no Brasil, apesar de 5,2 milhões de brasileiros que se encontravam nessa situação àquela altura, mais do que a população da Nova Zelândia. “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”, dizia enfaticamente na presença de jornalistas internacionais. “Passa-se mal, não come bem. Agora passar fome, não”, afirmou ele com veemência.

Enquanto a imprensa repercutia a sua fala, naquele mesmo dia foi publicado no Diário Oficial da União o decreto número 9.926/19 que promoveu um revogaço de 324 atos administrativos, incluindo o que determinava a criação de conselhos com a participação de representantes da sociedade civil em decisões sobre políticas públicas. Essa foi a primeira canetada para reduzir o controle social sobre o poder público. Outros vieram, diminuindo também a transparência dos atos públicos.

No início da pandemia, no ano passado, o Governo editou uma medida provisória suspendendo os prazos de respostas aos pedidos de informação enquanto durasse a crise sanitária para todos os órgãos cujos servidores estivessem em regime de teletrabalho. A MP ficou em vigor de março a julho de 2020 e tirou o acesso aos dados públicos num momento em que o país se organizava para enfrentar o novo coronavírus. Em junho deste ano, o Comando do Exército decretou sigilo de 100 anos no processo administrativo contra o general Pazuello, ex-ministro da Saúde, por ter participado de ato político com apoiadores de Bolsonaro, o que é proibido pelo regulamento das Forças Armadas aos militares da ativa, como é o caso dele. O processo foi aberto, mas o Exército entendeu que o ex ministro não cometeu “transgressão disciplinar” e arquivou o caso.

A promulgação de atos ―portaria, resolução, decretos, instrução normativa, edital, lei, despachos— é outra das frentes de erosão democrática usada como método por Bolsonaro. Em dois anos e meio no poder, 1.060 decretos já foram assinados pelo presidente. Como comparação, Dilma Rousseff assinou 614 dessa natureza, grande parte para regulamentar leis ou organizar a gestão pública. Porém, na gestão Bolsonaro, eles se tornaram uma importante ferramenta para contrariar a Constituição e as engrenagens que sustentam a democracia do país. Muitos são revertidos no Supremo Tribunal Federal. Mas enquanto não são julgados, garantem que o plano de poder do presidente avance algumas casas.

Foi assim que Bolsonaro conseguiu ampliar a venda de armas no Brasil, apesar de o país ter um Estatuto do Desarmamento, previsto em lei federal aprovado pela Congresso em 2003. O Estatuto previa um referendo em 2005. Mais de 63% dos brasileiros votaram contra a proibição da venda de armas naquele ano. As restrições à posse de armas, porém, continuaram valendo segundo a lei de 2003. Mas desde que Bolsonaro assumiu a presidência, já foram mais de 30 atos normativos para alterar a política de acesso às armas no país.

Os quatro decretos mais recentes foram assinados em fevereiro deste ano com o objetivo de facilitar ainda mais a venda de armas e reduzir a fiscalização pelos órgãos competentes. “Temos projetos antigos no Congresso do grupo pró-armas, mas eles sempre enfrentaram resistência. Nenhuma ação conseguiu desmontar o Estatuto do Desarmamento, por isso o Governo partiu para os decretos”, afirma Melina Risso, diretora de programas do Instituto Igarapé. Risso explica que, apesar dos decretos poderem ser contestados mais facilmente na Justiça —a ministra do Supremo Rosa Weber suspendeu em liminar a eficácia de diversos dispositivos de quatro decretos presidenciais—, as armas que já foram vendidas durante a queda de braço jurídica não terão mais retorno. “A obsessão do presidente pelas armas foi o primeiro sinal de que o Governo iria mexer com o sistema democrático, uma vez que ele começa a fazer decretos para legislar. E uma vez derrubado o decreto, o Governo revoga e publica outros três. É uma forma de driblar os sistemas de controle”, afirma.

Em um cenário hipotético em que Bolsonaro perde a reeleição e tenta se manter no poder, a existência de um grande grupo de simpatizantes que se muniram de armas de fogo durante seu Governo representa um cenário sinistro. Desse modo, contornar os limites impostos pelas leis cumpre uma dupla função: manter a lealdade de seu núcleo duro de apoio e, ao mesmo tempo, proteger seus próprios interesses.

Enquanto os atos facilitam a venda de armas, nenhuma outra área sofreu mais ataques do Governo Bolsonaro sob esse método do que a proteção socioambiental. Já são 1.112 atos voltados para alterar a legislação ambiental e facilitar a exploração das florestas, segundo o monitor Política por Inteiro, do Instituto Talanoa. A eficiência dessa estratégia é incontestável. O desmatamento na Amazônia bate recorde desde a chegada de Bolsonaro e o Governo faz vista grossa para a ação de garimpeiros e madeireiros. O Fundo Amazônia, que recebe doações estrangeiras com o objetivo de promover ações de controle e combate ao desmatamento na Amazônia, foi uma das vítimas desse revogaço. O fundo tinha um comitê técnico que, deliberadamente, não foi retomado. Assim, foi rompido o contrato, deixando 2,9 bilhões de reais acumulados no fundo até hoje.

Do total de atos, 107 tiveram como objetivo flexibilizar as normas vigentes de forma unilateral pelo Executivo. Foi assim que Bolsonaro cumpriu uma de suas promessas de campanha: acabar com o que chamou de “indústria da multa no campo”. Um decreto de abril de 2019 passou a obrigar os órgãos de fiscalização a “estimular a conciliação” nos casos de infrações administrativas por danos ao meio ambiente. Na prática, os infratores passaram a ser convidados a participar das audiências, que não são obrigatórias. E mesmo os que são multados pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) ganham descontos e maiores prazos para pagar. “A conciliação ambiental foi criada para travar as multas. Essas audiências não foram marcadas. Criou-se a indústria do perdão”, lamenta Natalie Unterstell, diretora-presidente do Instituto Talanoa.

Não por acaso os ruralistas interessados em ampliar seus domínios no campo em antítese à preservação são hoje uma base de sustentação do presidente. A bancada de deputados que representam o agronegócio é parte do grupo legislativo Centrão que garante ao presidente a sua estabilidade no poder, depois do acordo selado no ano passado. Essa convergência no Congresso levou à aprovação, em 13 de maio, de um projeto de lei que flexibiliza regras para concessão de licenciamento ambiental para determinados empreendimentos. E ao apoio à aprovação do projeto de lei 490, que dificulta demarcações de terras indígenas e abre espaço para que as terras sejam exploradas pelo agronegócio —foi aprovado no final de junho numa comissão da Câmara.

A intimidação pública de indígenas e ativistas também é parte do plano Bolsonaro. Em abril deste ano a Polícia Federal abriu inquérito para apurar a conduta dos líderes indígenas Sônia Guajajara e Almir Suruí por supostamente propagar “mentiras” contra o Planalto. O suposto crime foi veicular vídeos de uma campanha de preservação da memória dos povos indígenas, cujo fio condutor era o mote “Nenhuma gota a mais”, referente ao sangue derramado por ataques de invasores ou pela covid-19. O pedido de inquérito partiu da Fundação Nacional do Índio (Funai), hoje dirigida por um ex-dirigente da PF, Marcelo Xavier, a pedido do presidente. Sem provas, o inquérito foi arquivado dois meses depois.

Em setembro de 2019, uma operação da Polícia Civil de Santarém, em Belém do Pará, mandou prender quatro brigadistas voluntários sob suspeita de terem promovido um incêndio criminoso em setembro em Alter do Chão, uma região paradisíaca no norte do país. Os quatro jovens tiveram as cabeças raspadas e foram acusados de provocar os incêndios para obter mais verbas de ONGs num inquérito cheio de falhas. Era tudo especulação, como apontou um inquérito da Polícia Federal concluído em 2020, que afirmou não haver evidências de que os quatro rapazes eram culpados. Foi um grande espetáculo que serviu para Bolsonaro se descolar da responsabilidade pelo chamado Dia do Fogo, organizado por fazendeiros bolsonaristas do Pará, com queimadas tão intensas que fizeram a fumaça chegar até São Paulo, a milhares de quilômetros de lá. As ações, no entanto, seguem a reverberar na rede de informações dos bolsonaristas até hoje com versões que culpam os brigadistas, as ONGs, e afirmam até que o ator Leonardo di Caprio financiaria essas organizações com intuito criminoso.
Notícias sob medida

As redes de comunicação do bolsonarismo são um capítulo à parte na fragilização da democracia brasileira. Desde que assumiu o poder, Bolsonaro faz uma live semanal nas redes sociais em que muitas vezes desdiz ―num espaço blindado para críticas― o que ele ou seus ministros afirmaram em público. No exercício de poder, o presidente mantém sua linha de intolerância com os jornalistas, em arroubos que já eram conhecidos desde seus tempos de deputado. E se multiplicaram com Bolsonaro presidente, incluindo milícias virtuais para atacar profissionais, especialmente mulheres, num assédio amplificado por seus seguidores. Não por acaso, o mandatário brasileiro entrou este ano para a seleta lista de protofascistas que perseguem a imprensa, segundo a ONG Repórteres sem Fronteiras. Nessa lista de “predadores da imprensa” estão Nicolás Maduro, e o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un.

Sua aversão à imprensa fez o presidente fechar um círculo com sites e redes de televisão que o apoiam incondicionalmente —e recebem melhores verbas publicitárias estatais por isso. São portais e TVs que reduzem o impacto da pandemia da covid-19, e ignoram as suas manobras casuísticas. Bolsonaro só dá entrevistas a esses meios afins. Parte da estratégia bolsonarista incluiu facilitar a venda de uma concessão pública de televisão à Rede Jovem Pan, o grupo com o maior número de comentaristas defensores de Bolsonaro na rádio e na internet.

É dessas fontes que seus mais leais seguidores se abastecem de informações. Vinicius Publio, de 45 anos, por exemplo, é um orgulhoso bolsonarista que não acompanha a imprensa e raramente assiste a um telejornal. Ele busca informações pelas redes que apoiam Bolsonaro e as que o presidente, sua equipe e seus ciberescudeiros alimentam com uma avalanche de conteúdos. Entre eles, vídeos com propaganda das ações do Governo, as visitas surpresas de Bolsonaro a pequenas cidades, balanços ministeriais triunfalistas, muitas vezes com meias verdades.

Publio admira o perfil do presidente. “É autêntico, fala claramente, diz o que o povo quer ouvir”, explica ele numa cafeteria em Barueri, na grande São Paulo. Publio compartilha com o presidente os valores, a ideologia, o gosto por armas e pelas motos potentes. A bordo de sua BMW, foi um dos que acompanharam o mandatário no comboio de motos num sábado de junho pelas ruas e estradas de São Paulo. Bolsonaro transformou os passeios de motos com seguidores em manifestações públicas de apoio popular, dentro de uma sofisticada estratégia de relacionamento com seus seguidores.

Casado e pai de dois filhos adolescentes, Publio combina seu emprego na Polícia Militar com negócios imobiliários. Personifica o núcleo duro dos eleitores de Bolsonaro, aqueles que permanecem leais a ele apesar de tudo. Mais de meio milhão de mortes por pandemia, inflação ascendente, incêndios na Amazônia ... “São cerca de 15% do eleitorado brasileiro, com presença destacada de homens brancos de certa idade e alta renda”, explica Isabela Kalil, coordenadora do Observatório de Extrema Direita.

É este grupo que endossa o presidente e propaga suas verdades sem questionar. Uma parte do Brasil que é imagem e semelhança com o presidente. Bolsonaro governa no caos para ganhar espaço político e implementar seu projeto de poder. Enquanto não alcança um novo mandato, usa os recursos disponíveis na legislação brasileira para intimidar adversários. Desde que assumiu, em 2019, seu Governo intensificou a perseguição a seus críticos com base na Lei de Segurança Nacional (LSN).

Consolidada em 1983, dois anos antes do fim da ditadura, a LSN é mais um entulho da era militar no Brasil. É ela que tem embasado inquéritos abertos pela Polícia Federal e até pela Polícia Civil contra professores, artistas, ativistas. Foram vítimas de processos do Governo com base nessa lei desde o youtuber Felipe Neto por chamar Bolsonaro de “genocida” nas redes sociais, o cartunista Aroeira, que desenhou o símbolo do fascismo como se o presidente o tivesse pintado, até o jornalista Ricardo Noblat por ter partilhado a charge de Aroeira nas redes sociais. “Essa lei significou um dos elementos que mantinham o sistema ditatorial. Ela pune a crítica”, diz Pedro Estevam Serrano, professor de Direito da PUC-SP. “Deveria ter sido revogada e não foi, mas em compensação existia um certo pacto na sociedade por não utilizá-la.”

O autoritarismo do presidente no emprego dessa lei contamina até “o guarda da esquina”, usando a expressão cunhada na ditadura pelo então vice-presidente Pedro Aleixo no Governo de Costa e Silva, em 1968, que temia o efeito da institucionalização do AI-5 sobre as tropas. No final de maio, o professor Arquidones Leão, de Trindade, região metropolitana de Goiânia, foi detido por um policial militar por supostamente caluniar o presidente. Leão tinha uma faixa colada ao capô do carro onde se lia “Fora Bolsonaro Genocida”. A justificativa do policial para detê-lo era o desrespeito à Lei de Segurança Nacional. Leão, que é também secretário estadual do Partido dos Trabalhadores em Goiás, teve de depor na Polícia Federal, e foi liberado horas depois.

As salas de aulas e as universidades têm sido uma frente de batalha para Bolsonaro desde que chegou ao poder. Segundo ele, estão cheias de esquerdistas pregando o comunismo. O Governo tentou interferir até nas eleições de reitores eleitos por seus pares com a edição de uma medida provisória que dava poderes ao ministro da Educação de eleger os nomes durante a pandemia. Passou a intimidar também professores que fizessem críticas ao Governo com processos na Justiça. Em janeiro deste ano os professores universitários Erika Suruagy e Tiago Costa Rodrigues foram alvos de inquérito da Polícia Federal por publicarem críticas ao presidente em outdoors de suas cidades. Suruagy vive em Recife, e Rodrigues, em Palmas, no Tocantins. Os inquéritos foram arquivados meses depois por falta de consistência nas acusações. Mas o estrago foi feito. “As portas se fecharam, não consegui mais trabalho”, conta Rodrigues, que teve de se mudar de cidade. “O clima é de medo”, resume a professora Erika Suruagy.

Também um grupo de professores e alunos da Universidade Federal do Ceará é alvo de inquérito da Polícia Federal por aulas sobre os riscos do fascismo. Alunos eleitores de Bolsonaro delataram os docentes do curso à polícia por um suposto assédio contra eles.

Dentro da sala de aula, há uma pressão para evitar assuntos ligados à política. Não foram poucos os casos de vídeos de professores filmados por alunos fazendo alguma crítica informal, mas que circularam nas redes bolsonaristas como uma conspiração comunista. “Se a universidade não pode falar, não pode discutir ideias, quem fará isso? Não existe democracia que se sustente sem as universidades”, diz Suruagy.

O presidente também mina os investimentos nas universidades, estrangulando ainda mais o já sufocado orçamento do ensino superior. De 2019 para cá, o corte da verba das universidades federais chega a 25%, segundo a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). O assédio não se restringe aos professores universitários. A Articulação Nacional das Carreiras Públicas para o Desenvolvimento Sustentável (Arca), coalizão de entidades do setor público, por exemplo, identificou mais de 820 episódios de assédio. Segundo o levantamento, o Ibama encabeça a lista dos órgãos onde mais ocorreram essas intimidações.
Resistência

O Judiciário, em especial a Corte Suprema, tem sido uma barreira para inibir os abusos de poder do presidente. A Corte tem desarmado parte das bombas-relógios que o Governo cria com a promulgação de medidas provisórias, por exemplo. A Corte também liderou a investigação, conduzida pela Polícia Federal, sobre as redes digitais bolsonaristas que incentivaram a perseguição e assédio ao próprio Judiciário e a opositores do presidente. O chamado inquérito dos atos antidemocráticos encontrou indícios de “uma verdadeira organização criminosa” que ataca a democracia, e que conta com o trabalho de parlamentares, empresários que apoiam o presidente e blogueiros que espalham notícias falsas. O ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito, abriu uma nova frente de investigação a partir de agora.

Hoje há mais de 100 pedidos de impeachment de Bolsonaro na mesa do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que já demonstrou não ter interesse em avançar com o assunto. O último, apresentado no final de junho como um superpedido reunindo todos os demais que já estão com Lira, trazia uma lista de 23 potenciais crimes de responsabilidade, incluindo o de prevaricação (um crime contra a administração pública, que ocorre quando um agente público deixa de cumprir seu dever por interesse pessoal), uma vez que Jair Bolsonaro foi informado pelo deputado Luis Miranda (DEM-DF) e seu irmão, o servidor da Saúde Luis Ricardo Miranda, sobre a pressão por propina na compra de uma vacina contra a covid-19. Embora tenha assegurado aos irmãos Miranda que iria investigar, o presidente não deu nenhuma ordem nesse sentido.

As ruas começaram a ganhar expressão em maio, especialmente com o papel que a CPI da Pandemia passou a exercer apontando as responsabilidades do presidente sobre o caos na saúde. Protestos organizados pela esquerda levaram milhares de brasileiros às manifestações, especialmente nas capitais do país, em três ocasiões, mas ainda sem a adesão de partidos de centro ou da direita. É nesta encruzilhada que o Brasil se encontra, com os maiores partidos resistindo a se unir aos protestos, hoje dominados por eleitores do ex-presidente Lula.

Em seu livro O povo contra a democracia, o professor Yascha Mounk lembra que na maioria dos países os populistas só alcançam o cargo máximo porque seus adversários fracassam em concluir um pacto eleitoral. “Embora seja natural presumir que a ameaça autoritária possa nos ajudar a enxergar as coisas com mais lucidez, o oposto também é verdadeiro: aflitos e apavorados, os adversários dos populistas começam a fazer o jogo político da pureza, impondo testes… recusando-se a abraçar antigos aliados do populista”, diz ele.

Um passo importante foi dado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) que desde abril sinaliza que pode votar em Lula num eventual segundo turno com Bolsonaro. “Quem não tem cão caça com gato”, afirmou Cardoso. Nomes cotados para disputar as eleições de 2022 ouvidos pelo EL PAÍS nos últimos meses tinham claro que a união contra Bolsonaro é irreversível e não descartam abrir mão de candidatura em algum momento da corrida eleitoral para evitar que ele avance ao segundo turno.

O objetivo é evitar a reeleição de Bolsonaro, onde ele dobraria a aposta nas quebras democráticas, como aconteceu em outros países governados por líderes radicais. “Todos os Governos autoritários atuais, seja na Venezuela ou na Hungria, foram degradando aos poucos a democracia no primeiro mandato e o desmonte final veio no segundo”, lembra Pedro Abramovay, diretor da Open Society.

“Bolsonaro não tem convicção democrática, ele aceita [a democracia] por questão estratégica”, diz o cientista político Jorge Zaverucha, professor da Universidade Federal do Pernambuco. “Ele fica esperando para, se um dia os ventos soprarem para uma solução autoritária, ele embarcar nela”, acrescenta. À espera de tempestades, Bolsonaro avança em seus propósitos. Muitos brasileiros os percebem. E os temem.

Relaxar. E rir, rir, rir.

Desemprego de quase 15% da população? Bobagem: o ministro pôs a culpa no IBGE. Quase 600 mil mortos na pandemia? Bobagem: o ritmo se reduziu, morrem menos de mil por dia, no máximo o equivalente a cinco desastres do avião da TAM em Congonhas. Preços da comida multiplicados? Bobagem: quem comia carne nem lembra mais como era, quem comia frango come ovo, quem comia ovo irá, um dia desses, receber a nova Bolsa Família.

O Governo tem coisas mais importantes a fazer: por exemplo, condecorar a primeira-dama Michelle Bolsonaro com a Medalha do Mérito Oswaldo Cruz, destinada a pessoas com atuação destacada “no campo das atividades científicas, educacionais, culturais e administrativas” que obtêm “resultados benéficos à saúde física e mental dos brasileiros”. Além de sua esposa, Bolsonaro condecorou seus ministros da Educação, Comunicação, Turismo, Relações Exteriores. Outros beneméritos homenageados são os presidentes da Câmara e do Senado. E que é que fizeram para receber esta bela homenagem, com o nome de Oswaldo Cruz, pai da vacinação no Brasil?

O ministro do Turismo, por exemplo, levou cinco assessores para reunião internacional, onde havia três vagas para o Brasil, incluindo a dele. Um bom passeio é benéfico à saúde física e mental de qualquer pessoa, e os caronas são brasileiros. Foi este ministro que, na sanfona, fazendo a trilha sonora de Bolsonaro, destroçou a Ave Maria, alegrando quem odeia música.

E Michelle?

A primeira dama é um motivo de orgulho para seu marido presidente. Pois não é que, percebendo como o frio maltratava os moradores de rua, foi à luta e conseguiu 148 agasalhos para doar aos pobres? Como o passarinho jogando água com o bico num dos incêndios da Amazônia, ela fez sua parte. Foi de coração, fez o melhor que pôde. E conseguiu 148 agasalhos (número oficial) sozinha, sem ter sequer um Queiroz para ajudá-la.

Tudo sozinha, apenas com os meios de que dispunha: carro oficial, seguranças e motorista.

É a terceira condecoração que a esposa de Bolsonaro recebe em seu Governo. Já ganhou a Medalha da Vitória, que normalmente é concedida a quem contribuiu para divulgar a coragem dos soldados que combateram o fascismo na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, participou de conflitos internacionais defendendo o Brasil ou integrou missões de paz. Foi agraciada com a Ordem do Mérito da Defesa, destinada a homenagear quem prestou “relevantes serviços ao Ministério da Defesa ou às Forças Armadas do Brasil”. E agora recebe a Medalha do Mérito Oswaldo Cruz, categoria Ouro, a mais alta.

O caro leitor não sabe o que foi que Michelle fez para receber as medalhas? Vá pesquisar, uai! Este colunista é que não vai combater sua ignorância sobre o tema – até porque também não sabe.

O fato é que Michelle tem mais medalhas do que a olímpica Rebecca.

A volta do velho

Depois de exatas quatro semanas fora dos jornais, com inevitáveis e bem-vindos 85 anos, volto a enfrentar o doloroso infinito dos assuntos, pois cada crônica é uma resposta ao sobre o que escrever.

A escrita como dimensão básica da linguagem humana (escreveu não leu, pau comeu!) permite armazenar o mundo. Nasceu, dizem, na Suméria e tem sido essencial na fabricação de mandamentos e cláusulas pétreas, essas normas doadas por deuses, reis e juristas para os mortais — de cima para baixo, de fora para dentro. A escrita inventa a linearidade histórica e estampa as notícias deste jornal. Um dos seus mistérios é nos dar uma consciência da língua portuguesa e, com ela, de nós mesmos. A língua, como dizia Fernando Pessoa, é solo e pátria. Somos nós que a falamos ou é ela que fala por nós?

Descobrir sobre o que escrever é a dúvida letal dos que vivem escrevendo e escrevem para viver. A literatura não admite diletantes quando reinventa a vida conforme reza o código de honra dos autores.


Sentado, pois, diante da tela-papel do meu computador, confronto-me com uma consciência pintada de branco. Esse “branco” que qualifica a impotência dos que se sabem inventados e inventores por um idioma. Esse bando de contadores de histórias que ajudam a ver nossa maior contradição: poder escrever sobre tudo, exceto sobre a nossa morte. Talvez a glória do ato de escrever esteja na sensação de morrer quando o texto termina e de reviver quando começamos uma crônica — um episódio que engane o peso de estarmos todos a um passo da eternidade e do esquecimento. Essa inexorabilidade que os estúpidos nem sequer cogitam, mas que — com perdão do trocadilho — na sua verdade mortal constitui um brutal desafio, porque sabemos muito do morto, mas nada da morte. Ela que, vejam o tamanho da cambalhota, iremos viver ao morrer.

Não é por acaso que a virgindade da morte seja o estímulo para a especulação intelectual.

Morreu José Arthur Giannotti, um exemplar filósofo na casa de quem, um dia, jantei excelentes bifes tártaros, sua especialidade culinária, com Ruth Cardoso e Eunice Durham. Sua frase mais célebre ocorreu no governo de FH, de quem foi amigo. “Nunca pensei que meus colegas detestassem tanto a profissão que escolheram”, desabafou.

A advertência revela a decepção com o sistema universitário. Mas sabemos como é difícil resistir ao patriótico chamado do Brasil, em nome do qual tudo é permitido. Ademais, conforme descobri quando menino, se o dinheiro é de todos, é lógico que seus administradores e delegados, enganosamente chamados de “representantes”, tenham o direito legal de distribuí-lo para seus parentes e “bases”. Se assim não for, outros o farão, pois roubar é crime somente para os comuns. Para os eleitos, o assalto moleque aos recursos públicos vale até na pandemia.

Aliás, como não “arrumar-se”, se há uma imutável legislação desenhada para privilegiar os “defensores do povo” que viram barões, reis (e “mito”) protegidos por uma legislação que os cobre de privilégios? — de leis particulares que os isentam de culpa?

Nesse “Estado-Casa-Grande” de um Brasil que experimentou todos os regimes políticos, só evitamos cuidadosamente uma representação mais igualitária, menos familística e sectária.

Uma representatividade capenga, conforme viram Joaquim Nabuco, Antonio Paim, Raymundo Faoro e alguns outros, tem engendrado partidos que representam a si mesmos. E, pasmem, como mostra José Paulo Cavalcanti Filho num artigo publicado no Jornal do Commercio do Recife, há um bilionário “fundo partidário” pronto a consagrar novos aristocratas.

Sem assunto, lembro-me de uma fórmula conhecida dos jornalistas americanos que me foi enviada pelo correspondente Mac Margolis:

— O que causa ansiedade em escritores: não escrever/escrever. Quem lê o que escrevem. Rever o que escrevem/não rever o que escreveram. Não ter boas ideias/ter muitas ideias, mas não ser capaz de decidir escrevê-las. Ter uma grande ideia e preocupar-se que ela não é boa o suficiente para escrevê-la. Não ter tempo para escrever/ter tempo para escrever. Não ser resenhado/receber 999 resenhas e uma daquele f.d.p que disse que o título do que foi escrito era muito grande.

No Japão, a Olimpíada produz mil assuntos. O esporte desmancha campeões e hierarquias. Produz novos heróis e eventos a partir de estruturas. Num sentido preciso, o esporte desafia e transtorna raças e tipos. Nele, não há recursos legais, nem segundas instâncias. Seu ideal de igualdade é o oposto do que ocorre na vida política nacional.

Belo assunto para uma coluna, mas, como diria Kipling, isso é uma outra história...
Roberto DaMatta