sexta-feira, 19 de novembro de 2021

A tragédia que não será divulgada

O ano é 2023

Depois de um ano de paralisação e mais dois de instabilidade, Cristina, dez anos, menina feliz até o início de 2020, assistiu com olhos confusos ao fechamento da escola e ao consequente distanciamento dos colegas. Por algum motivo, – ainda a ser sondado através de muita terapia –, tão logo se afastou do convívio com seus iguais, passando o dia apenas entre adultos e notícias trágicas, ficou em seu quarto, cabisbaixa, sem ânimo para fazer qualquer coisa. Cristina, antes estudiosa, perdeu a concentração e se sentia tomada de desagrado constante.

Ainda na metade de 2020, o diagnóstico de depressão infantil chocou os pais da criança alegre. Hoje Cristina lida há quase três anos com a doença. E ninguém imagina sua origem.

 

Depois de um ano de paralisação e mais dois de instabilidade, Carla, trinta anos, ex-vendedora em uma loja de roupas, foi demitida aos vinte e sete, depois de cinco trabalhando para a mesma empresa. Nos difíceis anos posteriores, após sofrer com taquicardia, boca seca, pensamentos acelerados e insônia persistente, soube que possuía um doloroso transtorno de ansiedade, nunca antes sequer cogitado. Hoje, Carla, há quase três anos desempregada e mãe de uma criança de cinco, procura controlar por meio de medicação os desejos de ataque à própria vida. A razão do desequilíbrio ninguém desconfia.

Depois de um ano de paralisação e mais dois de instabilidade, Alfredo, 40 anos, dono de um pequeno comércio, até março de 2020 via o empreendimento crescer, prover empregos, garantir a mantença sua, da esposa grávida e de mais dois filhos pequenos. Após meses de prejuízo e de reiterados fechamentos, viu-se obrigado a demitir e lacrar, definitivamente, as portas do sonho. Desde então, Alfredo é despertado todas as noites por um terror nomeado transtorno do pânico; a madrugada é o momento em que um monstro interno deixa-se transparecer através da dor no peito e da sensação de falta de ar. A gênese da doença? Ninguém sabe.

Antônio, 90 anos, é bisavô de Cristina, amigo da família de Carla e ex-cliente de Alfredo. Ser humano sensível e empático, tomou para si a dor de todos eles e de mais milhões de depressivos, ansiosos e transtornados psíquica e emocionalmente. Ele nunca, em seu quase centenário, viu uma tão imensa avalanche de doenças silenciosas e sem causas admitidas ou divulgadas. Sofre pela morte interna dos parentes, conhecidos e dos desconhecidos a quem nunca se dará um parecer antes do suicídio.

Durante um bom tempo, Antônio assistiu todos os dias aos desdobramentos de uma pandemia. Achou legítimo que noticiassem: o povo precisa saber o que acontece. Só não entende a explicação para, no ano seguinte às diárias tragédias, silenciarem quanto a enfermidades excruciantes e de causas ignoradas…

Pensamento do Dia

 


O Mefisto do Brasil

Nesta semana, tive que pensar na obra-prima alemã Fausto, de Johann Wolfgang von Goethe. Nele, Mefisto, o diabo, diz em certo momento: "O Gênio sou que sempre nega! / E com razão; tudo o que vem a ser / É digno só de perecer / Seria, pois, melhor, nada vir a ser mais / Por isso, tudo a que chamais / De destruição, pecado, o mal / Meu elemento é, integral".

A essência deste Mefisto, então, é a destruição. Ele se deleita em demolir o que outros criaram. Ele é um cínico.

O governo Bolsonaro aboliu há poucos dias o Bolsa Família sem nenhuma necessidade e o substituiu por um programa chamado Auxílio Brasil. Ele vai durar um ano, até depois das próximas eleições, o que, naturalmente, não é coincidência. É a tentativa de Bolsonaro de "comprar" votos.

O Bolsa Família foi um dos programas governamentais de maior sucesso na história do Brasil. Não apenas salvou milhões de pessoas (especialmente mulheres e crianças) da fome e da pobreza extrema, mas deu-lhes, no melhor dos casos, a oportunidade de ascender socialmente. O Bolsa Família foi elogiado pelas Nações Unidas e recomendado a outros países. Foi um programa social que deu certo − e o Brasil era admirado internacionalmente por essa conquista.

Após 18 anos, portanto, não havia motivo nenhum para abolir o Bolsa Família. Bolsonaro provavelmente acabou com o programa por pura maldade e ciúme. Bateria com seu caráter mefistofélico. Em 2019, ele disse nos EUA: "Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa".

O Bolsa Família naturalmente não é a única coisa positiva que Bolsonaro destruiu. O desmatamento da floresta amazônica está atingindo novos recordes dramáticos. A principal razão disso é o desmantelamento sistemático de Ibama, ICMBio e Funai − órgãos que faziam um excelente trabalho até Bolsonaro chegar ao poder.

O seu governo está destruindo a ciência. Mais recentemente, cortou R$ 600 milhões, o que corresponde a 87% das verbas para a área. Especialistas já alertam para um colapso da pesquisa no país. "Estamos à beira de um apagão da ciência", diz, por exemplo, a presidente da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG).

Com as nomeações de vários ministros incompetentes e ideologizados para a pasta da Educação, o sistema educacional brasileiro foi ainda mais enfraquecido do que já era. Agora, o Enem passa por uma profunda crise por causa da interferência política de Bolsonaro. Da mesma forma como o Bolsa Família e o trabalho engajado do Ibama, o Enem era parte de um Brasil que deu certo.

A fé na democracia brasileira foi prejudicada gravemente pelo próprio presidente pelas teorias conspiratórias infundadas de que o sistema de votação eletrônico do país teria sido supostamente manipulado. Será ainda necessário mencionar que as urnas eletrônicas no Brasil também têm prestado um serviço fiável e rápido ao longo dos anos? As eleições no Brasil decorrem muito mais eficientemente do que nos EUA. Mas Bolsonaro também queria acabar com elas.

As políticas de família e de mulheres foram torpedeadas pela pastora evangélica radical Damares Alves como ministra. Damares esvaziou as verbas para combate à violência contra a mulher e usou apenas metade do dinheiro para ações de proteção e igualdade de direitos. Não usou nenhuma das verbas para políticas LGBT em 2020. Em vez disso, praticou nepotismo ao convidar amigos dela para viagens oficiais e gastar a verba de vocês, queridos contribuintes!

Por último, mas não menos importante: Bolsonaro não só enfraqueceu o sistema público de saúde do Brasil, relativamente bom para um país em desenvolvimento, diante da pandemia, mas também é responsável pela morte de milhares de brasileiros. Foi isso que constatou a Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a pandemia. Bolsonaro não se importa – mas também não se espera outra coisa de um homem que chegou a desejar a morte violenta de 30 mil brasileiros.

Em três anos, Bolsonaro arruinou completamente a reputação internacional do Brasil. Já não se é mais invejado no exterior por morar no Brasil. As pessoas dizem: "Ah, Brasil, onde elegeram este louco que está destruindo a Amazônia e dizendo um monte de grosserias".

A destruição das relações internacionais do Brasil é a razão pela qual Bolsonaro não visita os EUA ou a Europa. Ninguém quer recebê-lo. Em vez disso, viaja às ditaduras árabes, onde suas piadas homofóbicas pegam bem.

O Brasil estava muito longe de ser perfeito, claro, mas havia conseguido construir coisas notáveis em muitas áreas: Bolsa Família, Ibama, Inpe, SUS, Enem, uma reputação internacional como mediador e como um país amigável e tolerante.

O cínico Bolsonaro tem feito de tudo nos últimos três anos para destruir essas conquistas. Está em sua natureza, ele não pode evitar. Ele é como o diabo Mefisto do Fausto de Goethe. "Por isso, tudo a que chamais / De destruição, pecado, o mal / Meu elemento é, integral."
Philipp Lichterbeck

O touro, o gado e a boiada que passa

Uma réplica cafona e dourada do Charging Bull, a escultura de bronze que desde o fim dos anos 1980 foi implantada na frente da Bolsa de Nova York, virou alvo de protestos e memes nos últimos dias. Poucas coisas poderiam ser uma síntese mais acabada do momento de completa dissonância cognitiva por que passa o Brasil.

A “obra de arte” (sic) foi “presente” de um economista que se autointitula Tourinho de Ouro. Logo não é presente, mas autopropaganda. Foi paparicada por expoentes do mercado financeiro brasileiro.

O touro, vejam só, é considerado um símbolo de pujança e confiança do mercado em ganhos e altas realizações.



Mas, no momento, os investidores estão fugindo do Brasil, ressabiados pela inflação descontrolada, pelo calote nos precatórios, pelo desemprego recalcitrante e pelo desajuste fiscal deflagrado pelo governo Bolsonaro.

Os mesmos entusiastas que postaram selfies com o touro cafona fazem um spinning job — como nós, jornalistas, chamamos o trabalho de passar em off informações e análises — mostrando os efeitos devastadores que haveria no curto, médio e longo prazos com a aprovação da PEC dos Precatórios, na esperança de que a imprensa faça por eles o trabalho de tentar frear a proposta no Senado.

É graças à condescendência excessiva e à covardia de setores como o empresarial e financeiro com os descalabros de Bolsonaro, não só na área econômica, mas na destruição de toda e qualquer política pública no país, que rumamos sem nenhum freio visível para o estouro da boiada.

Enquanto os mauricinhos de gel e colete de náilon da Faria Lima se congratulam em torno de um símbolo da nossa sabujice, como esse touro, Bolsonaro vai arrebentando com os marcos de responsabilidade fiscal construídos ao longo de sucessivos governos.

Além de escancarar o cinismo e a falta de visão da realidade por parte do mercado, o boi anabolizado grita o escárnio da ostentação dourada num país em que a fome voltou a ser uma realidade para milhões de brasileiros.

Não à toa virou, e tomara que seja para sempre, um ponto de realização de protestos dos movimentos sociais.

Bolsonaro acaba de implodir o Bolsa Família, política social permanente de transferência de renda, para colocar em seu lugar um auxílio — nome paternalista, antigo, que já remete a favor, a beneplácito político-eleitoreiro — provisório, mal-ajambrado, cuja fonte de receita ainda é incerta, além de flagrantemente inconstitucional.

Cadê o gado faria-limer para protestar contra isso, que claramente piorará ainda mais os indicadores tanto fiscais quanto sociais do país, à custa apenas de um capricho e de um ato desesperado de um presidente incapaz de se reeleger?

Enquanto aqueles que detêm o PIB e o poder de influenciar politicamente o Congresso não se derem conta de que essa postura bovina em relação ao governo os levará ao precipício junto aos mais pobres, a boiada seguirá passando.

Bolsonaro, animado pelo aval que teve da Câmara para a PEC criminosa da pedalada nos precatórios, já fala em reajuste indiscriminado de salários para servidores. Paulo Guedes faz que não escuta e sai louvando os benefícios do congelamento de salários! Parece que o ministro da Economia acredita que, se fizer o jogo do contente, o presidente desistirá de arrombar o cofre. Pensamento mágico.

Os promotores do touro de fibra de vidro pintado de dourado berrante são os mesmos que calculam em mais de R$ 1 trilhão o rombo que o calote nos precatórios legará até 2036. Não é preciso ser expert em finanças para entender o que isso representa em relação a programas como o Auxílio Brasil. E, ainda assim, a boiada passa, enquanto avançamos dia a dia no ridículo e no descrédito.
Vera Magalhães

Pequeno canalha

O pior canalha é o pequeno canalha. O anão moral. Medíocre, dissimulado, frustrado, morre de inveja dos que têm atributos que lhe faltam, o que é muito comum. Perdedor em tudo e inconformado com a sua sina de perdedor faz-se canalha para purgar os pequenos demônios da inveja que corroem suas entranhas.


É capaz de cometer todas as pequenas perversidades que conhece para sublimar o sofrimento que o destino biológico lhe impõe. A falta de neurônios acompanhada da indigência cultural do meio são condições ideais para o surgimento do pequeno canalha.

Um homem sem atributos, fisicamente mal dotado, de inteligência mediana, desagradável no aspecto e na voz metálica, compreende a sua limitação e se rebela contra todos que lhe pareçam mais aquinhoados pela sorte.

Imaginem um professor de literatura que almeja a glória do grande escritor. Ele tenta realizar seu sonho, escreve contos e os transforma em livro. Espera aplausos e o máximo que colhe é a indiferença. Agastado com as críticas que lhe revelam a absoluta falta de talento, devolve na mesma moeda. Transforma-se em crítico e produz laxativas apreciações sobre a literatura alheia.

Tenta mais uma vez. Produz um romance. Vira motivo de chacota. Seus personagens são pífios, tão vazios e desinteressantes quanto ele. Vai à loucura e chega a pensar no suicídio. Mas o pequeno canalha não tem coragem nem dignidade para tanto. Logo atribui ao mundo as suas mazelas. Ou seria a síndrome de Adison a responsável pela sua falta de inspiração? Não. A síndrome de Adison só explica a impotência sexual e manchas na pele que parecem vitiligo.

Fracassado, aposta tudo em relatos sobre a vida doméstica e as agruras de sua mãe no segundo casamento. Quer provocar lágrimas, só consegue o riso dos poucos leitores que imaginam a pobre senhora em esforços para cumprir os deveres sexuais exigidos por um marido de hábitos toscos da vida rural. Há nobreza no sofrimento dessa mulher que se submete de todas as formas para garantir proteção ao filho.

À noite, insone, atormentado, pergunta-se porque é assim piegas e medíocre. Põe em dúvida sua convicção religiosa. Deus não pode ter sido tão cruel ao lhe dar menos em tudo, do tamanho do pênis aos neurônios da região frontal.

O pequeno canalha sofre. Gostaria de se diferenciar na multidão. Ser reconhecido por algo que só ele tenha produzido. Nada. Aos poucos só é notado pelas pequenas canalhices que cometeu. Resta-lhe a fuga. Covarde para encerrar sua grotesca participação de forma definitiva, procura um lugar onde possa parecer mais culto para satisfazer o pequeno ego com as glórias da província. E se distrai em exercícios para conceber um epitáfio que lhe louve na morte o que gostaria de ter realizado em vida.
Fabio Campana (Revista Ideias- 2011)