quarta-feira, 27 de maio de 2020

Pensamento do Dia


Bolsonaro segue a receita de Mussolini

Se há um insulto que, de tão abusado, sofreu enorme desvalorização é o de fascista. No começo, designava as milícias do italiano Benito Mussolini, que marcharam sobre Roma em 1919 e o levaram ao poder. Aos poucos, tornou-se sinônimo de regime totalitário e, com o nazismo, chegou ao máximo da brutalidade. Durante o século 20, no entanto, o epíteto se generalizou e passou a designar qualquer pessoa que não seja "de esquerda". É um leque que abrange dos hidrófobos de direita assumidos aos vagamente reacionários, conservadores, centristas, liberais, neoliberais e até social-democratas.

Todo mundo já foi um dia chamado de fascista, tanto o PM que abre a pontapés a porta de um barraco na favela quanto o guarda que nos multa no trânsito. Deixou de ser insulto. Com isso, os fascistas de verdade —que professam com fervor e devoção os princípios do fascismo— ficaram num limbo que lhes permite operar com desembaraço. Talvez seja hora de defini-los mais tecnicamente.

O fascista é nacionalista. Acredita numa conspiração global contra os valores e riquezas de seu país. Por isso, e por não confiar no mercado, que é internacionalista, apoia uma pesada intervenção do Estado na economia. Combate ferozmente os políticos e juristas, para eles um bando de corruptos, exceto os que servem ao seu líder —este sempre um político e/ou militar carismático, com um discurso "patriota", messiânico, moralizante e escorado em valores imprecisos, como "Deus" e "família". Os que não seguem tais linhas são comunistas.

O fascista pratica o culto da ação e da agressão e prega o armamento do "povo" (suas falanges) contra uma hipotética ditadura. Na verdade, visa à tomada de um poder acima da lei e até do Exército —a própria ditadura.

Se tal descrição lhe parece um déjà vu, essa era a receita de Mussolini. Deu certo por muitos anos. Mas terminou com ele de cabeça para baixo.

Ruy Castro

Crime ou interferência na PF do RJ?

A PF fez buscas na residência do governador Wilson Witzel porque as suspeitas contra ele são sólidas ou para agradar a Jair Bolsonaro? Não me sinto ainda em condições de cravar nenhuma das opções.

Pandemias são o sonho de consumo dos corruptos. Da noite para o dia, processos licitatórios são dispensados e equipamentos médicos passam a ser disputados ferozmente por vários países, fazendo com que os próprios preços deixem de funcionar como valor de referência. Quanto se pode pagar por um ventilador nessas condições? Seria uma surpresa se as quadrilhas que sempre fraudaram as compras públicas não procurassem tirar vantagem dessa conjuntura.

Witzel está envolvido nisso? Não sei. Mas sei que, assim como ninguém deve ser considerado culpado antes de um julgamento, ninguém deve ser considerado acima de qualquer suspeita e blindado contra investigações —viu, general Heleno?

Isso significa que a operação da PF é legítima? É provável, mas há elementos que fazem soar sinais de alarme, a começar da própria existência de uma enorme polêmica em torno da interferência do presidente sobre a PF. É também estranho que uma deputada bolsonarista tenha praticamente anunciado a operação na véspera de sua realização.

E isso nos leva ao ponto central desta coluna. Muitos temiam que, no poder, Bolsonaro deflagraria um autogolpe. Nunca acreditei muito nisso. Faltam-lhe as condições políticas e a competência para fazê-lo. Raras vezes tivemos um governo tão fraco.

O problema é que, mesmo perdido, dedicando-se a questiúnculas pessoais e dando vazão a manias e paranoias, Bolsonaro promove desgastes institucionais. Sua fixação com a cloroquina minou a respeitabilidade técnica do Ministério da Saúde; suas dedadas na PF fazem com que duvidemos das motivações de uma instituição que vinha ganhando credibilidade. E a lista não acaba aí. É um belo estrago para um presidente tão pequeno.

Militares, volver!

O quanto o ativismo militar conturbou a vida da nação é uma questão já decidida pela história. Interessa agora saber por que os militares deixaram de se ater exclusivamente às suas funções profissionais e constitucionais para assumir protagonismo político. Também faz-se necessário alertar sobre os riscos que esse caminho embute, capaz de afetar a imagem das Forças Armadas, comprometendo, assim o ativo conquistado com a democratização do país, quando recuaram organizadamente para os quartéis.

Seu ativismo, em parte, é consequência do fracasso dos anos do lulopetismo e da crise ética que levou de roldão partidos e lideranças civis, políticas ou empresariais. A adesão de oficiais da reserva e da ativa a Jair Bolsonaro se deu por identificação a determinados valores, mas também pela crença de que poderiam exercer um papel moderador dentro do governo. E dariam a ele um sentido de racionalidade. Diga-se, historicamente as Forças Armadas atuaram como “poder moderador” até 1988, quando pela Constituição esse papel passou a ser do Supremo Tribunal Federal.

De fato, os generais do governo começaram conseguindo impor limites aos jacobinos do bolsonarismo. Mas, em vez de domarem Bolsonaro, parece terem sido por ele domados. A linha divisória entre militares em atividade civil e a instituição Forças Armadas vem sendo borrada aos poucos.


Para o bem ou para o mal – e a vida está demonstrando que para o mal – tudo o que o grupo militar palaciano faz respinga na imagem da instituição. As Forças Armadas são o pessoal da ativa, não há dúvidas, e ela mesma se considera assim. Quando os generais da ativa, Luiz Eduardo Ramos e Eduardo Pazuello, respectivamente ministro-chefe da Secretaria de Governo e ministro interino da Saúde, vão a uma manifestação de apoiadores do presidente e presenciam palavras de ordem contra a democracia, é impossível não ver ali o endosso tácito da instituição. O mesmo acontece quando o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, divulga uma nota intimidatória para o STF, com o aval do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva.

Essa confusão pode gerar um conflito de interesses entre o núcleo palaciano e a cadeia de comando da tropa. Sobretudo porque os palacianos vendem a narrativa de que há uma conspiração para não deixar Bolsonaro governar, capitaneada pelo presidente da Câmara Rodrigo Maia, por Alexandre Moraes e, agora, Celso de Mello, ambos ministros do Supremo.

Outro ponto de atrito é a hipertrofia de militares em cargos governamentais, inclusive do pessoal da ativa. Reconheça-se, se deu em parte pela absoluta indigência do bolsonarismo em matéria de gestores capacitados. Mas, como é do ser humano, isso cria interesses próprios e estimula um apadrinhamento de tipo novo. Cada general ou coronel nomeado para o governo, leva também o seu staff.

Ora, se o premiado é da ativa, ele passa a ter uma remuneração bem superior a quem tem a mesma patente, mas não foi agraciado com um cargo na administração. Isso é o germe para despertar reivindicações salariais na tropa, tema que no passado foi causa de várias crises, como a do Manifesto dos Coronéis, de 1954. Ou para despertar invejas e subserviências.

Por hierarquia e disciplina, os militares não podem criticar o presidente, que é o chefe supremo das Forças Armadas. Mas é inegável a quantidade de confusões geradas por Bolsonaro. A ideia de armar milícias com fins políticos, portanto a criação de um poder militar paralelo, é inconcebível para o oficialato, uma vez que o monopólio da segurança deve estar nas mãos do Estado, das Forças Armadas, em caso de defesa da nação. Por muito menos elas se opuseram aos “grupos dos onze” de Leonel Brizola.

O mal que Bolsonaro está fazendo às Forças Armadas é enorme. Elas atrelaram o seu destino a um governo que é a própria negação aos princípios do positivismo, no qual a racionalidade e a valorização da ciência são dois traços marcantes

As Forças Armadas não são instituição do governo de plantão, mas do Estado brasileiro.

Somos um país de fronteiras secas imensas, de um mar territorial gigantesco. Garantir a inviolabilidade aérea, territorial, marítima são os principais deveres das Forças Armadas. São procedentes as preocupações dos oficiais quanto à defesa na Amazônia Legal. A região é fronteiriça com a Venezuela, cuja crise pode se desdobrar em guerra civil.

Agregue-se ainda: a Amazônia tem sido um campo aberto ao contrabando de minérios e à biopirataria. Tráfico de drogas e de armas, contrabando de mercadorias, também são problemas nas fronteiras. Tudo isso é séria ameaça à soberania nacional. Os militares querem e podem enfrentá-la, desde que lhes sejam dadas as condições, em termos de quantidade de tropas e de armamento moderno.

O país precisa que as Forças Armadas deixem a política de lado e se voltem exclusivamente para suas missões constitucionais.
Hubert Alquéres  

Resistir é preciso

O presidente Jair Bolsonaro sente-se cada vez mais à vontade para revelar à Nação suas intenções autoritárias. A bem da verdade, decoro e respeito à ordem constitucional jamais foram traços do caráter do mau militar e do deputado medíocre. Por que haveriam de ser do presidente da República? O elevado cargo que ora ocupa não mudou a personalidade de Bolsonaro; foi ele quem rebaixou a Presidência para acomodá-la à sua estreiteza moral, cívica e intelectual. Como se vê em suas palavras e atitudes, se Bolsonaro tem na cabeça alguma ideia de como conduzir o País, é certo que não o levará a bom porto. E basta assistir à inacreditável reunião ministerial trazida a público por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF) para perceber que a eventual ilegalidade dos meios para a consecução de seus fins não passa de desprezível detalhe.

O melhor que pode acontecer ao País nesta encruzilhada da História é que as perigosas intenções do presidente permaneçam onde estão, ou seja, no plano das intenções. Isto só será possível se as instituições se mantiverem firmes e resistirem com coragem e espírito público às desabridas pressões do atual chefe do Poder Executivo. É hora de as Forças Armadas, o Congresso, o STF, a Procuradoria-Geral da República (PGR) e a imprensa profissional exercerem suas atribuições republicanas sem desviar um milímetro das prerrogativas que a Constituição lhes confere. Não é fácil, mas resistir é preciso.


Contando com o estímulo de Jair Bolsonaro, o bando de celerados que o apoiam e batem ponto nas redondezas dos Palácios do Planalto e da Alvorada recrudesceu os ataques aos jornalistas que cobrem a Presidência. Tão virulentos foram esses ataques que os mais importantes veículos de comunicação do País decidiram suspender a cobertura jornalística naqueles locais. Longe de se tratar de “recuo” ou de simples “manifesto” da imprensa contra o governo, a decisão visa à proteção da integridade física dos jornalistas, que só está sob risco porque o cidadão Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), não exerce a contento o seu dever de garantir a incolumidade de todos os que estão em áreas de segurança nacional. As agressões sofridas pelo fotógrafo Dida Sampaio, do Estado, e por jornalistas da Folha de S.Paulo e da TV Bandeirantes ilustram bem do que os camisas pardas do bolsonarismo são capazes.

Mas as ameaças à liberdade de imprensa não se dão apenas pela coação física e pelo assédio moral praticados contra os jornalistas de campo. William Bonner, editor-chefe e apresentador do Jornal Nacional, da Rede Globo, tem sido vítima de chantagens e fraudes por meio do uso de dados pessoais de seu filho. De um número telefônico com prefixo 61 (Brasília), o jornalista recebeu mensagens com dados fiscais sigilosos seus e de sua família. O objetivo dessas ações, obviamente, é tolher o livre exercício da profissão. Não se sabe a autoria dos crimes, mas não se ouviu uma só palavra de repúdio de Jair Bolsonaro ou de qualquer membro de seu governo ao ato vergonhoso e covarde. É com tais vícios morais que os bolsonaristas e seus inocentes úteis se associam?

Como a imprensa, o Congresso, a PGR e o STF, entre outras instituições de Estado, têm sido constrangidos por Bolsonaro a afrouxar a independência e os controles constitucionais que regem o sistema de freios e contrapesos. O desassombro dos avanços autocráticos do presidente é tal que faz crer que ele realmente se vê como um ungido para governar o País como melhor lhe aprouver, devendo satisfações apenas a seus caprichos. Não é hora de tibieza. A resposta das instituições deve ser à altura das ameaças. Ao tomar posse como presidente do Tribunal Superior Eleitoral, o ministro Luís Roberto Barroso afirmou que “não há volta no caminho da estabilidade institucional e democrática”. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, disse que “prudência não pode ser confundida com hesitação”, enfatizando que a “preservação da democracia” não será descuidada pela Casa das Leis.

As forças vitais do País deveriam estar inteiramente voltadas para a tarefa de salvar o maior número de vidas possível em meio à pandemia. Desafortunadamente, o Brasil hoje tem de lutar pela vida e pela liberdade a um só tempo. Mas se é assim, à luta, pois.

Messias salvador do Brasil


Aos ex-amigos, cúmplices da barbárie

Não sei quando tudo isso começou. Quando foi que pessoas que eu gostava, convivia, conversava afetuosamente e, em alguns casos, até admirava pelo exercício talentoso de seus ofícios, se transformaram em seres irracionais, irresponsáveis e levianos, defensores de ideias autoritárias, mesquinhas, rasas , preconceituosas, medievais e, em muitos casos, até fascistas. Quando foi, afinal, que pessoas que tinham uma conduta social equilibrada e pareciam olhar o mundo pela mesma janela que você – cada um à sua maneira, claro – viraram esta coisa esquisita que já não reconheço como próxima de alguma civilidade?

Em Kafka, um sujeito acorda pela manhã transformado em um inseto asqueroso. A família reunida, cada um em seu papel, mas o filho surge como uma anomalia, de um dia para o outro, sem qualquer explicação. Kafka foi muito mais fundo nessa história do que esse filme de quinta categoria ao qual estou me referindo, mas confesso que não vi como a coisa se deu, apenas acordei um dia e vi como o meu mundo anda cheio de insetos repugnantes. De radicais defensores de ideias tão obtusas quanto irresponsáveis. Também não foi assim tão de repente, a coisa vem acontecendo há um bom tempo, é verdade, mas hoje sinto como se esses bichos escrotos tivessem se consolidado à minha frente. Eu os enxergo em toda a sua pequenez.

O estopim desta clarividência – em relação à abjeta transformação de certos seres humanos – foi o vídeo da fatídica reunião ministerial do dia 22 de abril, em que o presidente reuniu sua claque para tratar do enfrentamento da crise da pandemia, assunto sobre o qual não se falou durante mais de duas horas de sandices, agressões e exibição de ideias golpistas. O vídeo é assustador, mas não é dele que quero falar, não em primeiro lugar. É da reação de pessoas que, voltando ao primeiro parágrafo, revelaram-se pior do que o farsesco personagem central da trama. Faço um voo no tempo. Em 1993, como bem lembrou aqui um querido amigo, eu escrevi uma crônica na IstoÉ Minas que começava assim: “Não posso reclamar dos meus amigos: são os mais estranhos que eu poderia arrumar”. No texto, falo de alguns, invento outros (que são, na verdade, bem reais), presto meu tributo à esquisitice de tantos. O fato é que gosto de gente estranha, diferente, só para ficar claro que não me compraz apenas a companhia de gente normal. Eu diria, até, que os normais me interessam pouco. Só que uma coisa é ser estranho – e outra é ser estranhamente nocivo.


Muito bem, de ontem pra hoje me peguei lendo opiniões de muita gente sobre o tal vídeo onde se pregou a desobediência sanitária na base da porrada, a prisão de representantes eleitos pelo povo, a desqualificação de adversários, a intromissão na Polícia Federal para proteger os entes queridos, o desmantelamento das leis ambientais na calada da noite etc etc etc. Um monte de gente reagiu dizendo que o vídeo é o passaporte para a reeleição do Ogro. No meio desta gente que aplaude e acha adequado esse conjunto de sandices há pessoas que conheço. Tem artista, designer, arquiteto, advogado, fotógrafo, médico, engenheiro, empresário, gente da moda etc etc. Pessoas com quem já convivi, conversei, compartilhei opiniões. Pessoas que, em alguns casos, cheguei a admirar. Que chamei de amigos. Como é que essas pessoas se tornam, de repente, cúmplices de uma barbárie colossal?

Convivo com conservadores e até com pessoas de uma direita civilizada, educada, capaz de divergir sem agredir. Os ex-amigos não se colocam no campo da direita civilizada. Porque Bolsonaro não é isso. Não é um conservador, nem um bocó simplesão, um sujeito sem modos e sincerão, que gosta das coisas direitinhas. Um sujeito que quer o bem do país. Ele está longe desse figurino. Ele não é nem da direita. Bolsonaro é o radical fundamentalista da extrema direita em sua pior versão (não esqueçamos: ele já defendeu publicamente o fechamento do Congresso e o fuzilamento de adversários políticos, em entrevista a uma emissora de televisão, em 1999 – “para dar jeito no Brasil, só matando uns 30 mil”, o que incluiria, no caso, até mesmo o então presidente Fernando Henrique Cardoso). Ele tem como herói o único torturador reconhecido e condenado como tal no Brasil.

Mas isso é história já sabida.

Voltemos ao vídeo estarrecedor, tal o seu caráter pedagógico ao revelar, com clareza euclidiana, o que pensam os bolsonaristas e o que eles estão tramando, em todas as frentes – na saúde, na educação, na segurança pública, na questão ambiental, na diplomacia internacional, na convivência com a democracia. Está tudo lá, sem retoques. E há quem diga: “antes do vídeo eu era 100% Bolsonaro, agora sou 500% Bolsonaro”. E daí?

Daí que não suporto gente assim. Fui capaz de entender aqueles que se desapontaram com os rumos da economia e com as revelações sobre corrupção no centro do poder, prática secular no país. Mas era preciso optar pelo esgoto, pela escuridão, a ignorância e a truculência? Eu divirjo respeitosamente de conservadores. De fascistas, torturadores e retrógrados eu quero distância. Não fui eu que tachei Bolsonaro de o pior líder mundial da atualidade. Nem foi a mídia esquerdista ou comunista que afirmou que ele é hoje a maior ameaça ao mundo. Quem está chocado com o Ogro são eles, os jornalões da direita global. É o The Economist, a Bíblia dos liberais da economia. É a maior referência do jornalismo econômico no mundo – o Financial Times. É o The Guardian. O New York Times. É a grande mídia conservadora do mundo que está assustada com o baixíssimo nível de quem ocupa a presidência no Brasil.

A reunião ministerial de 22 de abril de 2020 está fadada a entrar para a história da República brasileira. Um registro cru dos intestinos da gente que nos governa. Um acinte de tal ordem que não cabe mais qualquer dúvida: quem é Bolsonaro que assuma, de uma vez por todas, o ônus de carregar o pacote de ideias que ele encarna. Sem mimimi. Não tem mais disfarce ou joguinho de cena. Depois de ver aquelas imagens podres não há saída: ou se está de um lado ou de outro. Ou se defende aquelas ideias ou se é contra. Simples. Mas necessário.

Necessário porque o mundo é uma construção coletiva, queiram ou não. E o mundo no qual eu acredito e pelo qual luto é imperfeito e cheio de defeitos, mas é um mundo de razoável civilidade. De valores consagrados universalmente. E até de razoável otimismo. Só os muito cretinos ou intelectualmente falsos são capazes de negar que, aos trancos e barrancos, a sociedade brasileira vinha construindo um percurso de avanços desde a redemocratização. Estão aí conquistas como a criação do SUS, a estabilização da moeda, a universalização do ensino, o avanço dos direitos humanos, os programas de redução da desigualdade social (como o Bolsa Família), entre tantas outras. Hoje vivemos a ameaça da degringolada geral. A ordem é destruir o que está aí. É interromper o fluxo que nos impelia a ser melhores do que tínhamos sido até então.

Não quero este mundo medíocre que tentam nos empurrar goela abaixo, definitivamente. Confesso a minha impossibilidade de conviver sadiamente com quem quer me matar e aos meus semelhantes. Aos que continuam apoiando o genocida de plantão, um convite à coragem. Isso mesmo, assumam que Bolsonaro os representa em seus valores e ideias. Aos que aplaudiram as infâmias ditas no vídeo, sugiro que façam camisetas com os seguintes dizeres:

EU SOU BOLSONARO E EU APOIO:
– A tortura e os torturadores
– O povo armado contra as medidas de controle da epidemia
– A prisão de governadores e ministros do Supremo
– O uso da Polícia Federal para proteger minha família e meus amigos
– A quebra das leis de proteção ambiental
– Qualquer ataque à cultura, às artes e aos artistas
– O sucateamento da universidade pública e da ciência
– O extermínio dos povos indígenas
– A milícia e os heróis milicianos
– A censura à produção intelectual
– As hostilidades contra a Imprensa e os jornalistas

Façam isso, ex-amigos e conhecidos. Saiam às ruas (sem máscaras, obviamente) com esses dizeres estampados em suas camisetas e faixas ornadas de patriotismo. Pois é isso, de fato, o que vocês estão defendendo. Quem apoia Bolsonaro é cúmplice desse pacote de horror. Nessa altura da nossa história, não existe meio termo. Ou você é ou não é a favor dessas ideias.

No momento em que escrevo o Brasil é o segundo país do mundo em casos confirmados de contaminação pelo coronavírus. São quase 350 mil infectados e mais de 22 mil mortes (amanhã serão muito mais). Enquanto isso, o presidente que os traidores da democracia elegeram cospe seus perdigotos defendendo que se arme a população para lutar contra as medidas de contenção da epidemia. Se isso não é a barbárie, então o que seria?
Jose Eduardo S Gonçalves

As lições da gripe espanhola para evitar uma segunda vaga

À medida que o País regressa, lentamente, ao seu ritmo normal, questionam-se os riscos de reabrir a economia demasiado cedo, o que poderá conduzir a uma segunda vaga da epidemia causada pelo coronavírus Sars-CoV-2.

Para evitar esse cenário, a Universidade do Michigan, nos EUA, está à procura das lições deixadas pela gripe de 1818, que figura na história como a pandemia mais mortífera desde que há registos. Em todo o mundo, matou cerca de 50 milhões de pessoas.


De acordo com o departamento de História de Medicina da universidade, que está a estudar o impacto da Gripe Espanhola em 43 cidades norte-americanas, as localidades que encerraram escolas e proibiram o ajuntamento de multidões tiveram menos casos da doença e, consequentemente, uma taxa de mortalidade mais reduzida.

Também em 1918 se generalizou a obrigatoriedade de usar máscara. São Francisco, por exemplo, impunha multas a quem não as usasse em público – uma medida que desencadeou protestos na cidade californiana.

Apesar da contestação, a utilização de máscara provou-se eficaz o combate à pandemia de então.

No entanto, as medidas desiguais de contenção da doença conduziram a uma segunda vaga no final de 1918. Tendo começado nos acampamentos militares, as hierarquias do exército estariam mais preocupadas com os confrontos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) do que com o combate à pandemia.

A cidade de Filadélfia, no estado da Pensilvânia, por exemplo, decidiu manter a realização de uma parada, no final de setembro, apesar de o vírus continuar extremamente ativo. Segundo os investigadores da Universidade do Michigan, só esse acontecimento terá provocado cerca de mil mortos, no espaço de dez dias. Filadélfia ficaria na história como uma das cidades norte-americanas mais atingidas pela gripe.

Muitas cidades levantaram as restrições para celebrarem o Armistício, em novembro daquele ano, com consequências semelhantes.

Ao The Washington Post, um dos líderes desta investigação, J. Alexander Navarro, explicou que uma das principais diferenças entre as duas épocas é que, em 1918, era mais fácil encerrar serviços como lojas, restaurantes ou estruturas culturais porque a economia estava assente, sobretudo, na manufatura. Hoje, existe uma dependência muito maior do setor dos serviços. “Por isso, acreditamos que o impacto económico da pandemia será muito mais severo hoje do que em 1918”, defendeu o investigador.

Apesar de sublinhar a importância dos avanços da medicina e da tecnologia no último século, Navarro alerta para as semelhanças no que diz respeito ao comportamento humano: “Haverá um grande clamor em torno do regresso à normalidade”. Mas, se o desconfinamento não for feito com responsabilidade, “as consequências para a saúde pública poderão ser terríveis”.

A OMS considera a possibilidade de uma segunda vaga cada vez mais improvável.

Milhões sustentam a esperança

Se apurássemos o ouvido, ouvíssemos, no meio da balbúrdia dos impérios e das nações, como um fraco ruído de asas, a doce agitação da vida e da esperança. Dirão uns que esta esperança é trazida por um povo, outros por um homem.

Eu creio que é, pelo contrário, suscitada, reanimada, sustentada por milhões de solitários cujas ações e obras, em todos os dias, negam as fronteiras e as mais grosseiras aparências da história, para fazer resplandecer fugitivamente a verdade sempre ameaçada que cada um, por sobre os seus sofrimentos e alegrias, constrói por todos
Albert Camus

Lições de mais um dia intenso

O Brasil supera a cada dia o grau de tensão da véspera. Ontem, o dia já começou com a operação contra o governador do Rio, Wilson Witzel, e todas as dúvidas que a cercaram. Depois de dias inteiramente crispados, o país se viu logo de manhã entre dois fogos: é preciso investigar qualquer suspeita de corrupção, principalmente no Rio, mas a Polícia Federal não pode se transformar na polícia política de Jair Bolsonaro. O bolsonarismo ajudou a espalhar a dúvida sobre a operação, com as declarações de Carla Zambelli e as comemorações do próprio presidente.

No meio da confusão do dia, o discurso do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, pareceu um oásis. Era alguém lembrando que líderes lideram e que as instituições têm papéis a cumprir nos momentos trágicos do país. Maia começou fazendo o que Bolsonaro nunca fez, demonstrou sentimento em relação aos que morreram, aos que não puderam cumprir o ritual do luto, aos que se afligem com os seus nas UTIs, e aos profissionais da saúde que lutam na frente de batalha, “verdadeiros heróis”.


Na véspera, em nota, o presidente Bolsonaro avisou que vai continuar saindo para as aglomerações. “Sinto-me bem ao seu lado (do povo) e jamais abrirei mão disso.” Bolsonaro tem uma visão reducionista do povo brasileiro. Para ele, só contam os que se juntam em manifestações dominicais, com suas faixas antidemocráticas, em grupos minguantes, é bom que se diga. Ou os que se reúnem na claque do Alvorada.

No domingo, o presidente levou a tiracolo até o ministro da Saúde, general Pazuello. O interino que ficará muito tempo. O Brasil passa a ser aquele país em que o ministro da Saúde descumpre as orientações da saúde para satisfazer o chefe. No mesmo domingo, Bolsonaro fez uma ameaça velada ao ministro Celso de Mello, postando uma mensagem de fácil decifração. E o ministro da Defesa avalizou a nota do general Heleno, que ameaçara o Supremo de “consequências imprevisíveis”.

Com o presidente tão ocupado com suas querelas, e os líderes militares dando sinais trocados, o espaço de falar como estadista estava vago. Na política, não existe espaço vazio. Foi esse que o deputado Rodrigo Maia ocupou com seu discurso em que deu vários recados, inclusive um para dirimir o falso dilema que opõe isolamento social e reativação da economia. “Quem derruba a economia é o vírus.” Maia trouxe a figura icônica de Ulysses Guimarães, sentado na cadeira que foi dele um dia, para lembrar solenemente o valor da democracia. Essa que temos e conquistamos. “Senhoras e senhores ministros do STF sabem que esse parlamento respeita e cumpre as decisões judiciais, mesmo quando delas discorda.” Na véspera, Bolsonaro, em nota, dissera que era preciso atuar “para termos uma verdadeira independência e harmonia entre as instituições da República”. O presidente acha que o Judiciário tem invadido suas prerrogativas, e seus ministros mais poderosos, militares ou não, concordam com ele.

Na segunda-feira, Bolsonaro criou um constrangimento institucional — mais um — quando desembarcou na Procuradoria-Geral da República (PGR). O investigado querendo confraternizar com o investigador. E num momento em que o país tem muita dúvida sobre a autonomia do PGR.

O que se investiga é a suspeita de intervenção na Polícia Federal. Ele disse na reunião que iria interferir, demitiu o diretor-geral, trocou o superintendente do Rio. Sua deputada de estimação, Carla Zambelli, deu uma entrevista em que revelou: “alguns governadores estão sendo investigados.” O presidente já declarou guerra aos governadores em geral, aos do Rio e de São Paulo em particular. Por tudo isso, um manto de dúvida inicial cercou a operação contra o governador Witzel.

Todo indício de corrupção tem que ser investigado, atinja quem atingir. O Rio é um estado politraumatizado. Já viu de tudo e não quer a repetição de um roteiro trágico bem conhecido, ainda mais no meio de uma pandemia. É preciso ser implacável com quem tramou contra os cofres públicos neste momento. Contudo, o temor que cercou a operação de ontem aumentou ainda mais a certeza de que a PF tem que ser autônoma. Exatamente para que não paire dúvida sobre as suas ações. Ela só pode ser polícia judiciária, jamais um braço do presidente.

O Brasil em perigo

Com a América Latina transformada num novo epicentro do coronavírus, o Brasil é o país mais preocupante. Os quase 375.000 contágios e mais de 23.000 mortos fazem dele o mais afetado da região e o segundo do mundo em número de casos. Mas a isso se somam uma gestão errática da pandemia e uma grave crise político-institucional, com flertes ao golpismo, o que, além de gravíssimo, desvia a atenção num momento em que o combate ao coronavírus deveria ser a prioridade de toda a classe política brasileira. O presidente Jair Bolsonaro não só age de maneira irresponsável ao ignorar a quarentena como também provocou a demissão de dois ministros da Saúde e boicota os esforços dos governadores para tentar controlar uma epidemia cuja magnitude real se desconhece, porque a quantidade de testes realizados é mínima. A maioria de governadores conseguiu deixar de lado suas diferenças políticas em nome de um consenso básico: seguir as recomendações da ciência. A cada dia, mais UTIs se aproximam do seu limite e mais covas são cavadas nos cemitérios, enquanto o presidente insiste em dar as costas às recomendações dos especialistas, promovendo um medicamento com potencial letal e pressionando as empresas a reabrirem. Aos olhos de Bolsonaro, a única preocupação é com os efeitos da hecatombe econômica, que frustraria uma eventual reeleição em 2022.

A oposição apresentou vários pedidos de impeachment contra ele por sua recusa em administrar a pandemia, mas seu problema mais urgente é uma investigação no STF sobre a suposta ingerência na cúpula da Polícia Federal para proteger a sua família. O vídeo de uma recente reunião ministerial mostra um presidente para quem defender seu clã e armar a população estão acima do interesse geral. As ameaças contra a separação de poderes ali lançadas por alguns ministros são inadmissíveis, e o rosário de insultos vertido pelo presidente constitui uma intolerável afronta às instituições.

Bolsonaro está obtendo apoio parlamentar em troca de cargos, para impedir uma destituição enquanto concede mais poderes aos militares em seu Governo. Estes já dirigem 10 dos 22 ministérios, incluído o da Saúde, interinamente. Mais inquietante é o apoio tácito do presidente aos discursos golpistas de seus seguidores, que pedem o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, e as ameaças veladas pronunciadas por alguns de seus ministros mais próximos. Nas últimas semanas, o ministro da Defesa veio a público em três ocasiões para reafirmar o apego das Forças Armadas à Constituição. Numa democracia consolidada, isso deveria ser desnecessário. O Brasil se encaminha para o pico da pandemia em um contexto político que acarreta graves riscos.