sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Juros de 100% sobre o Auxílio Brasil: o cúmulo do cinismo?

Por decreto, o presidente Jair Bolsonaro estipulou, no início de agosto, que os beneficiários do Auxílio Brasil podem receber em forma de crédito 40% dos pagamentos a que têm direito.

Quer dizer: quem, a partir de agosto, tem direito a R$ 600 de auxílio mensal já pode, por exemplo, requerer a transferência de R$ 3 mil. Nos centros das cidades brasileiras, há meses as financeiras vêm cadastrando beneficiários para que eles tenham acesso rápido ao seu dinheiro.

Poucos dentre os beneficiários do auxílio compreendem no que estão se metendo: dependendo do plano oferecido, terão que pagar entre 80% e 100% de juros ao ano. Ou seja, ao final de um ano, o valor final da dívida já pode alcançar o dobro do que foi emprestado.

As amortizações serão descontadas de suas parcelas futuras: em vez de R$ 600, até o fim do ano receberão mensalmente apenas R$ 360. A partir de janeiro de 2023, quando o Auxílio deve baixar para R$ 400 por mês, e, portanto, só R$ 160 serão consignáveis.

Já em março, o governo federal possibilitara aos receptores do Benefício de Prestação Continuada (BPC) penhorar seus pagamentos futuros em troca de um empréstimo imediato. O Ministério da Economia justifica essas possibilidades ampliadas de crédito para os mais pobres da sociedade com o retrocesso dos rendimentos desencadeado pelas "turbulências nos mercados internacionais".
"Auxílio" que leva à falência

Está claro que, com esse acesso ao crédito, o governo tenciona propiciar um aumento do consumo antes das eleições e assim melhorar o clima econômico – a fim de convencer os cidadãos a votarem a favor de mais um mandato presidencial para Bolsonaro.

É cínico o governo colocar o fardo desse programa conjuntural nas costas dos mais pobres. Pois desde 2005 os brasileiros nunca estiveram tão endividados: no momento eles já empregam mais da metade de sua renda para pagar juros e amortizações de créditos assumidos.

É provável que as medidas atuais levem milhões de brasileiros à falência. Pois quem até agora não conseguiu assegurar uma aposentadoria ou renda mínima, já depende de cada real da Previdência Social. Se os pobres entregarem a metade de seus salários às financeiras, não sobrará muito para eles. O provável resultado será mais miséria.

Trata-se de uma reversão cínica do conceito básico do crédito consignado. Em si, ele é uma ideia bastante sensata, que possibilitaria o fechamento de créditos sobretudo para quem recebe aposentadoria do funcionalismo público, mas também pensão do INSS em caráter vitalício. Do ponto de vista dos bancos, eles são bons devedores, já que as amortizações são descontadas diretamente de suas pensões ou aposentadorias. O risco é menor para os bancos, permitindo-lhes cobrar juros mais baixos.

No caso de uma ajuda social como o Auxílio Brasil, que o governo estabelece por motivos políticos, os bancos encaram um risco alto, pois em 2023 o novo governo pode reduzir ou eliminar o programa. Seja como for, não há uma garantia vitalícia.

As grandes instituições privadas, como o Itaú e o Bradesco, já anunciaram que não oferecerão crédito para quem recebe ajuda social. Para os muitos bancos menores, entretanto, a medida governamental é altamente bem-vinda, aumentando seus seus lucros em tempos de endividamento alto e economia estagnada.

O Moody's Investors Service avalia: "De um modo geral, o aumento das margens de consignação tem uma implicação positiva para os bancos brasileiros, estimulando o crescimento de linhas de menor risco e taxa de juros menores."

Infelizmente não há agência de classificação de risco para alertar os pobres do Brasil a não pedirem crédito.

Os militares, os mitos e suas armas

Há certas histórias que ouvimos desde crianças. Têm aquelas que servem para nos assustar como a do “homem do saco” ou a da “loira do banheiro”; as que visam promover a esperança, como a de que vivemos no país do futuro ou, outra similar, a de que o Brasil é o país de um “povo alegre e brincalhão”; têm ainda as histórias políticas, tal qual a do mito da democracia racial ou o conto institucional da reconciliação e do consenso.

Sem dúvida, uma dessas histórias que reúne todas as qualidades das descritas acima é a de que os militares vão dar um golpe.

Afinal, ao menos desde o fim da Ditadura se difunde, com vistas a assustar os sujeitos da democracia, que os militares ficaram insatisfeitos com tal ou qual medida de governo ou com determinado protesto e ameaçam intervir na vida pública, a despeito do que lhes impõe boa parte da Constituição. Também se utiliza a história do golpe junto com os militares para alavancar projetos conservadores de “transformação” do país, como o fez o bolsonarismo, com ênfase na véspera das eleições de 2018.

Mas, claro, a história do golpe das Forças Armadas contra a democracia é também um evento político tradicional. Para fundar a República do Brasil ocorreu o golpe de Estado comandado pelo Marechal Deodoro da Fonseca, que viria a ser o seu primeiro governante. Em apoio ao ditador Getúlio Vargas, em 1937, as Forças Armadas fomentaram a primeira ditadura do século XX no país, o Estado Novo. (aliás, em 1945, por meio de um golpe dos militares, o mesmo governo foi deposto).


Após cerca de 18 anos tentando construir uma democracia, as Forças Armadas assumiram o papel central no Golpe de 1964, implantando a Ditadura Militar com o apoio das elites econômicas, das grandes empresas e do imperialismo norte-americano. Foram mais de duas décadas de um violento, sanguinário e corrupto regime governado por cinco generais do Exército brasileiro.

Para sair dessa enrascada, o país adota a “abertura lenta, gradual e segura” elaborada pelos próprios ditadores, ainda que um potente movimento social se expandisse em busca de uma democracia sem fome e com emprego e moradia para o povo.

Sem ter muito para onde correr, a nova democracia aceita esconder os militares das barbaridades produzidas na Ditadura e os protege no capítulo da Constituição que trata da segurança nacional e da segurança pública. A militarização desta segunda, entre outros fatores, seria nos anos 2000 a forma com que as instituições militares ganharam novamente a cena pública, espalhando o mito de proteção por meio da doutrina militar de segurança pública.

Primeiro com a missão de paz no Haiti, na qual se experimentou transformar a intervenção do Estado nos territórios vulneráveis para o modo da guerra. Com a nova lei de encarceramento do tráfico (2006) e a expansão da rede de presídios federais e dos estados como São Paulo e Minas Gerais, o país abriu as portas para os passos seguintes. Surgem as intervenções via as assustadoras Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) e os acionamentos dos mecanismos de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), na passagem da primeira para a segunda década deste século.

Sabem quando lodo do fundo do lago é o assentamento dos restos do que por ali já foi outra coisa, enterrando uma série de sobras e de seres em decomposição? Pois então, de certo modo, assim funcionou o trato da memória e da história da Ditadura e da presença dos militares na política.

Talvez por isso, quando foi instalada a Comissão Nacional da Verdade, os pactos com os cramulhões da Ditadura foram remexidos e vieram à tona por meio da ideologia do inimigo interno, sempre alimentada nos centros de poder das Forças Armadas. E se somou ao ressentimento de uma considerável parcela da população, com certo poder aquisitivo, que se remoía por ver pretos nas universidades, o povo pobre nos aeroportos, pessoas periféricas circulando em ambientes de consumo exclusivos do poder social branco. Além de todas as mudanças nos costumes heteronormativos, com avanços na pauta LGBTQIA+, na denúncia do feminicídio, do etnocídio e nas lutas antirracistas.

Era demais para o capitalismo colonial neoliberal. Foi como se o lulismo, ao mesmo passo em que garantia a manutenção de formas econômicas de exploração das desigualdades, tivesse liberado forças de transformação social que poderiam colocar em risco a ordem do capital.

O que o governo Bolsonaro expôs foi o fato evidente de que as Forças Armadas, enquanto instituição, têm um projeto de poder político no país. Sem a necessidade do clássico golpe dos tanques nas ruas (ainda que ele tenha sido mal encenado no 7 de setembro de 2021), os militares ocuparam setores estratégicos do Estado e promoveram a radicalidade das políticas de destruição dos direitos e das instâncias democráticas.

Recentemente a mídia divulgou a existência do documento “Projeto de Nação”, produzido por três institutos que reúnem oficiais das Forças Armadas e cujo lançamento contou com a presença maciça do setor, além do vice-presidente da República e do general chefe do Estado-Maior do Exército.

Trata-se de um plano de consolidação, a partir do governo militarizado, de uma administração do Estado paralela e permanente, autônoma em relação aos processos eleitorais e às normas de funcionamento das instituições democráticas. Isso tudo sem colocar tanques nas ruas. No programa de gestão das próximas décadas, evidencia-se o alinhamento com as políticas neoliberais: cobrança para utilização do SUS, fim da autonomia universitária, ocupação militar da Amazônia, entre outras medidas.

Há ainda a proposta de criação do chamado Centro de Governo (CDG), algo semelhante com o que tentaram recentemente fazer no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), colocando as estruturas dos ministérios e das relações com os outros centros de poder (Legislativo e Judiciário) sob a tutela de militares.

O projeto se soma ao investimento na lógica da guerra, com as UPPs, intervenções, fortalecimento do mundo das armas, aumento do poder de atuação das polícias militares, aumento do sistema prisional e liberação do “excludente de ilicitude” para os agentes de segurança agirem sob o arrepio da Constituição. Junto a essas medidas, consolida-se o discurso de legitimação, com a guerra ao tráfico, a guerra contra a fome, a guerra contra a criminalidade, entre outras que se enquadram no modelo global da guerra pela paz e da guerra contra o terror (temos até mesmo a guerra contra o vírus, que liberou uma série de mecanismos de exceção nos diversos modelos de Estados de Direito).

Se todas essas histórias assustadoras, ficcionais e políticas acima fizerem um mínimo de sentido, somos forçados a ver aquilo que se mostra na ponta de nossos narizes. Sim, um cheiro que não é bom, mas que temos dificuldade para saber de onde vem. Contudo, temos a certeza de que há algo de podre.

Dessa forma, me parece que não se trata de um grupo de militares alinhado com o capitão e meia dúzia de generais beirando a aposentadoria e que se desgarraram do século XX ditatorial de nossa história. É um projeto neoliberal e da guerra colonial, em que o pacto racista e de morte de uma aristocracia estatal e burguesa se une ao modelo global do capitalismo de mercado.

O projeto se refere à estratégia de uma institucionalidade do Estado elaborada dentro da doutrina de segurança nacional, atualizada no modelo do Estado de Direito e que sai do ocaso da Ditadura sem sofrer modificações.