segunda-feira, 8 de agosto de 2022

A vida no lugar da morte

É a Humanidade que está se desfazendo ou são os meios de comunicação que se multiplicaram e se aperfeiçoaram, colocando-nos imediatamente a par de tudo o que está acontecendo no mundo? Num passado não muito distante, nós levávamos um certo tempo para saber o que se passava na Europa ou em qualquer outro continente desse planeta.

Das guerras mundiais que tanto marcaram o século XX nós sabíamos o que havia acontecido na semana passada. Agora acompanhamos ao vivo o reboliço do mar acabando com as cidades costeiras do Japão ou a invasão da Ucrânia pelo Exército russo de Putin. Não importa mais o país, em que continente, está tudo a nosso imediato alcance.


Como nunca vivemos essa experiência de intimidade com os acontecimentos, como eles nunca estavam a nosso alcance simultâneo, podíamos julgar seus motivos, a origem das coisas que aconteciam, sem precisar explicar a causa de tudo, sem maiores compromissos com isso. Acho que muitas vezes tivemos preguiça de consultar a ciência, inventamos bastante, sempre tomando por princípio o que podíamos interpretar magicamente. Ou em nome de uma ideologia que a tudo imobiliza.

Fico pensando em como os indígenas do continente americano tomaram conhecimento do que faziam ali os colonizadores europeus, o que esses significavam para aqueles. Ou, indo a mais antigamente ainda, como os guerreiros do Peloponeso explicavam a seus parceiros ignorantes a peste que assolava o campo de batalha helênico. E o que pensavam de nós, os homo sapiens vitoriosos, aqueles poucos e pobres hominídeos que sobraram dos massacres com que nossos ancestrais os eliminaram da face da Terra.

A vitória de uns sobre os outros não significava propriamente clara superioridade, mas certamente implicava um poder qualquer que o adversário não tinha. Com esse poder qualquer, a História do planeta acabou se fazendo, mesmo que desafiando a Justiça, o certo e o mais provável.

Como para isso não existe uma regra a ser respeitada nos limites dela mesma, cada um de nós faz o que quer ou torce por quem quiser. A Democracia não é o resultado de uma média, ela não se faz necessariamente em benefício dos valores de cada um, na soma deles para atender a todos.

A Democracia é apenas um princípio de conversa sem o qual não é possível acessar o espaço de uma vida que, no passado ou no futuro, desejamos entender e se possível viver. Todos os outros valores políticos podem mudar, se transformar em benefício dos heróis do presente. Menos a Democracia. Ela é uma só, sendo explicada por necessária pluralidade, sem cartilha.

Porque só nos livraremos do pesadelo se pudermos reimplantar no Brasil a Democracia, a partir do próximo mês de outubro.O que hoje no Brasil nos faz mal e nos faz sofrer é um pesadelo que nos foi imposto pelos inimigos da Democracia. Comandados por Jair Bolsonaro, nosso presidente legitimamente eleito (é isso que me faz temer!), estamos às vésperas de uma nova eleição que, se representa nossa oportunidade de redenção, pode ser também a confirmação de tudo o que não fizemos para melhorar o país. A nossa alegre angústia é que só acordaremos do pesadelo se formos capazes de nos proporcionar esse sentimento de verdadeira liberdade

Sendo a vitória da Democracia o nosso objetivo, essa meta, por mais usada que esteja, é muito mais transformadora, visa muito mais o nosso e o futuro do país do que qualquer outro objetivo político com o qual tentam nos acariciar. Não nos importa mais saber rapidamente o que acontece em toda parte, queremos é fazer acontecer a vida a cada um de nós. A felicidade não começa com o elogio da morte, mas com a saudação da vida.

Um retrato do Brasil

Talvez já estivesse escrito que o psicanalista Tales Ab’Sáber iria buscar as raízes do país para fazer um retrato. Ele define seu mais novo livro como “uma viagem pela mentalidade escravista do Brasil nos primeiros anos da Independência”. Um estudo de como se formou a consciência nacional que possa responder a pergunta “Que país é esse?”. O autor recua no distante passado não só porque é um entusiasmado por História, mas também porque sabe o quanto a personalidade de cada um está enraizada no passado. Ir às raízes de uma pessoa, de uma família, de um povo, envolve as origens, a formação, mesmo sendo cada estudo diferente. O livro revela a genealogia da crueldade brasileira, tão escondida mas evidente nos elogios à tortura, e ao estupro.

Tales já publicou livros sobre os três últimos ex-presidentes, Lula, Dilma e Temer, além do livro “O sonhar restaurado”, vencedor de um Prêmio Jabuti em 2006. E, após muito estudar sobre a História brasileira, apresenta agora “O soldado antropofágico: escravidão e não pensamento no Brasil”, sobre o século XIX, logo após a Independência. Não é comum que um psicanalista tente entender um país, sabendo o quanto é difícil pensar um analisando ou a si mesmo. Tales não é um psicanalista comum – temos hoje vários psicanalistas criativos e implicados com o País –, pois tem um amplo espectro de estudos além da psicanálise, como arte, filosofia e história. O Brasil convive entre o pesadelo – escravidão, desigualdade social e violência – e um sonho de superação, um sonho de futuro que parece chegar em alguns momentos da História. Li sobre o pesadelo e o futuro também no impactante livro da amiga psicanalista Isildinha Baptista Nogueira, que escreve sobre sua experiência pessoal e de suas analisandas: “A cor do inconsciente: significações do corpo negro”.


A escravidão que durou três séculos e meio foi um tema proibido, gerando um anti-intelectualismo onde se negou o racismo. Não se escrevia a respeito, e buscava-se ocultar, silenciar o sadismo e a maldade contra os negros, índios, propagando que aqui era o país do samba e do futebol. Foi na leitura pacienciosa do livro “O Rio de Janeiro como é” (1824-1826), do soldado alemão Carl Schlichthorst, que Tales foi aprendendo nos detalhes o gozo, o erotismo e a cultura descritos naqueles anos. Impossível entender que país é esse sem estudar os primeiros retratos do Brasil, que Tales Ab’Sáber fotografa a partir de livros como esse. É um retrato que se vê ao ler uma negra escravizada que dança, canta, recita e vende doces que encanta o soldado alemão. Poesia pura nas ruas do Rio em que convivem a pior das violências e o sonho de um paraíso. Esse livro foi um presente do pai de Tales, Aziz Nacib Ab’Sáber, geógrafo e ecologista, vencedor de prêmios nacionais e internacionais. Aziz passou ao filho sua paixão pela nação e os livros, daí ambos buscarem respostas à pergunta “Que país é esse?”.

Pode ser que o Brasil tenha uma doença crônica – três séculos e meio de escravidão tema central desse livro. Uma das tantas histórias que fui averiguar a partir da leitura é porque o Patrono da Independência – José Bonifácio de Andrade e Silva – foi exilado por seis anos, entre 1823 e 1829. O deputado da Constituinte era a favor da abolição da escravatura, pela reforma agrária, além de pôr limites nos poderes do Imperador Dom Pedro I. Integrava uma pequena elite do progresso que encontrou forte resistência até do Imperador, que fechou o Congresso e excluiu do poder José Bonifácio.

Um dos diagnósticos presentes no livro foi sintetizado por Luiz Felipe de Alencastro, um historiador referência para Tales e todos que estudam o País, que disse numa entrevista em 1996: “A escravidão legou-nos uma insensibilidade, um descompromisso com a sorte da maioria que está na raiz da estratégia das classes mais favorecidas, hoje, de se isolar, criar um mundo só para elas, onde a segurança está privatizada, a escola está privatizada e a saúde também”. Um país todo privatizado é a destruição do público, do SUS que salva os pobres e muitos ricos-como ocorre na pandemia- da educação pública, das cotas raciais. O Brasil deve ser para todas e todos, sem discriminação racial, política ou preconceito com os pobres.

Creio que Tales Ab’Saber estaria de acordo que o desafio hoje é entre o elogio das armas, da exploração destrutiva da natureza, versus o humanismo e a ecologia. Desesperar, jamais, pois não se pode esquecer que depois de hoje virá o amanhã, depois do pesadelo voltará o sonho de um povo que caminha na escuridão com esperança no coração.

Propaganda eleitoral com 'micheque'

Por muito tempo, [o Palácio do Planalto] foi um lugar consagrado a demônios. Hoje, é consagrado ao senhor Jesus. Ali, eu sempre falo para ele [Bolsonaro], quando entro na sala dele: essa cadeira é do presidente maior, é do rei que governa essa nação
Michelle Bolsonaro

Cinco cenários

O cotidiano da política é uma gangorra. A tensão sobe e desce. As expectativas fluem ao sabor dos momentos. As dúvidas ganham volume, puxadas pelos protagonistas. Em ano eleitoral, a dois meses das eleições, e tendo em vista que a contenda usará armas nunca d’antes vistas, não é de surpreender que a guerra seja a mais violenta da atualidade.

Trata-se de um pleito que fará o Brasil caminhar, amanhã, pelos caminhos da esquerda ou da direita. A contar com o maior cofre eleitoral de todos os tempos. E a abarcar o maior número de eleitores, cerca de 156 milhões. Na paisagem de fundo, mais de 30 milhões de pessoas sem acesso à mesa do pão, habitantes do território da extrema carência. Mostrando, ainda, classes médias divididas entre dois candidatos e uma parcela, que tende a crescer, ansiosa para achar a saída da dualidade, um perfil identificado com inovação.

Essa moldura pode se alterar nas próximas semanas, a depender da barreira a ser transposta pelos corredores. O obstáculo deverá aparecer no dia em que o país comemorará os 200 anos da independência, 7 de setembro próximo. A muralha a ser ultrapassada tem sido reforçada com a argamassa produzida nos fornos do presidente Bolsonaro, cujos componentes incluem uma parada militar na avenida Atlântica (Copacabana), no Rio de Janeiro, o convite para as massas comparecerem ao evento, ataques reiterados a membros do Poder Judiciário e às urnas eletrônicas e a indignação contra manifestos em favor da democracia.

O que aguarda o país, após 7 de setembro? Paz ou guerra? Que o leitor tire suas conclusões, após tentar extrair os efeitos dos seguintes cenários:


Mar bravio – O desfile de 7 de setembro – militares de diversas categorias e postos, tanques esmagando o asfalto, continência dirigida ao comandante-em-chefe das Forças Armadas, ele mesmo, o presidente da República – tem o condão de mostrar que o capitão Jair é poderoso e tem forças para anunciar medidas de caráter extraordinário. Medidas que disfarcem a imagem de um golpe, fenômeno que desviará o país de sua rota, mas possível de ocorrer, principalmente se a mobilização de rua implicar devastação, quebra-quebra, desordem, conflitos. Hipótese que será viável/inviável, a depender do comportamento das Forças Armadas,

Céu de brigadeiro – O evento de 7 de setembro ocorrerá com tranquilidade, sem açodamento, brigas entre alas, soldados cumprindo sua tarefa de desfilar, votos de paz e harmonia social, expressos pela sociedade civil. O presidente se manteria de boca fechada, sem jogar lenha na fogueira e até jogando água em algum fogo persistente. Desse modo, o céu de brigadeiro seria visto até outubro, mês do primeiro e do segundo turnos.

Horizonte turvo – Nuvens plúmbeas, pesadas, prenunciando raios, trovão e chuva intensa, emergirão em todos os quadrantes, e seus primeiros sinais apareceriam no dia 7 de setembro, com escaramuças desfechadas por alas bolsonaristas e grupos lulopetistas. O prenúncio de guerra, a se travar nas ruas após a comemoração cívica, criaria as condições para o presidente continuar seu discurso belicoso. E preparar o espírito de suas bases para a alteração das regras no tabuleiro democrático, caso o vencedor do pleito seja o candidato das esquerdas. As instituições da República reagirão e a gangorra de tensões voltará à paisagem.

Luz no fim do túnel – A policromia do arco-íris será manchada com borrões e pichações, nos próximos dias, que enfeiarão o desfile de 7 de setembro, abrindo buracos na sociedade, contribuindo para os polos do extremo ideológico acirrarem suas divergências. A polarização chega ao pico da montanha. Mas acende uma luz no fim do túnel. Toma corpo a taxa de racionalidade. E tal impulso viabiliza um terceiro nome, um perfil com um discurso de harmonia e reinserção do país na roda do desenvolvimento. Pode ser utopia. Mas…

Visita do Imponderável – Uma visita do Senhor da Imprevisibilidade também é possível. Para evitar o mau agouro, este analista deixa de lado as hipóteses desse cenário.

Seja qual for o cenário, urge crer no Brasil, com seu território continental, riquezas naturais, belezas incomparáveis, pedaço importante do planeta. E que, um dia, realizará o sonho de uma grande Pátria: a revolução da Educação.