terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Brasil incendiário


Japoneses, parasitas, bananas e os brasileiros

João, casado e professor, tinha 25 anos quando, em 2013, conheceu Eduarda, sua aluna, de oito anos. A menina vivia em um abrigo para órfãos e abandonados. Quis adotá-la, mas descobriu que ela era a mais velha de seis irmãos – a mais nova com dois anos. No grupo havia ainda um menino de seis anos e trigêmeas de quatro anos. Todos vivendo no abrigo.

O grupão não intimidou o casal que encarou o processo formal de adoção de todas as crianças. Em 2014, a família de João Nogueira somava seis filhos – Eduarda, Eduardo, Ana Clara, Maria Luiza, Mariana e Yasmim.

A façanha de generosidade e amor só foi notícia agora, em 2020, quando uma “vaquinha virtual” permitiu a compra de uma Kombi capaz de acomodar a família inteira na sua lida diária.

João contou na rádio que a produção da “vaquinha” foi presente de sua amiga oculta, no Natal. Esperavam conseguir parte do dinheiro para a compra da Kombi sonhada. O restante seria complementado com doações da família. Mas a solidariedade surpreendeu e, além da compra, a “vaquinha” ainda deu para um trato geral no veículo, de 2010, batizado pelos filhos de Kombão do amor.

A família vive no DF. Entre a adoção e a compra do Kombão, João encarou dois anos de desemprego, separação e novo casamento. Nada desuniu a grande família.


Ou seja, podemos garantir ao colega Alexandre Garcia e ao Capitão Presidente que não é preciso importar japoneses para fazer o Brasil melhor. Há gente boa, corajosa e generosa no país. A maioria é assim. O que atrapalha, corrompe, desatina e desalenta são as cíclicas más gestões ou as gestões temerárias a que somos submetidos por temporários praticantes da beira do caos. Os tais que, prometendo muito, salvam uns poucos e abandonam milhares. Não há povo que sobreviva a isso, sem sequelas.

Houve esperança e orgulho de ser brasileiro em período recente, quando o Brasil ousou andar pra frente, quando os Governos, ainda que de diferentes partidos, não desfaziam os bens feitos dos seus antecessores. Ao contrário, ampliavam e consolidavam, particularmente, políticas inclusivas de atenção à maioria abandonada por gerações e gerações de governos gulosos, perversos e vendidos de baixo preço.

Exemplo mais visível, o Bolsa Família, que começou como Bolsa Escola, fez melhoria e crescimento chegar até às pequenas cidades. A economia mais solidária permitiu a muitos o consumo de comida e de bens antes reservados a minoria mais rica.

Foi manchete ontem, 10 de fevereiro: “O governo Jair Bolsonaro congelou o Bolsa Família em uma a cada três cidades dentre os 200 municípios mais pobres do Brasil”. Municípios mais pobres! De doer. E dói.

Volta a faltar dinheiro para o iogurte e a geladeira nova na casa da maioria mais pobre. Para milhares, os apertos na economia, fazem faltar dinheiro até para a comida básica. Para esses, o arroz e o feijão diário voltam a ser luxo eventual.

Porque noticiam descalabros, atropelos e descaminhos do atual governo, no fim de semana, jornalistas receberam gesto de banana do sempre deselegante Presidente Capitão ou vice-versa. Na semana passada, o ministro de economia, na mesma tecla de depreciação e afronta, definiu como “parasitas” os servidores públicos.

No modelo faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço, a perversa autoridade é antigo chupista dos sistemas de capitalização – que chama de “poupança garantida”, mas que só dá garantias reais aos guardiões da bufunfa capitalizada. Os de sempre. O povo chileno conhece de perto essa modalidade de abuso de desalmados governantes. No caso deles, Pinochet, com o ministro Chicago boy, nefando, na área – fazendo girar a roda do mal.

(Aos costumes, depois de grita geral, o comandante da economia desculpou-se pelo “mal-entendido”. Suas desculpas já foram banalizadas. A gente não tem cara de panaca. Até o Rei Momo sabe que elas não mudam o que ele pensa e sente e que escapa cada vez que se sente à vontade, entre os seus.).

Não há japonês que dê conta desses malignos. Faltam adjetivos para qualificar os Chicago Oldies da cena diária brasileira.

Sem esquecer:
Quem pagará por Mariana e Brumadinho?
Quem matou Marielle?
Como morreu Adriano, o miliciano que sabia demais?
Cadê o Queiroz?
Tânia Fusco

Quem é o verdadeiro parasita no cinema e no mundo real?

“Parasita”, vencedor dos principais prêmios do Oscar no domingo (9), não foi o meu filme favorito do ano. (Eu ficaria com “Era uma Vez em... Hollywood” ou “1917”.) Seja como for, o quadro das relações sociais traçado pelo vencedor vem bem a calhar num momento em que a desigualdade desponta como um dos grandes problemas globais.

Em “Parasita”, a extrema desigualdade social faz com que o único caminho para a família Kim sobreviver seja se infiltrar pouco a pouco como serviçais da família Park. Entre fraudes e pequenos golpes para aproveitar algumas das benesses da vida dos Park, que permanecem —em sua inocência— alheios aos planos dos Kim, estabelece-se uma relação parasitária.

O conflito, contudo, não se estabelece entre parasita e hospedeiro, e sim entre os Kim e outra família pobre com quem disputam as migalhas que caem da mesa dos patrões. Destroem-se mutuamente sem reconhecer o verdadeiro beneficiário de sua situação precária.

Coloca-se, evidentemente, em questão quem seriam os verdadeiros parasitas. Afinal, os Park, que desfrutam uma vida de ócio e prazeres, só o fazem porque contam com o trabalho incessante de desesperados como os Kim, cujo abandono social os leva a se sujeitar a qualquer exploração.

E, para completar, com a exploração econômica vem o desprezo humano, no completo desinteresse dos patrões pela vida dos empregados e seu incômodo com o cheiro deles. Conforme a tensão cresce, um desfecho de violência brutal torna-se inevitável.


Quando rotulamos uma classe ou grupo social de “parasita”, estamos dizendo que ele é um peso, um gasto extra que não gera retorno e que, por isso, pode e deve ser combatido.

Na URSS, o “parasitismo social” era crime previsto em lei, punindo quem não trabalhasse (não raro, intelectuais críticos do regime). Na Alemanha nazista, estigmatizava povos que não tinham um território próprio, como os judeus e os ciganos.

No discurso atual, os “parasitas” podem ser qualquer um: beneficiários de programas sociais, banqueiros, políticos, sindicalistas, imigrantes, artistas, funcionários públicos (como na fala recente de Paulo Guedes).

Não há nada de científico aí: em cada caso, faz-se um recorte tendencioso em que o grupo é pintado como uma corja de malandros ou preguiçosos que suga recursos da sociedade. Podemos até aceitar que alguns indivíduos são, com justiça, descritos como parasitas. Mas no caso de grupos inteiros a atribuição é sempre descabida.

Ela é útil para criar ódio: para nos colocar no estado de espírito em que nos dará prazer ver um membro do grupo “parasitário” sofrer. E também nos garantirá um inimigo incondicional, do qual não poderemos esperar colaboração, mesmo para objetivos em comum.

Criticar o termo não é negar a existência de problemas distributivos: seja por setores do funcionalismo que têm salários e reajustes automáticos muito acima do mercado, seja por multimilionários que pagam menos impostos que um trabalhador comum. Elaborar regras que produzam uma sociedade mais eficiente e justa é um trabalho complexo e muito diferente do mero desejo de punir funcionários públicos ou banqueiros.

O uso do termo pode se prestar à mobilização política, mas não nos ajuda a entender melhor as relações sociais em sua complexidade e nem a resolver os problemas que delas surgem. Entre os Kim e os Park, quem são os verdadeiros parasitas? Ficar preso a isso só perpetua as relações desiguais que, em última análise, são destrutivas a ambos.
Joel Pinheiro da Fonseca

Censura

Governador Marcos Rocha,

Espero que o senhor já tenha demitido o secretário de Educação do Estado de Rondônia, assim como a diretora-geral de Educação. Nada pessoal, senão pelo fato de que — ao não o fazer — será somente do senhor a responsabilidade pela tentativa de censura contida no memorando 4/2020, aquele que propõe o Index Librorum Prohibitorum do século XXI, expedido por uma secretaria de seu governo e enviado às coordenadorias regionais.

Permita-me lembrá-lo de como a mensagem começa, desde já me desculpando por constrangê-lo com o uso do idioma por auxiliares que escolheu: “Solicitamos aos senhores que verifiquem nos kits de livros paradidáticos encaminhados às escolas para compor os acervos das bibliotecas, os livros relacionados no Adendo ID (10053329), e procedam com o recolhimento dos mesmos imediatamente, tendo em vista conterem conteúdos inadequados às crianças e adolescentes”.

Espero que já os tenha demitido também porque, de qualquer outra forma, recairá sobre o senhor a obrigação de explicar à sociedade o que seriam — nos livros que se pretendeu censurar —os tais “conteúdos inadequados”. O que seriam? Uma sugestão, governador: pergunte aos autores do memorando censor e então tenha — qualquer que seja a resposta — a justa causa para exonerá-los.


O outro caminho será o habitual, o da covardia, o que o senhor trilha até aqui: assumir, com o silêncio, a incompetência dos subordinados, passando-lhes a mão na cabeça, e, por omissão, plantar que desconhecia o ato, torcendo para o fervo baixar — combinação que intenta descaracterizar o propósito difundido pelo memorando, opção que reforça o propósito sem negar a incompetência.

Talvez o senhor diga que houve um mal-entendido e que, uma vez identificado o erro, o governo se mobilizou para repará-lo. Nesse caso, terá de explicar como se conserta um arreganho autoritário colocando o documento em questão sob sigilo. Precisará igualmente esclarecer que tipo de consciência — senão a do “a casa caiu” — vai expressa em comunicações oficiais como a que se segue: “Missão recolhimento dos livros abortada. Caso façam contato com vocês sobre o tema, por favor, peçam que entrem em contato com a C.R.E.”

Não é bonito o retrato. Bonito tampouco é o tuíte por meio do qual o seu governo buscou reagir após recuar: “A @seducro reforça o compromisso com a Educação e reconhece que os livros são obras de autores consagrados mundialmente e que cumprem um papel importante para uma construção social. Sendo assim, não há ordem de recolhimento dos mesmos”.

O reconhecimento da secretaria não interessa, governador. Tampouco interessa a avaliação sobre o papel de um escritor para “uma construção social”, seja lá o que isso for. O fato de serem livros de “autores consagrados” não importa. Não é critério — a condição de clássico — para não censurar. Ou seria diferente — a censura avançaria — fossem escritores desconhecidos?

Livro nenhum precisa ser lido. Todo livro precisa estar livre para a leitura. Sem exceção. Isso é um valor — valor que não vê capa. Só o tempo pode tornar degredado um livro. Só o desinteresse das gentes, no curso das décadas, elege os proscritos — exílio do qual sempre um novo olhar lhes poderá resgatar.

O que faz um livro clássico não é a imposição do gosto de alguém ou de algum grupo. A imposição do gosto de alguém ou de algum grupo faz a censura. Não foi a caneta de um burocrata que fez “Memórias póstumas de Brás Cubas” um clássico. Foi a força de permanência dessa obra — sua capacidade de se manter atraente para além dos séculos — o que a fez clássica.

A vida de um livro é a vida dos que o desejam ler. O livro envelhece, rejuvenesce ou encontra a maturidade, a estabilidade, em função do desejo soberano de leitura. Quando o Estado viola o fluxo dessa natureza e mobiliza suas estruturas para recolher obras — clássicas ou não — em decorrência do juízo de burocratas, o que temos nome tem: censura.

Foi o que tentou fazer o governo do senhor: censurar.

São homens de bem — certos de proporem o melhor para proteger a juventude — os que censuram; os que mais rapidamente materializam o espírito do tempo. Doutrinação esquerdista nos colégios, a onipresença do marxismo cultural nas salas de aula, o ensino como irradiador de perversões etc. Isso nunca tarda a resultar, na mão do guarda da esquina, em lista de leituras a serem trancadas; nunca demora a desaguar em um Machado de Assis proibido, autor também de “Dom Casmurro”, criador da personagem Capitu, Capitu que dá nome à cadela do ministro da Educação, de quem não se ouviu palavra em repúdio ao limite que o governo do senhor testou. O senhor, com a omissão que abona, é o guarda da esquina.

É onde estamos. A corda seguidamente esticada; sendo inegável que, nos 43 livros amaldiçoados, haja muita coisa escrita — e de impossível suavização. Quando afrouxa, nunca volta ao mesmo lugar.

As enchentes

As chuvaradas de verão, quase todos os anos, causam no nosso Rio de Janeiro, inundações desastrosas.

Além da suspensão total do tráfego, com uma prejudicial interrupção das comunicações entre os vários pontos da cidade, essas inundações causam desastres pessoais lamentáveis, muitas perdas de haveres e destruição de imóveis.


De há muito que a nossa engenharia municipal se devia ter compenetrado do dever de evitar tais acidentes urbanos.

Uma arte tão ousada e quase tão perfeita, como é a engenharia, não deve julgar irresolvível tão simples problema.

O Rio de Janeiro, da avenida, dos squares, dos freios elétricos, não pode estar à mercê de chuvaradas, mais ou menos violentas, para viver a sua vida intagral.

Como está acontecendo atualmente, ele é função da chuva. Uma vergonha!

Não sei nada de engenharia, mas, pelo que me dizem os entendidos, o problema não é tão difícil de resolver como parece fazerem constar os engenheiros municipais, procrastinando a solução da questão.

O Prefeito Passos, que tanto se interessou pelo embelezamento da cidade, descurou completamente de solucionar esse defeito do nosso Rio.

Cidade cercada de montanhas e entre montanhas, que recebe violentamente grandes precipitações atmosféricas, o seu principal defeito a vencer era esse acidente das inundações.

Infelizmente, porém, nos preocupamos muito com os aspectos externos, com as fachadas, e não com o que há de essencial nos problemas da nossa vida urbana, econômica, financeira e social.
Lima Barreto, Vida urbana, 19-1-1915

Pensamento do Dia


A guerra que não pode esperar

Mesmo em tempos prolongados de paz, todos os países realizam, com maior ou menor periodicidade, manobras militares e jogos de guerra destinados a avaliar a “prontidão” das suas tropas, em caso de necessidade. De acordo com as alianças de cada nação e a localização geográfica onde os simulacros decorrem, muitos desses exercícios são realizados num regime de estreita cooperação com as forças armadas de outros países e sob um comando unificado. Com um objetivo claro: treinar a resposta mais rápida, eficiente e adequada à ameaça, de forma a derrotar o inimigo e a sofrer o menor número de baixas.

O mais incrível, em especial nos tempos que correm, é que este tipo de exercícios, com um grau elevado de cooperação e de movimentos coordenados, continua a ser apenas possível de se concretizar no campo militar. Só na preparação para a guerra, quase sempre com base em cenários hipotéticos de resposta a ataques dos inimigos tradicionais, sejam eles próximos ou estratégicos, os países aceitam coordenar planos, esforços e ações no terreno, recebendo ordens de uma cadeia de comando aceite por todos. No entanto, esta cooperação em assuntos de guerra não consegue repetir-se noutras batalhas, mesmo quando se enfrentam inimigos comuns, como as alterações climáticas ou a ameaça das pandemias. Nesses casos, como se tem visto, a cooperação limita-se às grandes declarações e aos discursos de intenção, mas continua a falhar na adoção de medidas e nas soluções no terreno.

Quem se preocupa minimamente com as questões da saúde pública, como as principais organizações sanitárias mundiais, sabia que uma epidemia como a do 2019-nCoV – o novo coronavírus que rapidamente alastrou a partir da China – iria ocorrer, mais tarde ou mais cedo. Ninguém podia adivinhar quando e onde a epidemia ia começar, mas todos sabiam que ela ia acontecer. Como também sabem que esta epidemia não será a última – outras se lhe seguirão.

Há pelo menos cinco anos que, por exemplo, Bill Gates anda a alertar para este risco e a pedir que os governos se coordenem entre si e se preparem para o enfrentar como se fossem para a guerra. O milionário fundador da Microsoft tem pedido mesmo que se use o exemplo dos exercícios militares realizados no âmbito da NATO como modelo para estancar futuras epidemias: a realização de jogos de guerra e de manobras, de forma a tentar antecipar como um vírus pode espalhar-se e até que ponto os serviços de saúde, nos vários países, estão preparados para enfrentar a ameaça e qual o tipo de ajuda internacional que pode ou deve ser ativado. Com o mesmo grau de prontidão e competência que se aplica nas guerras, para que todos marchem na mesma direção.

Num documento recente, em que enumerou os principais desafios para a década, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde sentiu também a necessidade de criticar os governos que gastam fortunas para tentar evitar os ataques terroristas, mas que não aplicam os mesmos esforços perante a possibilidade de um ataque com um vírus – “que pode ser muito mais mortífero e com muito maior impacto económico e social”, sublinhou.

Esta necessidade de coordenar esforços a nível internacional, ao mesmo tempo que se apela a maiores investimentos e esforços, públicos e privados, na promoção dos cuidados de saúde básicos, no combate às desigualdades e na luta contra a desinformação, acaba, no entanto, por colidir de frente com os discursos populistas, isolacionistas e nacionalistas que grassam pelo mundo. Mas se há algo que esta pandemia começa já a demonstrar – até pelo exemplo de cooperação entre cientistas – é que os grandes desafios planetários só se resolvem mesmo à escala planetária. E esta guerra ainda só começou.
Rui Tavares Guedes

Futuro?

A existência das gerações futuras é das coisas que menos cuidado dão às gerações presentes
Visconde de Santo Thyrso ( Eduardo da Costa Macedo, 1859-1916), "De rebus pluribus"

Como a imprensa lucra com líderes como Trump e Bolsonaro

A peça publicitária do diário americano The New York Times dura apenas 31 segundos: "A verdade é dura. Dura de achar, dura de saber. A verdade é mais importante agora do que nunca."

O vídeo de fevereiro de 2017 é um exemplo para a autopublicidade de sucesso de veículos da imprensa numa era de notícias falsas e de acusações de mentirosa. Mostra o jornalismo como instrumento de resistência política e garantidor da liberdade de opinião e de expressão.

Desde a eleição do presidente americano Donald Trump, em 8 de novembro de 2016, jornais como New York Times e Washington Post, mas também o britânico The Guardian e a revista The Economist, vivem uma espécie de Renascimento midiático. No Brasil, ventos favoráveis sopram para veículos críticos ao governo desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, há pouco mais de um ano.

O efeito Trump sobre o setor jornalístico parece ser duradouro. O New York Times registrou o maior "dividendo democrático", por assim dizer. Desde novembro de 2016 e novembro de 2018, o número de assinaturas digitais subiu de 1,5 milhão para 2,5 milhões. Atualmente, o jornal tem quase 4 milhões de assinantes.

"Em 2019, o New York Times computou mais de um milhão de novas assinaturas digitais", diz a publicação alemã especializada em marketing W&V. "É o maior aumento anual desde a implementação das assinaturas digitais pagas, em 2011, e o mais expressivo crescimento de assinaturas dentro de um ano desde a fundação da New York Times Company", acrescenta o texto.


No Brasil, também houve um chamado "efeito Bolsonaro". Desde que o presidente declarou que o governo não publicaria mais propagandas e anúncios no maior diário do país, a Folha de S. Paulo, o número de assinaturas digitais da publicação disparou.

"Jornalismo profissional é antídoto para notícia falsa e intolerância", diz o título dos princípios editoriais do jornal, que publica uma versão em inglês desde 2011. De acordo com o Instituto Verificador de Comunicação (IVC), o número de assinaturas digitais pagas da Folha de S. Paulo subiu de 207 mil em dezembro de 2018 para 241 mil em outubro de 2019.

Durante a Bienal Internacional do Livro no Rio de Janeiro, em setembro do ano passado, a Folha deu um exemplo do que entende por tolerância, estampando na capa o desenho dois homens se beijando, parte da história em quadrinhos Vingadores – a Cruzada das Crianças. A decisão repercutiu internacionalmente porque a HQ havia sido proibida, pouco tempo antes, pelo prefeito do Rio, o evangélico Marcelo Crivella – sob a justificativa de conter "conteúdo sexual para menores".

No Reino Unido, o primeiro-ministro Boris Johnson ameaçou a BBC de eliminar a taxa compulsória para TV e rádio no país, cobrada de todos os domicílios e principal fonte de recursos para a emissora pública internacional. Neste cenário, o The Guardian vem ganhando força com sua abordagem crítica. A publicação não apenas aumentou o número de seus assinantes, mas também consegue, com sucesso, angariar doações para a manutenção de um jornalismo independente.

Pouco antes das eleições parlamentares antecipadas em dezembro de 2019 no Reino Unido, o Guardian iniciou uma campanha com o slogan "Mudar é possível. A esperança é poder". No vídeo, uma borboleta dentro de uma sala voa contra a janela, até que, em certo momento, o vidro quebra e o inseto consegue se libertar. Desde então, mais de um milhão de doadores faz parte do círculo de apoiadores do jornal cronicamente endividado.

O Washington Post é menos dramático. A campanha "A democracia morre na escuridão", anunciada já em 2017 pelo fundador da empresa Amazon e dono do jornal, Jeff Bezos, também conquistou muitos novos leitores. Em 2019, a publicação tinha 746 mil assinantes da versão impressa e 1,7 milhões de assinaturas digitais.

"Acho que muitos de nós pensam que a democracia morre na escuridão e que certas instituições desempenham papel muito importante para iluminar essa escuridão", disse Bezos, na época do lançamento da campanha.

Há um paradoxo: o temor da expansão do extremismo de direita, do populismo e do autoritarismo leva a disputas políticas mais duras e uma demanda mais acentuada por coberturas e conteúdos jornalísticos. Donald Trump, Boris Johnson e Jair Bolsonaro trazem novos leitores aos jornais.

Outra consequência desse efeito é que os veículos tradicionais acabam conseguindo apoio para a transformação digital, e um dos resultados dessa transformação não parece ser reversível: a retração mundial de jornais diários impressos.

Enquanto isso, a guerra midiática entre notícias falsas e a checagem de fatos continua com uma severidade desenfreada. E os dois lados parecem se alavancar mutuamente. Em entrevista recente à emissora de rádio alemã Deutschlandfunk, o historiador Bernd Greiner apontou para uma situação ganha-ganha perigosa: por lucrarem com o valor de entretenimento de políticos populistas, os meios de comunicação aceitam qualquer provocação e dão atenção adicional a essas personalidades.

"Pelas suas provocações, políticos como Boris Johnson, Donald Trump, Benjamin Netanyahu ou Matteo Salvini são fontes constantes de novas notícias", explicou Greiner. "A imprensa não deveria responder a todas as provocações", concluiu.
Deutsche Welle

Parasitologia

Na ciência, a parasitologia estuda os parasitas, seus hospedeiros e a relação entre esses organismos. Não são apenas os animais que possuem parasitas, todos os organismos vivos podem ser parasitados. Até mesmo uma bactéria pode ser alvo desse tipo de relação, como é o caso dos vírus bacteriófagos que se reproduzem no interior desses organismos. No parasitismo, apenas um dos organismos envolvidos é beneficiado. Isso, porém, não gera necessariamente a morte do hospedeiro.

O parasita pode se instalar tanto fora (ectoparasita) como dentro (endoparasita) do corpo do hospedeiro. Piolhos e carrapatos são exemplos do primeiro; as lombrigas, do segundo. Já o parasitoidismo é a situação na qual se observa a morte do hospedeiro: As vespas, por exemplo, colocam os ovos no interior de alguns artrópodes. Após eclodirem, as larvas alimentam-se do hospedeiro ainda vivo. Depois de algum tempo, elas matam o hospedeiro e emergem de seu interior.

Para os neodarwinistas, como o biólogo Richard Dawkins (O gene egoísta), o organismo humano é apenas uma “máquina de sobrevivência” do gene, cujo objetivo é a sua autorreplicação; a espécie na qual ele existe é a “máquina” mais adequada a essa perpetuação. Analisando o comportamento de algumas espécies animais, Dawkins explica que o altruísmo que se observa em muitas espécies não é contraditório com o egoísmo do gene, mas contribui para a sua sobrevivência. A tese leva as ideias liberais ao terreno da história natural, pois o egoísmo seria uma característica básica dos indivíduos, sendo o altruísmo uma necessidade de sobrevivência, apenas.


Dawkins desenvolve o conceito de “meme” como o equivalente cultural ao gene, que seria uma espécie de unidade básica da memória ou do conhecimento que o ser humano transfere para os descendentes. A comparação da relação entre a administração pública e os que dela se aproveitam com o parasitismo faz todo o sentido, mas daí a classificar o servidor público de parasita, como fez o ministro da Economia, Paulo Guedes, há uma enorme distância. Mudando de paradigma, é tão equivocado como chamar de parasitas os operadores do mercado financeiro, categoria da qual o ministro faz parte, com muito êxito.

Existe, sim, parasitismo na administração pública brasileira. A Operação Lava-Jato está aí mesmo para mostrar a plêiade de ectoparasitas e endoparasitas que tomou de assalto, por exemplo, as operações da Petrobras e a preparação da Copa do Mundo de 2014, mas comparar os servidores públicos às pulgas, aos carrapatos e às lombrigas é uma agressão alucinada e inaceitável. Não foi à toa que o ministro Guedes se viu obrigado a distribuir uma nota afirmando que a frase na qual chama os servidores públicos de parasitas foi retirada do contexto — a culpa das declarações infelizes é sempre dos jornalistas. Guedes levou um puxão de orelhas do chefe, o presidente Jair Bolsonaro, mantido pelo erário público desde a juventude, seja como militar, seja como político.

Às vésperas de uma reforma administrativa cujo objetivo é reduzir custos, aumentar a eficiência e eliminar privilégios na máquina pública, a frase de Guedes revela que, mesmo cercado de excelentes técnicos do setor público, não se deu conta de que não existe administração eficiente e moderna sem um corpo burocrático qualificado e motivado. Ou seja, não conseguirá dar seguimento às reformas que preconiza sem conquistar o apoio dos servidores públicos de carreira.

Aliás, o governo Bolsonaro começa a pagar o preço por subestimar e tratar com preconceito os servidores, como no caso dos desmontes das equipes técnicas do INSS e da Dataprev, hoje com uma fila de 2,6 milhões de pessoas esperando aposentadorias e benefícios. Não se trata de defender o corporativismo e ser contra a privatização de estatais, como a Eletrobras, os Correios, a BR Distribuidora e outras. Mas é um erro crasso desvalorizar os servidores e, inclusive, não reconhecer a existência de centros de excelência na gestão pública, como o BNDES, o Inep, o Inpe, a Funai, a Polícia Federal e o Itamaraty. Isso não tem nada a ver com eliminar privilégios e mordomias.

O outro lado da moeda é a tensão permanente entre a ética das convicções, como a do ultraliberal Paulo Guedes, que persegue o “estado mínimo”, e a ética da responsabilidade, que serve de eixo condutor e moral da atuação da burocracia de carreira, responsável por zelar pela legitimidade dos meios empregados pelo governo. Talvez o grande incômodo de Guedes não seja propriamente a existência de servidores parasitando a máquina pública — eles também existem —, mas as exigências legais e institucionais que o governo precisa observar para viabilizar as reformas. Ou seja, o fato de que gostaria de impor a sua reforma administrativa a qualquer preço, colocando-se acima das instituições e do ordenamento democrático vigente.