sexta-feira, 22 de maio de 2020

Heleno é general de pijama, mas faz ameaça como governo

O general Augusto Heleno fez uma ameaça explícita às instituições. Segundo ele, se houvesse a apreensão do celular do presidente da República haveria “consequências imprevisíveis”. Augusto Heleno é um general de pijama, não comanda tropa, e sua opinião não se reflete em ação das Forças Armadas. A importância vem do fato de que ele assina como chefe do Gabinete de Segurança Institucional, um órgão da Presidência da República.

Até pelo cargo que ocupa, o general deveria pensar antes de se manifestar. A sua nota avisa que o fato não ocorreu. “Caso se efetivasse”, disse ele. Tudo isso é muito barulho por nada, porque o que fez o ministro Celso de Mello foi encaminhar notícia crime que chegou a ele para a PGR. A notícia crime, apresentada por partidos de oposição, pede a apreensão do celular de Bolsonaro e do filho Carlos.


Se o GSI funcionasse ele teria informações mais precisas sobre a dimensão do fato e não soltaria uma “Nota à Nação Brasileira” com essa solenidade toda, e com o brasão da Presidência da República. Ele em si não tem importância, mas o cargo, sim. E Augusto Heleno usou o cargo. Dificilmente fez isso sem consultar o próprio presidente.

Não é a primeira vez que o general tem o comportamento inadequado, ou uma fala indevida, para o posto em que está. Suas atitudes e declarações derrubam a lenda urbana de que há uma ala moderada no governo Bolsonaro, e é constituída pelos militares, que equilibrariam as bizarrices da ala ideológica. Na verdade, não há bombeiros no governo Bolsonaro.

Pandemiazinha de Bozo


É a vida, é a realidade. Morre muito mais gente de pavor
Jair Bolsonaro

Armadilhas no caminho

Mesmo disfarçados de civis, os militares que estão no governo não sabem enfrentar o jogo bruto da política, e se perdem em assertivas retóricas a favor da democracia enquanto os operadores políticos levam à frente ações antidemocráticas que não são coibidas pelo presidente Jair Bolsonaro.

Ontem foi o dia para justificarem suas presenças no entorno do presidente, em ações políticas positivas em direção ao diálogo. A reunião com os governadores foi cuidadosamente montada para que desse uma sinalização de armistício na relação entre os Poderes da República. 

Os ministros militares Braga Neto, Chefe do Gabinete Civil, e Luiz Eduardo Ramos, chefe da Secretaria de Governo, estiveram na Câmara dias antes conversando com o presidente Rodrigo Maia, e contataram o presidente do Senado Davi Alcolumbre, para garantir um ambiente possível de entendimento.

O General Ramos, o único ainda da ativa na assessoria do presidente Bolsonaro, telefonou pessoalmente para os governadores, só não falou com o de São Paulo, João Doria, que foi procurado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

Desarmados os espíritos, inclusive o de Bolsonaro, ocorreu o que está sendo classificado pelo Palácio do Planalto como “um encontro histórico”. Ontem também o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), General Augusto Heleno, garantiu em uma palestra que “ (...) Não passa [pela cabeça] ditadura, intervenções, isso são provocações feitas por alguns indivíduos que não têm coragem de dizer quais são suas ideologias, que ficam provocando os militares para ver se nós vamos reagir.”

No domingo passado, a manifestação bolsonarista na praça dos Três Poderes não teve faixas a favor de intervenções militares e contra o Supremo e o Congresso em frente ao Palácio do Planalto, fato que foi destacado pelo próprio Bolsonaro em suas redes sociais.

Mas as faixas estavam lá, só que guardadas por orientação da assessoria presidencial, em mais uma tentativa de dissociar os bolsonaristas radicalizados das manifestações políticas que podem ser frequentadas pelos assessores militares sem manchar a farda.

Também ontem o nome do General Braga Neto foi envolvido em uma conspiração que ameaçava de morte juízes, políticos, e procuradores com base no Distrito Federal, em nome de um “Comando da Intervenção”, que anunciava que o General seria o comandante de uma suposta intervenção militar.

Ele renegou o uso de seu nome na trama, e a Polícia Federal entrou em ação para prender os conspiradores. Não apenas o espírito de hierarquia faz com que esses militares prossigam no apoio ao governo, apesar de tantos desmandos já cometidos.

Há um insuperável espírito de corpo que os une, e a tentativa honesta de ajudar o país, ainda mais em momento de calamidade sanitária. O traquejo político que lhes falta, porém, sobra em Bolsonaro, político há mais de 30 anos, e isso é razão de admiração entre os seus, mas também armadilha que pode levar a corporação a assumir os desvios de conduta do presidente e seu grupo político radical.

Num desses domingos de manifestação, Bolsonaro declarou que os militares o apoiavam, diante de faixas com dizeres antidemocráticos; em outro, foi a um ato em frente ao Quartel General do Exército. O caso do General Pazuello no ministério da Saúde é exemplar.

Há uma reação à sua indicação oficial para o cargo, pois consideram que o Exército passaria a ser responsável pela pandemia, nos bons momentos, que são poucos, ou nos ruins. Bolsonaro, então, resolveu deixá-lo como interino, mas com ordens de portar-se como o titular. Tanto que Pazuello escolheu até mesmo o número dois do ministério, que era o seu lugar na gestão do ministro Nelson Teich. Um drible político que seus assessores não puderam impedir.

O General Augusto Heleno, nessa mesma palestra em que negou a possibilidade de golpe militar, disse que o governo não precisava de apoio da mídia tradicional porque tinha suas redes sociais. Mas a radicalização política vem destas mesmas redes, que não têm os freios democráticos impostos pela convivência civilizada.

Os militares tentam retomar nos dias recentes o papel moderador de garantidores da democracia que se esperava que assumissem desde o início do governo, mas para tanto precisarão se desvencilhar de armadilhas que os colocam, aos olhos da opinião pública, como avalistas de possíveis golpes.

Se eu morrer, saibam quem me matou

Regina Duarte, esperamos que honre a memória de nomes como Paulo Emílio Salles Gomes, Almeida Salles, Rudá de Andrade, Caio Scheiby, Antonio Candido, Décio de Almeida Prado, Rubem Biáfora e B.J Duarte, pioneiros na fundação da Cinemateca.

Esta é a crônica mais delirante e real que escrevi nestes meus 27 anos neste jornal. Se eu morrer de covid-19, saibam que fui assassinado. Sei que posso ser morto apesar dos cuidados que tomo. Estou há 50 dias encerrado em casa. Não desço sequer para atender motoboys que trazem medicamentos, compras de supermercados ou refeições. Gastei hectolitros de álcool gel, cheguei ao máximo de, após receber uma ligação, dar um banho no telefone com medo de ser contaminado pelo som. Quando vejo noticiário, desligo se o presidente começa a falar, enraivecido, espalhando perdigotos, tossindo, espirrando, dando a mão, insensível, abusado.

Tenho medo de ser infectado. Aqueles olhos claros que poderiam ser amorosos e cordiais nos fuzilam com chispas de ódio. Como deve sofrer quem vive assim na defensiva. Porque ele é pura defensiva o tempo todo. Segundo os sábios, não podemos olhar nos olhos de uma pessoa que odeia tudo, o mundo, a vida, porque podemos trazer para dentro de nós o que ela tem de maligno. Há o perigo de nos tornarmos como ela, malvada, perversa. Dona Ursulina, senhora sábia, que cozinhava como poucos, avó de um primo querido, diante de gente ruim costumava dizer: “Isso não é gente, isso é o demônio”. E esse presidente se diz religioso, vai a cultos, agrada a fiéis, bispos, pastores, o que for. Quem ele quer enganar?

Mas algum deus está de olho. Os deuses existem, cada um sob uma forma, espírito, sopro divino. Seja o meu Deus, seja Maomé, Jeová, Alá, o Sol, Shiva, Buda, Brahma, Jina, o conquistador, ou Zeus, Júpiter, ou quantos mais houve e os novos, que andam por aí. Bolsonaro me lembra um deus dos maoris, na Nova Zelândia, de nome Whiro, o maléfico, senhor das partes mais escuras da vida. Lendo sobre culturas primitivas, descobri semelhanças interessantes. Diz Joan Rule em Os Foes da Papua-Nova Guiné (As Religiões do Mundo) que, naquele país, na tribo dos foes, “os homens com uma relação com as coisas maléficas e que sabiam os encantamentos devidos eram favorecidos e não seriam incomodados. Porém os que provocassem a ira do espírito ficariam com as pernas ou o estômago inchados”. É ou não é uma definição justa para bolsonarismo, milícias, o gabinete do ódio, redes de fake news, destruição de personalidades, ataques à natureza?


Rule nos revela outra crença que é metáfora perfeita para nossos tempos. Cita a existência dos “Soros, espíritos errantes que andam aqui e acolá, sempre à espreita para prejudicar os humanos”. Esses espíritos estão encarnados naqueles que fazem carreatas contra isolamento, pregam a hidroxicloroquina (nenhum jornal perguntou quem está lucrando com essa história), o fim do Supremo, a volta da ditadura, da tortura, do AI-5, do fechamento do Congresso. Porque essa turma é uma seita com seu deus Bolsonaro, perto de quem os Soros e os Whiros são cândidos e celestiais. Sabemos que todas investigações morrerão nas mãos do procurador Aras. Não nos iludamos e esta minha crônica é propositalmente desestruturada, algo caótica, porque retrata tempos que vivemos, não sabemos onde ir, o que fazer, pensar, para onde ir, de quem esperar.

O que fazer muitos sabem e têm nas mãos os poderes. Mas não fazem. Não querem. O que aconteceu, gente? Estamos anestesiados? Hipnotizados? Amortecidos? Deprimidos? Ou temos fumado muito, mas muito, muito crack? Para finalizar, quero dizer que, se eu morrer de covid-19, saibam que fui assassinado. Não precisam chamar a PF, nem Hercule Poirot, o inspetor Maigret, Phillip Marlowe, Sherlock Holmes, Perry Mason, Arsène Lupin, Nero Wolfe, Kay Scarpetta, Miss Marple, Charlie Chan (ah, os seriados!), inspetor Melo Pimenta (Jô Soares), Ed Mort (Verissimo), Bellini (Tony Bellotto), Mandrake (Rubem Fonseca), doutor Leite (Luis Lopes Coelho), delegado Spinosa (Garcia-Roza). Tenho uma estante cheia deles aqui em casa.

Não, não é necessário gastar cérebros em investigações. Se bem que agora nas séries o crime é descoberto em laboratório, com microscópios, dextetropinas, anfetaminas, insulinas, DNAs e produtos químicos que os atores decoram sem ter a mínima ideia do que se trata. Saibam, caros leitores, que, se eu morrer, fui assassinado pelo presidente com sua interferência na Saúde. Eu e milhares, uma vez que já estamos perto dos 20 mil mortos.

O poder das palavras em tempo de peste

As palavras o que podem? Se pesam
demais e vão além do que é preciso,
ofendem a subtileza e lesam
o valor do que deve ser conciso.

Se ficam aquém do que é necessário
e dizem menos do que foi sentido,
se o pensamento dito sai precário,
todo o esforço de dizer foi perdido.

Face a uma grande calamidade,
dilúvio, peste, fome ou guerra,
as palavras perdem vitalidade
e tremem do mal que assola a terra.

As palavras podem só o que podem
e sugerem, das nossas emoções,
uma leve sombra – e mal acodem
ao tumulto das nossas aflições.

Porém, as palavras são o que temos
e só com elas ao nosso dispor
iremos fazer o que podemos:
dar ao nosso mundo alguma cor.
Eugénio Lisboa

Covid e caserna

Graças a Jair Bolsonaro, atualmente na Presidência da República, o Ministério da Saúde está sendo ocupado pelos militares. Significa que, por falta de gente do ramo, leia-se médicos, no comando, a Covid-19 continuará rompante no país. Mas faremos alguns progressos. Nos hospitais, por exemplo, os pacientes serão acordados a corneta. Haverá juramento matinal à bandeira, rufo de tambores à visita de um coronel e revista diária de tropas, digo, enfermeiros, pelo oficial de serviço.


O que nos leva a uma pergunta. Já que nossos generais não acreditam em besteiras como confinamento, quarentena e distanciamento social, e não se conformam com que os escritórios, fábricas, igrejas, lotéricas e até manicures estejam parados, como anda a coisa entre eles? A julgar pela nova orientação do ministério, os militares não devem estar impondo ao seu pessoal os cuidados que muitos de nós, paisanos covardes, achamos prudente seguir.

Assim, pode-se imaginar que, neste momento, os quartéis estão cheios de rapazes marchando juntos, fazendo ginástica juntos, dando tiro juntos, dormindo juntos e acordando juntos, e também tossindo, assoando-se e espirrando juntos. Um soldado e um cabo, capazes de fechar sozinhos o STF, levarão a mão à testa centenas de vezes por dia, de acordo com o número de continências que terão de bater para o sargento. Não é um risco?

Mais perguntas. Se se distribuir máscaras à tropa, serão de lona verde-oliva para combinar com a farda? Fuzis e granadas estão sendo higienizados? Cavalos são sujeitos à Covid? E como vai o estoque de cloroquina na caserna? Sabendo-se que o Chefe Supremo das Forças Armadas é um camelô especializado na droga, ela deve estar sendo servida compulsoriamente no rancho.

Bom sinal. Sinaliza que o governo talvez comece a cuidar de parte da população. Pena não ser a minha parte. Não passo de um reles reservista de terceira.
Ruy Castro

Fomentar a polarização, nem que seja sobre cadáveres, eis o lema de Bolsonaro

Uma crise tão gigantesca e imprevisível como a atual não tem solução simples nem fácil. Nenhum país tem uma varinha mágica para acabar instantaneamente com o novo coronavírus e fazer a economia voltar a todo vapor. E mais: todos os governantes estão aprendendo a lidar com a covid-19 em exercícios de tentativa e erro, levando em conta as especificidades do desenvolvimento da doença em cada nação. Não obstante, é possível encontrar cinco características básicas dos melhores governos no enfrentamento da pandemia. Isso é positivo e permite encontrar alguma luz no fim do túnel. A notícia ruim é que o presidente Bolsonaro está na contramão de tudo que dá certo no plano internacional.


A primeira característica dos governos mais bem-sucedidos no combate à covid-19 foi a combinação de ciência e humanismo. Seus líderes usaram evidências científicas para construir as políticas públicas, mesmo que haja diferenças entre as respostas dadas por tais países. Construíram mapas de incidência da doença, planejaram a compra de equipamentos de saúde, propuseram uma variedade de tipos de isolamento social, tudo isso com base em dados sistematicamente produzidos e acompanhados. Esses governantes não tiveram medo de falar verdades inconvenientes quando foi preciso, porque optaram por soluções racionais e não pelo pensamento mágico.

É verdade que não há conhecimento científico para lidar com várias incertezas da pandemia, porém, o que se sabe é o suficiente para evitar alguns erros e, sobretudo, não trilhar o caminho do irracionalismo. Os líderes mais exitosos tinham um plano básico de travessia da crise, estruturado nas evidências disponíveis, e não optaram pela mudança de ideias a cada semana, muito menos seguiram os humores das redes sociais.

Os líderes que tiveram melhor desempenho até agora não se nortearam apenas pela ciência. Eles tiveram no humanismo uma bússola central de suas ações, pois demonstraram um alto grau de empatia pelas pessoas atingidas pela doença e pela crise social derivada disso. Esse é um aspecto importante, porque líderes políticos efetivos não são meros tecnocratas. Por isso, tais governantes falaram constantemente com a população, elogiaram efusivamente os profissionais de saúde e fizeram muitas outras ações para mostrar que consideravam o combate à covid-19 o maior problema de seus países. Foram lideranças que transmitiram confiança para a sociedade, realçando que é necessário combinar a linguagem científica com a humanista para enfrentar grandes crises.

A capacidade de agregar os diferentes atores (governamentais e não governamentais) na luta contra a pandemia é uma segunda característica que aparece nos casos mais bem-sucedidos de enfrentamento da covid-19. Coordenação de esforços e busca de consensos com as instituições e grupos que tenham alguma incidência nas decisões coletivas foram essenciais. Em países federativos, como a Alemanha, a Argentina ou a Austrália, a liderança nacional conversou constantemente com os governantes locais, dando-lhes um papel estratégico, mas coordenando a ação de todos.

O resultado sempre foi catastrófico onde predominou a cizânia. O exemplo dos Estados Unidos seguiu essa linha. Trump tem brigado constantemente com os governadores e tem deixado de liderar o país em ponto centrais, no fundo passando a responsabilidade pelos problemas sanitários aos governos subnacionais. A imprensa americana chegou a dizer que o presidente estava estimulando um federalismo darwinista, uma competição predatória de todos contra todos. O problema é que, como disse o governador de Nova York, “as fronteiras estaduais significam muito pouco para o vírus.”

O combate aos efeitos econômicos da pandemia foi a terceira característica distintiva. A atuação se deu em dois fronts: a garantia de renda para os setores econômicos mais vulneráveis e a ajuda direta às empresas para que elas sobrevivam - afinal, não há capitalismo sem empresas. Esse é um dos pontos mais complicados, dado que não se sabe ainda o tamanho da depressão econômica que virá pela frente. De todo modo, é preciso lembrar duas coisas: que governos em várias partes do mundo continuam ampliando o volume do auxílio financeiro aos setores econômicos, sem vincular isso à volta das atividades normais, e que nenhum país bem-sucedido tinha uma grande desigualdade social.

Destaca-se, ainda, outro elemento que explica os bons resultados em determinados países: a constituição de uma equipe governamental que tratou a crise gerada pela pandemia como um problema intersetorial. Esses governos procuraram, com maior ou menor sucesso, elaborar ações para diversos setores afetados, como educação, transportes, cultura e outros, e não apenas para a saúde e a economia, buscando criar uma congruência de decisões entre as várias áreas afetadas. Obviamente que os maiores problemas são as mortes das pessoas acometidas pela doença, bem como o desemprego e a falência das empresas. Mas, por exemplo, a perda de meses de aulas pelas crianças e jovens também exigirá um enorme esforço social para ser revertida.

A última característica ainda está em construção pelos governos, sendo um elemento que precisa de um tempo maior para ser avaliado. Mesmo assim, é possível distinguir os países que souberam planejar medidas para o dia seguinte da pandemia, com base em evidências e análises que têm levado em conta a realidade do país, inclusive tendo planos para a possibilidade de uma segunda ou terceira onda do vírus. Planejamento e acompanhamento contínuos serão necessários, além de manter o diálogo com os atores envolvidos, para garantir a eficácia da implementação das medidas.

O Brasil está longe, no momento, de ter o governo dos sonhos. Estamos mais próximos da hora do pesadelo. É isso que se conclui ao se comparar o que foi feito em outros países com aquilo que tem sido feito pelo presidente Bolsonaro. Em primeiro lugar, porque o bolsonarismo não consegue combinar ciência com humanismo. Pior do que isso: menospreza ambos os critérios.

As decisões do Ministério da Saúde são cada vez mais influenciadas pelo medo de desagradar o “chefe”. Se o presidente acredita que a cloroquina deve ser entregue a todos os brasileiros, que assim se faça, mesmo que não haja nenhuma comprovação científica cabal do uso desse protocolo. A proposta de isolamento vertical vai na mesma linha: qual é a evidência científica que justifica tal modelo? Num país tão desigual como o Brasil e que demograficamente tem um número grande de idosos morando com seus familiares em comunidades mais carentes, como se monta um isolamento vertical?

Quanto ao humanismo, Bolsonaro só o considera para a sua família, amigos e seguidores. Ele não demonstrou até agora nenhuma empatia pelos mortos e seus familiares. Poderia fazer uma grande homenagem aos que estão na ponta dessa verdadeira guerra, mas seu séquito bolsonarista agrediu enfermeiros em recente manifestação. Quando houver cem mil vidas perdidas, haverá algum pronunciamento presidencial? Com certeza, há muita gente sofrendo com a crise econômica. Como de costume, o bolsonarismo quer a divisão do país, já que se beneficia dela. Fomentar a polarização, nem que seja sobre cadáveres, eis o lema de Bolsonaro.

A liderança presidencial não optou no Brasil pelo diálogo e negociação com os atores sociais. Bolsonaro só tem alimentado o confronto com todos. Governadores, prefeitos, STF, Congresso, movimentos sociais, todos são inimigos do bolsonarismo, de modo que as ações contra a pandemia se tornam extremamente descoordenadas, reduzindo a eficiência governamental. Depois de tanta briga, com quem o presidente vai governar?

No front econômico, o presidente e sua equipe econômica queriam ter aprovado uma ajuda de R$ 200, mas graças ao Congresso se evitou essa vergonha internacional. Além disso, o processo de ajuda tem sido atribulado, de modo que as pessoas mais necessitadas se colocam em risco em grandes filas, numa humilhação que não deveria existir num país em que há direitos de cidadãos. Em relação ao auxílio às empresas, claramente ele tem sido insuficiente. Novamente, o objetivo é claro: aumentar o caos social para que todos apoiem uma abertura econômica que pode ser a antessala de um agravamento da pandemia.

Esperar uma equipe ministerial que tenha uma ação intersetorial e planeje com cuidado o dia seguinte da pandemia é algo irrealista no atual governo. Todos são meros seguidores do irracionalismo do presidente e não conseguem se contrapor às maiores atrocidades que ele tem feito. Na verdade, quem se coloca contra o errado é demitido. Meu velho amigo Oliveiros Ferreira dizia que um bom governo se conhece pela entourage presidencial, ou seja, quem assessora e aconselha o governante. Assim, temos um problema: Bolsonaro só ouve os filhos e eles só pensam em radicalismo e em salvar a própria pele.

Dadas as caraterísticas da liderança presidencial e de seu governo, o Brasil terá um caminho muito atribulado pela frente. O pior de tudo é que, mesmo com milhares de mortes, Bolsonaro não aprenderá com a experiência internacional, porque ele nunca muda suas ideias. Ele só dobra a aposta no seu radicalismo que tem produzido um pesadelo sem fim para a grande maioria dos brasileiros.
Fernando Abrucio

Saudade de esperança

1.

Dizem que cada coisa tem seu substituto. Substituição que se sucede infinitamente. Mas não acredito nisso: nada se substitui.

Aqui, cada semana é mais íngreme que a anterior – já não tenho mais posição, sentado ou deitado. Escrevo com o aparelho no colo, ele esquenta como uma torradeira sobre as minhas pernas. E agora há um mau contato, o abajur pisca e se apaga. Fico com a luz noturna, o céu púrpura-terroso de São Paulo pelas janelas, o brilho do cristal onde vejo impressas estas letras, uma após a outra, a cada martelada. Estou só, e penso em como escrever o que preciso escrever agora.


2.

Nada jamais irá se igualar a essa cápsula solene e vulgar, angustiosamente temporal – o agora.

A condição de existência para o presente é uma só: tornar-se passado. Ele existe justamente pela sua tendência para não existir, diz Santo Agostinho. E como podemos afirmar que uma determinada coisa existe, se a sua razão de ser é aquela pela qual deixará de existir?

Pois o presente é essa transição efêmera – é muito difícil capturá-lo diante da carga de passado que o constitui e do futuro que já começa a queimar-se. E o que seria esse ponto? Esse presente que nos escapa como um sapo que tentamos agarrar e sempre se coloca mais adiante? Ele é a única dimensão que enxergamos como real, ao mesmo tempo que parece a mais difícil de reter.

Até porque neste momento, no próprio coração do imediato, há sempre um vasto horizonte desconhecido – que muitas vezes só iremos compreender depois.

3.

Pouco distingue as memórias de outros momentos. Nós costumamos reconhecê-las apenas mais tarde, pelas cicatrizes que deixam.

Num cada vez mais célebre ensaio de 1944, Natalia Ginzburg relata o exílio da família em um vilarejo no interior da Itália, onde buscou refúgio do regime fascista por três anos. Seu marido, Leone, era um escritor e editor envolvido com grupos de resistência a Mussolini. A vidinha na província era simples, o casal saía para passear na neve com os filhos, acompanhava as fofocas dos vizinhos pelas janelas, as mortes dos mais velhos pelos sinos da igreja. A saudade dos amigos, dos livros e da cidade grande era aplacada por imaginar que logo o desterro teria fim.

No fim de Inverno em Abruzzo, a escritora italiana relata que, poucos meses depois de a família deixar o vilarejo, seu marido morreu no presídio Regina Coeli, em Roma. "Naquela época eu tinha fé num amanhã fácil e alegre, rico de desejos realizados (...) Mas aqueles eram os melhores dias da minha vida e só agora que me fugiram para sempre, só agora eu sei."

5.

Freud escreve em A transitoriedade (1916) que a impermanência do belo não implica na sua desvalorização. Ao contrário, a mortalidade valoriza as coisas do mundo, sejam caminhadas invernais num vilarejo, amores, obras de arte ou mesmo a fé no futuro: "É incompreensível que a ideia de transitoriedade do belo deva perturbar a alegria que ele nos proporciona."

Reconhecer as impermanências da vida como sua única constante exige atenção e esforço diários, mas pode ser estranhamente libertador. Uma liberdade diferente, que nos atrai para o lugar e o tempo onde estamos.

6.

Não há melhor homenagem a um escritor do que a releitura silenciosa dos seus livros. Foi o que fiz, desorganizadamente, desde que recebi a notícia da morte do Sérgio Sant'Anna. Andei relendo clássicos como O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, A tragédia brasileira, Voo da madrugada e produções mais recentes, como o derradeiro – e comovente – Anjo noturno.

A forma curta nunca teve horizontes tão largos, chega aqui aos limites da representação e do próprio universo. Sempre unindo rigor formal e liberdade no processo – essa literatura por vezes parece um ateliê de portas abertas que nos permite acompanhar os pensamentos do escritor que escreve. E quando Sant'Anna abre diálogos altamente elaborados com outras formas, como a arte conceitual, jamais deixa de ser muito divertido, mesmo quando nos coloca à deriva ou diante da tragédia.

Sinto que perdemos o mais contemporâneo dos contemporâneos. Sua partida nos deixa órfãos de presente num país que hoje parece encontrar sua vocação final naqueles versos do Yeats: "Falta fé aos melhores, já os piores se enchem de intensidade apaixonada."

Mas aqui não se trata apenas de uma crise de fé. Nossos melhores estão morrendo. Entre tantas perdas trágicas, em menos de trinta dias se foram os dois maiores escritores vivos do país: Rubem Fonseca e Sérgio Sant'Anna, o segundo em ebulição criativa até o final.

É como se o Brasil estivesse se vingando de si mesmo. Nossa maior saudade hoje talvez seja a mesma de Ginzburg: a de sentir esperança.
J.P. Cuenca

Pensamento do Dia


E daí-5?

Se o Brasil for mesmo uma novela, é melhor não acompanhar para não acabar no buraco. Pensando bem, não faz a menor diferença, pois no final da história todos nós, do oiapoque ao sushi, vamos acabar nos fuˆ%$#@den$%ˆ&do mesmo jeito.

A sensação que se tem de viver no Brasil é a de um passageiro no Boeing da Golssonaro no meio do Atlântico, sem combustível e com um comandante maluco. A ministra Damares é a aeromoça que não serve nada, e o comissário que fala em “ingrêis” é o ministro da “inducasão”, o “profeçor” Simon Weintraub, que avisa que, se o avião cair, não vai mudar a data do Enem, mesmo porque ninguém será aprovado.


Chamar o presidente Jair BolsoAdolf de louco é um insulto aos malucos, que têm como líder máximo o grande (quer dizer, pequeno) Napoleão Bonaparte. Existem outras correntes (uma contínua e outra alternada) que discordam. Para alguns, Nero é o maior insano de todos os tempos. Outros, que acham que são Jesus Cristo, e, portanto, têm direito ao título. Mas esses caras todos não sabem do que estão falando, pois eu, Agamenon Mendes Pedreira, enquanto Deus, o criador de todas as coisas, onipresente, onipotente e onisciente, ainda não tive tempo para resolver esse assunto.

Por outro lado, classificar Jair Bolzonazi de besta também constitui em ofensa grave e preconceituosa contra as mulas, jumentos, burros, jegues e outras cavalgaduras que sempre foram muito úteis à humanidade. A única coisa que esses animais fofinhos e o BolsonAsno possuem em comum é o fato de terem quatro patas. Aliás, o presidente em exercício afirmou ter um “histérico” de “atreta” no Exército (de onde foi “aposentado” com honras), o que me fez pensar em uma hipótese.

Sigam-me no meu raciocínio: se o Messias tivesse servido na cavalaria, como montaria equestre, a história do Brasil seria outra. Depois de anos de pulos, saltos, trotes e galopes, Jair seria reformado como tenentequino-capitão e passaria o resto de seus dias em um pasto dedicado à reprodução do zero-1, zero-2, zero-3 e do zero-4 — que, por sinal, é um garanhão.

Ao contrário, como não sabia fazer nada por vocação, a Besta do Apocalipse foi parar na política, onde, durante anos, deu prosseguimento à sua incansável inatividade, não apresentando nenhum projeto. Na verdade, só havia um projeto: eleger os filhos democraticamente para que, mais tarde, pudessem defender a volta da ditadura.

No Rio de Janeiro, Bolsosaco tem uma casa na Barra da Tijuca Pesada. Nesse aprazível condomínio litorâneo à margem da lei, também vivem seus filhos (01, 02, 03, 04 e o zero à esquerda), o Queiroz, policiais e outros milicianos de alto coturno. Por que o Bolsoanarco não se contentou em ser síndico? O máximo que ele ia fazer era proibir os transgêneros de frequentarem a piscina.

Como todos os meus 17 seguidores e meio (não esqueçam do anão que, por conta de sua altura, só recebe 300 reais de benefício do Caixão Econômico) estão cansados de saber, os milicianos são uma espécie meliante com deformação militar. Além de um bico na polícia ou nos bombeiros, recebem um por fora, infernizando a vida das comunidades carentes, onde viraram concorrentes dos traficantes. Com essa concorrência desleal, os milicianos já superaram os traficantes naquilo que sabem fazer melhor: o tráfico de influência e assassinato de reputações.

Essa novela não acaba e, o que é pior, é reprise. A agora ex-secretária de InCultura, Regina Desastre, a “Bolsonarinha do Brasil”, surtou diante das câmeras da CNN, interpretando seu mais famoso personagem, a Viúva Cloroquina. Se eu fosse crítico de teatro, escreveria o seguinte: “Neste espetáculo dantesco, o enredo do monólogo foi péssimo, a atuação da atriz principal lamentável e a direção deveria ser suspensa pelo STF (Supremo Teatral Federal)”. Outra coisa deve ser observada: o espectador não consegue entender se o triste espetáculo é uma comédia, drama ou tragédia. Deveriam devolver o dinheiro do ingresso na Caixa Econômica.

Agamenon Mendes Pedreira é sargento de milícia desmemoriado

O país de Schrödinger

Um alienígena que nos observe — ou a gente mesmo, se der um passinho atrás para ter distanciamento crítico — ficará mais indeciso que o Weintraub diante de um SS e um Ç. Isso que está nos acontecendo é um despertar ou um estertor? É ainda construção ou já é ruína, como cantou o Caetano? Estamos indo em frente, andando em círculos ou sendo sugados por um buraco negro? Talvez tudo, ao mesmo tempo.

Temos um presidente eleito com o discurso de acabar com a velha política e que se atira nos braços do centrão (o tal buraco negro do parágrafo aí em cima). Que diz querer salvar a economia a todo custo (e bota “todo custo” nisso!) e fez corpo mole na implementação das reformas que efetivamente poderiam nos tirar do atoleiro. Que pretende reverter o aparelhamento da cultura reaparelhando-a no sentido contrário — mas escolheu para a função uma atriz, não uma equilibrista, e ela despencou em menos de três meses. Ainda assim, sobreviveu mais que o dobro do tempo do finado ministro da Saúde, o segundo abatido (e bota abatido nisso!) no meio de uma pandemia.

Nossa tendência ao paradoxo é tanta que, em vez de o vírus contaminar o Brasil, foi o Brasil que contaminou o vírus, e vivemos uma pandemia de Schrödinger. Daquelas que paralisam o mundo, provocam centenas de milhares de mortes, conduzem a uma recessão monumental, e não passam de uma gripezinha.


Dependendo do lado pelo qual se olhe, os hospitais estão simultaneamente lotados e às moscas. O tratamento é caro, demandando uso de respiradores, tomógrafos, unidades de terapia intensiva, criação emergencial de novos leitos, mas se resolve com um comprimido que custa R$ 0,20.

É preciso ficar em quarentena, manter distanciamento social, usar máscara, lavar compulsivamente as mãos, higienizar cada ovo da caixa, cada banana do cacho — mas pode-se encher a casa de amigos para assistir às dezenas de laives feitas diariamente para diminuir a sensação de isolamento.

O PIB da China despencou 6,8%, o Papa rezou para uma praça sem vivalma, os Jogos Olímpicos de Tóquio foram adiados, a Índia botou 1,2 bilhão de pessoas em casa — tudo orquestrado pela nossa esquerda, só para prejudicar o presidente do Brasil.

O número de casos da Covid-19 está subnotificado (pode ser dez vezes maior, porque a população não foi testada em massa) e supernotificado (parafraseando o pistoleiro Frederico Evandro, de “Lisbela e o prisioneiro”, o corona só atira: quem mata é Deus, e as mortes mandadas por Deus não contam).

A pandemia adquiriu aqui esse caráter dúbio por sermos um país avacalhado pelos seus e ambivalente por natureza. Queremos uma imprensa livre, desde que não fale mal do governo — imprensa crítica põe em risco a democracia. Dos três poderes, só um pode — os outros apenas atrapalham. Somos a Federação na qual os estados gozam de uma autonomia que dura até as decisões locais irem contra as do governo central — aí a República Federativa torce o rabo.

Quem pode ficar em casa e ajudar a reduzir a propagação do vírus é visto como um narcisista (e de esquerda, ainda por cima). Quem não tem escolha, e precisa correr risco de vida para poder sobreviver, é chamado de irresponsável.

Chegamos ao ponto de manifestantes saírem às ruas com bandeiras onde se lê “Ordem e Progresso” — para pedir desordem e retrocesso.

Esse país de Schrödinger tem um governo que foge da pecha de fascista, mas evoca o lema dos campos de concentração ao propagandear que “O trabalho, a união e a verdade vos libertará” (sic). E na oposição ao insensível “E daí?” para o número de mortos encontra o “Ainda bem” de quem não pode ver um cadáver que já monta o palanque.

O país real talvez esteja na interseção dessas duas narrativas paralelas: um lugar imaginário onde o remédio cure ou não cure, sem ligar para ideologia de quem o receita ou de quem o tome. Ainda assim, um país barroco, cheio de antíteses, em permanente conflito consigo mesmo. E que está, no momento, em estado de superposição quântica. Como ser e não ser, ao mesmo tempo? Eis a "cuestão".

O maior crime de Bolsonaro

Não será a irresponsabilidade criminosa durante a crise do coronavírus ou a tentativa de pôr o Estado a serviço de sua família o que entrará para a história como o maior crime cometido pelo governo de Jair Bolsonaro. Seu principal legado será a desenfreada destruição do meio ambiente brasileiro, desse tesouro único que o país ainda possui. 

No primeiro trimestre deste ano, o desmatamento na Amazônia já atingiu um novo nível recorde. De acordo com o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), só em abril (em plena pandemia) 529 quilômetros quadrados de floresta foram desmatados – o que representa um aumento de até 171% em relação ao mesmo mês do ano passado. É a maior área desmatada no mês de abril nos últimos 12 anos.

Todas as previsões indicam agora que a situação catastrófica do ano passado vai se repetir quando a vegetação for queimada nos meses de inverno, e dezenas de milhares de focos de incêndio devastarem a floresta. Para o Brasil, os incêndios de 2019 foram provavelmente o maior desastre internacional de relações públicas em sua recente história. Mesmo aqueles no exterior que não estavam interessados em política e não tinham ideia de quem era Bolsonaro passaram a ver o Brasil de forma negativa.


Entre os ambientalistas é de amplo conhecimento que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, é o "testa de ferro" de interesses econômicos, como descreveu o jornalista André Trigueiro. Salles não protege a Floresta Amazônica, está praticamente entregando-a à máfia ambiental.

Para satisfazer a clientela, ele usa uma tática que se tornou praxe no governo Bolsonaro: a destruição, por dentro, das instituições estatais. Isso pode ser observado em muitas áreas: na educação e na cultura, na Funai ou na Fundação Palmares. Colocam-se em posições-chave personalidades cuja única qualificação é pertencer ao movimento bolsonarista, que se radicaliza cada vez mais.

Essas figuras executam um expurgo ideológico, que pode ser facilmente comparado à atitude de regimes totalitários. Os demais funcionários de escalões inferiores são ameaçados e desmoralizados, enquanto a tarefa institucional dos órgãos governamentais é revertida. Dessa forma, a Funai deixa de ser uma agência de proteção indígena, sendo transformada numa autoridade de latifundiários e evangelização. A Fundação Palmares está subordinada a Sérgio Nascimento de Camargo, que é chamado de "capitão do mato" pelo próprio irmão.

No caso do Ibama, esse esvaziamento tem consequências concretas e perigosas para os fiscais ambientais em ação. Eles são, frequentemente, atacados por madeireiros, garimpeiros e grileiros, que invadem, destroem e se apropriam de terras da União ou de terras indígenas. Os infratores sabem que contam com o apoio do governo. É um dos exemplos mais claros de como esse governo é falso: ele entrou para combater o crime. Em vez disso, trabalha ao lado dos criminosos.

Isso ficou particularmente evidente quando os fiscais do Ibama prenderam garimpeiros ilegais na Terra Indígena Apyterewa, no Pará, e queimaram suas escavadeiras e bombas d’água ‒ conforme exigido pela lei brasileira. Mas o que aconteceu? O ministro do Meio Ambiente ordenou a demissão do diretor de Proteção Ambiental do Ibama e de dois agentes ambientais que coordenaram as ações. Ficou claro que, à sombra da crise de coronavírus, o "velho" Ibama deveria ser punido por seus esforços.

Dizem que garimpeiros e madeireiros são apenas pobres coitados que tentam sobreviver de alguma forma. Isso é uma meia-verdade: eles são pobres coitados, mas sua miséria é explorada pelos financiadores dos garimpos, das serrarias e da grilagem. Mantem esses homens em condições de semiescravidão – foi assim que vivenciei essa situação no Pará. Portanto, o Ibama não queima as escavadeiras, bombas d’água e motosserras de pobres trabalhadores, mas as dos ricos e distantes investidores. O atual governo protege os interesses dessa máfia ambiental impedindo o Ibama trabalhar.

Mais um exemplo: desde outubro último, está em vigor um decreto que estabelece que multas por ações ilegais como o desmatamento devem ser revistas em audiências conciliatórias. As multas podem ter desconto ou mesmo ser anuladas, e o infrator não é obrigado a respeitar prazos. Dessa forma, o trabalho dos agentes do Ibama acaba sendo totalmente esvaziado e até ridicularizado.

E como deve se sentir um fiscal do Ibama que arrisca a própria vida para proteger o meio ambiente, se depois o ministro Salles cumprimenta desmatadores ilegais em Rondônia e pede desculpas pelas ações dos agentes? 

Mais recentemente, Salles assinou uma anistia para grileiros na Mata Atlântica, da qual 75% já foram destruídos. É claro que ele também apoia o Projeto de Lei 2.633 (a antiga Medida Provisória 910 ou "MP da Grilagem"). O próprio Ministério Público Federal diz que esse projeto "não beneficiará os pequenos produtores, mas sim representará mais uma abertura de porta à legitimação da grilagem e da violação de leis ambientais". Graças às pressões de ambientalistas, defensores dos povos indígenas e até redes de supermercados britânicas, que ameaçaram boicotar o Brasil, a lei foi retirada da pauta da Câmara.

Com sua política desgovernada de combate à covid-19, o governo Bolsonaro está cometendo um atentado contra a saúde dos brasileiros. À sombra da crise, ele está destruindo a fantástica natureza do Brasil. Falei recentemente com um funcionário do Ibama que prefere permanecer anônimo. Ele afirma representar um grupo de funcionários da agência ambiental que se encontram "nas trincheiras".

Ele me disse que a execução das leis ambientais não era mais a linha do governo. Ele descreveu a atual situação da seguinte forma: "Eu diria que a intenção principal é estender a presença do governo na floresta. Para isso, ele precisa diminuir o Estado, os servidores que seguem a lei, para colocar pessoas que obedecem ordens independentemente da lei. Com homens de confiança, dispostos a agradar o governo, eles podem ignorar a legislação e saquear a floresta conforme a necessidade. É a criação de uma milícia ambiental, com militares trabalhando à margem da lei."

Parece totalmente coerente nesse cenário que o presidente Bolsonaro tenha acabado de emitir um decreto que transfere temporariamente as decisões sobre operações ambientais para os militares. O Ibama fica, assim, sem competências. A pandemia de covid-19 parece paralisar tudo, exceto a destruição da Amazônia.
Philipp Lichterbeck

Eles e nós

No domingo vi uma foto do presidente da República de Portugal, o professor e jornalista Marcelo Rebelo de Sousa, de bermudão, esperando na fila de um supermercado em Lisboa, de máscara, guardando a distância regulamentar e respeitando a fila. Nenhum segurança à vista. Um conservador muito educado e cordial, Marcelo tem 86% de apoio e confiança da população. Deu muita inveja.

Com 29.912 infectados e 1.277 mortos, Portugal está entre os países de menores índices de mortalidade por um milhão de habitantes no mundo. Um terço da Suécia, que tem a mesma população. É apavorante comparar ao Brasil, ainda em acelerada curva ascendente, porque temos 20 vezes mais habitantes do que Portugal, testamos 20 vezes menos e estamos fazendo o contrário do que eles fizeram. Lá eles já estão saindo do isolamento, enquanto aqui o pior está só começando e o antagonismo político, chamado de guerra por Bolsonaro, comanda o espetáculo macabro.


Em Portugal, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministro António Costa, socialista, fizeram a coisa certa na hora certa, guiados pela Ciência: direitistas, socialistas, comunistas e anarquistas se uniram para manter a população em casa e combater o inimigo de todos. Por isso Portugal é um dos primeiros países a sair do isolamento e retomar com segurança as atividades dentro do “novo normal”. Não foi graças à cloroquina ou qualquer droga milagrosa, mas ao isolamento social e à eficiência do sistema público de saúde. E à disciplina da população.

Tudo isso faz lembrar as velhas “piadas de português”, que naturalmente eram replicadas pelas “piadas de brasileiro” em Portugal, em que o mote é sempre a burrice e a estupidez, mas hoje se vê que a piada da vez somos nós. Chegamos ao ponto de desejar o que Chico Buarque e Ruy Guerra lançaram como uma maldição, no tempo da ditadura e do salazarismo:
“Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal/ Ainda vai tornar-se um imenso Portugal.”

Quem dera, Chico, quem dera.