sexta-feira, 22 de maio de 2020

O país de Schrödinger

Um alienígena que nos observe — ou a gente mesmo, se der um passinho atrás para ter distanciamento crítico — ficará mais indeciso que o Weintraub diante de um SS e um Ç. Isso que está nos acontecendo é um despertar ou um estertor? É ainda construção ou já é ruína, como cantou o Caetano? Estamos indo em frente, andando em círculos ou sendo sugados por um buraco negro? Talvez tudo, ao mesmo tempo.

Temos um presidente eleito com o discurso de acabar com a velha política e que se atira nos braços do centrão (o tal buraco negro do parágrafo aí em cima). Que diz querer salvar a economia a todo custo (e bota “todo custo” nisso!) e fez corpo mole na implementação das reformas que efetivamente poderiam nos tirar do atoleiro. Que pretende reverter o aparelhamento da cultura reaparelhando-a no sentido contrário — mas escolheu para a função uma atriz, não uma equilibrista, e ela despencou em menos de três meses. Ainda assim, sobreviveu mais que o dobro do tempo do finado ministro da Saúde, o segundo abatido (e bota abatido nisso!) no meio de uma pandemia.

Nossa tendência ao paradoxo é tanta que, em vez de o vírus contaminar o Brasil, foi o Brasil que contaminou o vírus, e vivemos uma pandemia de Schrödinger. Daquelas que paralisam o mundo, provocam centenas de milhares de mortes, conduzem a uma recessão monumental, e não passam de uma gripezinha.


Dependendo do lado pelo qual se olhe, os hospitais estão simultaneamente lotados e às moscas. O tratamento é caro, demandando uso de respiradores, tomógrafos, unidades de terapia intensiva, criação emergencial de novos leitos, mas se resolve com um comprimido que custa R$ 0,20.

É preciso ficar em quarentena, manter distanciamento social, usar máscara, lavar compulsivamente as mãos, higienizar cada ovo da caixa, cada banana do cacho — mas pode-se encher a casa de amigos para assistir às dezenas de laives feitas diariamente para diminuir a sensação de isolamento.

O PIB da China despencou 6,8%, o Papa rezou para uma praça sem vivalma, os Jogos Olímpicos de Tóquio foram adiados, a Índia botou 1,2 bilhão de pessoas em casa — tudo orquestrado pela nossa esquerda, só para prejudicar o presidente do Brasil.

O número de casos da Covid-19 está subnotificado (pode ser dez vezes maior, porque a população não foi testada em massa) e supernotificado (parafraseando o pistoleiro Frederico Evandro, de “Lisbela e o prisioneiro”, o corona só atira: quem mata é Deus, e as mortes mandadas por Deus não contam).

A pandemia adquiriu aqui esse caráter dúbio por sermos um país avacalhado pelos seus e ambivalente por natureza. Queremos uma imprensa livre, desde que não fale mal do governo — imprensa crítica põe em risco a democracia. Dos três poderes, só um pode — os outros apenas atrapalham. Somos a Federação na qual os estados gozam de uma autonomia que dura até as decisões locais irem contra as do governo central — aí a República Federativa torce o rabo.

Quem pode ficar em casa e ajudar a reduzir a propagação do vírus é visto como um narcisista (e de esquerda, ainda por cima). Quem não tem escolha, e precisa correr risco de vida para poder sobreviver, é chamado de irresponsável.

Chegamos ao ponto de manifestantes saírem às ruas com bandeiras onde se lê “Ordem e Progresso” — para pedir desordem e retrocesso.

Esse país de Schrödinger tem um governo que foge da pecha de fascista, mas evoca o lema dos campos de concentração ao propagandear que “O trabalho, a união e a verdade vos libertará” (sic). E na oposição ao insensível “E daí?” para o número de mortos encontra o “Ainda bem” de quem não pode ver um cadáver que já monta o palanque.

O país real talvez esteja na interseção dessas duas narrativas paralelas: um lugar imaginário onde o remédio cure ou não cure, sem ligar para ideologia de quem o receita ou de quem o tome. Ainda assim, um país barroco, cheio de antíteses, em permanente conflito consigo mesmo. E que está, no momento, em estado de superposição quântica. Como ser e não ser, ao mesmo tempo? Eis a "cuestão".

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