domingo, 28 de junho de 2015

Reflexões sobre o volume morto

Lula teve alguns momentos de sinceridade na última semana. Disse que tanto ele como Dilma estavam no volume morto e que o PT só pensa em cargos. Ele se referiu ao volume morto num contexto de análise de pesquisas, que indicavam a rejeição ao governo e ao PT. Nesse sentido, volume morto significa estar na última reserva eleitoral. No entanto, o termo deve ser visto de forma mais ampla.

Estar por baixo nas pesquisas nem sempre significa um desastre. Em alguns momentos da História, o próprio PT, e disso me lembro bem, não alcançava 10% dos eleitores, mas tinha esperança, e os índices não abalavam sua autoestima. O volume morto em que se meteu agora é diferente. Ele indica escassez da água de beber e incapacidade energética, depois de 12 anos de governo. Foi um tempo em que, sob muitos aspectos, andamos para trás.


Há perdas na economia, na credibilidade do sistema político, todo um projeto fracassado acabou jogando o país também num volume morto. Há chuvas esparsas como a Operação Lava-Jato, mas elas caem muito longe dos reservatórios do PT. Tão longe que ajudam a ressecar ainda mais o terreno lodoso que ainda abastece as torneiras petistas.

Lula pode estar apenas querendo se distanciar de Dilma e do PT. Ele a inventou como estadista e agora bate em retirada. E quanto ao PT, quem vai rebater suas críticas e arriscar o emprego e a carreira? Pois é esse o combustível de seus quadros.

Há cerca de uma década escrevi um artigo intitulado “Flores para os mortos”, no qual afirmava que uma experiência com pretensão de marcar a História terminava, melancolicamente, numa delegacia de polícia. Foi muito divulgado, e na internet usaram até fundo musical para compartilhá-lo. O título é inspirado numa cena do filme de Luis Buñuel, a florista gritando na noite: “Flores, flores para os mortos”.
Devo ter recebido muitas críticas dos petistas. Passados dez anos e algumas portas de delegacia, hoje é o próprio líder que admite a incapacidade política de Dilma e a voracidade dos seus seguidores.
Olho para esse tempo com melancolia. Ao chegar ao Brasil, os tempos do exílio não pesavam tanto. O futuro era tão interessante, o processo de redemocratização tão promissor que compensavam o passado recente. Agora, não. O futuro é mais sombrio porque a tentativa de mudança foi uma fraude, a própria palavra mudança tornou-se suspeita: poucos creem que o sistema político possa realizar os anseios sociais.

Lula fala em esperança para sair do volume morto. Mas que esperança pode arrancá-los do volume morto quando o próprio líder, apesar de sua sinceridade ocasional, não consegue vislumbrar uma saída? Lula repete aquela frase atribuída ao técnico Yustrich: “Eu ganho, nós empatamos, vocês perdem”.

Lendo no avião uma entrevista do escritor argelino Kamel Daoud, muito criticado pelos muçulmanos mais radicais do seu país. O título da entrevista é: “Nem me exilar, nem me curvar”.

Uma de suas respostas me tocou fundo. O repórter perguntou: “Como você, depois de viver anos ligado aos Irmãos Muculmanos, conseguiu escapar desse mundo?”. “Leitura, muita leitura”, respondeu Kamel Daoud.

O resto da viagem fiquei pensando como teria sido bom para a esquerda brasileira leitura, muita leitura, para poder escapar da sua própria miopia ideológica.

Na verdade, ela mastigou conceitos antigos, cultivou políticas retrógradas, como essa de apoiar o chavismo, e se perdeu nos escaninhos dos cargos e empregos. Ela me lembra os jovens do filme “O muro”. Um dos seus ídolos acaba como porteiro de hotel, e é melancólica a cena em que os admiradores o descobrem, paramentado, carregando malas.

Leitura, muita leitura, não importa em que plataforma, talvez impedisse a esquerda de ver seu predestinado líder proletário trabalhando como lobista de empreiteiras. Talvez nem se chamaria mais de esquerda.

Um dos mais ricos petistas critica os outros por só pensarem na matéria. A realidade surpreendeu todas as previsões da volta ao exílio, tornou-se uma espécie de pesadelo.

Tomara que chova nos reservatórios adequados e as forças que caíram no volume morto continuem por lá, fixadas na única esperança que lhes resta: sobreviver.

O país precisa sair do volume morto, reencontrar um nível de crescimento, credibilidade no seu sistema político. Hoje o país é governado por um fantasma de bicicleta e um partido de míseros oportunistas, segundo seu próprio líder, chamado de Brahma pelas empreiteiras.

Até as cores tentam roubar

Bandeira do Brail nas cores LGBT (Foto: Arquivo Google)

Na sexta-feira, o mundo comemorou a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos em favor do casamento gay. Um avanço extraordinário. Os perfis coloridos tomaram conta do Facebook, em uma belíssima sacada do criador da rede, Mark Zuckerberg. Milhões de fotos e vídeos ocuparam o Instagram e o YouTube.

Por absurdo que pareça, a votação apertada nos EUA – 5 x 4 – foi mais festejada no Brasil do que a do Supremo, que, em 2011, reconheceu as uniões homoafetivas. E por unanimidade. Desde 2013, seguindo instruções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os cartórios não podem recusar a celebração de casamentos civis de casais do mesmo sexo. Simples assim.

O STF foi mais avançado do que o governo poderia supor. Dominou o espaço a que o Executivo se furtou e que o Legislativo se recusa a ocupar. E, ainda que não fosse o objetivo da Corte, acabou por roubar bandeiras que o PT adora explorar, como se delas fosse dono.

Ao contrário do que se viu agora, há quatro anos, os festejos oficiais em favor da união gay foram tímidos ou quase inexistentes. Talvez por dificuldades junto aos bispos, ao eleitorado evangélico e à fortíssima representação que eles têm no Congresso.

Agora, em baixa, Dilma elogia a decisão tomada lá fora, e, assim como Lula, colore o seu perfil.

Tudo oportunismo.

Aproveitam-se da incompetência e da falta de jeito da oposição, que nem mesmo notou o movimento nas redes sociais. Sem se manifestar nem na voz nem nas cores, oposicionistas abrem brechas para fazer valer a pecha de conservadores que o PT tenta impor a quem dele discorde.

Assim como a reforma política – aquela que todos os detentores de mandato mentem querer e pouco mais de uma dúzia querem - a tal agenda progressista que Dilma, Lula e o PT dizem apoiar é coisa para inglês, ou melhor, norte-americano ver.

Prova disso é o silêncio quando o recém-eleito presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), declarou que para votar o aborto teriam de passar por cima de seu cadáver.
Mais: Cunha, um dos ícones dos evangélicos, ressuscitou a impossibilidade de adoção de crianças por casais do mesmo sexo. Driblando o regimento, ele criou uma comissão para estudar o tema vencido na legislatura anterior. Dilma e o PT não deram um pio.

Sem que o governo metesse a colher, nos direitos civis o Brasil sempre foi exemplar.

Em 1951, a Lei Afonso Arinos penalizou qualquer tipo de discriminação por raça. Nos EUA, a segregação racial só deixou de existir a partir de 1964. E mesmo que nossas representações políticas sejam retrógradas, graças ao STF também estamos à frente no casamento homoafetivo e na adoção por casais do mesmo sexo.

Nesta semana, Dilma encontra-se com Barack Obama. Depois de tanto bater pé, poderia até posar como progressista. Mas não, fez muxoxo. Em entrevista ao jornal Washington Post, se fez de vitima ao se dizer discriminada por ser mulher.

Uma bobagem sem tamanho. Quase supera a ode à mandioca ou a piada da mulher sapiens.

O Brasil, felizmente, é mais avançado e maior que a sua governante. Dela, pouco se espera. Não tem nem cor nem rumo. Até que o Parlamento encontre algum juízo, ao STF pertencem os elogios e todas as cores.

Teologia da harmonia


Quando soube da nova encíclica do Papa Francisco, lembrei-me de um judeu: meu professor Ignacy Sachs. Há 45 anos, ele abriu meus olhos para o limite “ao” crescimento, devido às restrições físicas, e para o limite “do” crescimento, pela impossibilidade de o consumo supérfluo fazer uma humanidade mais feliz.

Mas, por décadas, aqueles que indicavam os limites “ao” e “do” crescimento propondo um novo modelo de desenvolvimento para nações foram rejeitados pela “teologia do crescimento”. A ideia do progresso como sinônimo de produção e consumo crescentes domina o pensamento social como uma doutrina religiosa. A escassez de recursos e as mudanças climáticas passaram a mostrar os limites físicos da natureza; a desigualdade social crescendo ao ponto de quase romper o sentimento de semelhança entre os seres humanos, o vazio existencial e as crises econômicas mostraram os limites éticos do crescimento.

Quando a palavra “decrescimento” passou a ser utilizada como uma alternativa, escrevi nesta coluna sobre o assunto; um leitor publicou crônica em outro jornal dizendo que eu havia sido submetido a uma lobotomia. Na verdade, a insanidade na voracidade do processo da produção e consumo há quase 50 anos apresenta indicadores de esgotamento. Apesar da crise ecológica, a “teologia do crescimento” continuou dominando o pensamento social e a prática política; e as críticas ao crescimento como vetor do progresso humano continuam sendo denunciadas como gestos de insanos.

O mundo atual não tem estadistas porque os políticos estão divididos entre aqueles prisioneiros da lógica do impossível crescimento econômico ilimitado e para todos, e aqueles considerados “lobotomizados”, porque apresentam alternativas de outro futuro, negando as bases filosóficas e econômicas da civilização industrial. A nova encíclica do Papa Francisco traz um raio de luz para o debate sobre o futuro desejado e possível para a humanidade. Sua fala vai provocar uma luz na escuridão do debate político no mundo de hoje. Ainda mais: ele oferece uma “teologia da harmonia” para substituir a “teologia do crescimento”.

Com sua encíclica, o Papa Francisco se sintoniza com a crise civilizatória e humanitária — desequilíbrio ecológico, divisão social, migração em massa, desemprego, violência, intolerância — e propõe a necessidade de construirmos uma nova civilização, na qual o crescimento seja um instrumento, mas não o propósito em si; e o decrescimento na produção em alguns lugares e para certas camadas da sociedade passe a fazer parte das estratégias de evolução humana. Com sua autoridade moral, ele contribui para que o debate não mais seja entre o socialismo, que não deu respostas, e o capitalismo, que deu respostas erradas, mas entre a civilização regida pela “teologia do crescimento” e a civilização orientada pela “teologia da harmonia” entre os seres humanos e destes com a natureza que os sustém.

Cristovam Buarque

Gestão e congestão

O que os governos prometem é executado? Esta tem sido a maior crítica feita ao governo Dilma: o fato de que mentiu na campanha, usando, hoje, um programa que seria mais condizente com propostas dos tucanos. Tem sentido? Sim. Na verdade, o marketing de sua campanha eleitoral exibia um país sem crises e com amplas possibilidades de crescimento. Mas o discurso de campanhas é um misto de simulação e dissimulação: promessas mirabolantes, abordagens simpáticas, cenários de progresso, vida feliz para todos.


A política, como tenho destacado, é puxada pela locomotiva da economia. Dilma foi levada a crer que governaria um país sem crises, confiando nos bons rumos da economia. Depois de eleita, as coisas começaram a dar erradas. A marolinha prevista por Lula se transformou em tsunami. Com Lula, o naufrágio não ocorreu, mas ele também não cumpriu todas as promessas.

Vejamos. Luiz Inácio foi eleito sob o signo da mudança, a palavra-chave que abriu seu discurso em 1º de janeiro de 2003. Dilma foi eleita sob a promessa de continuidade da era Lula, com ênfase nos programas de distribuição de renda.

Lula pedia aos seus ministros mais ação e menos discurso, menos divergência, mais criatividade e menos queixa de falta de verba. Batia de frente no modelo de gestão capenga que domina a administração pública federal e que ele próprio ajudou a entortar com a ampliação exagerada de ministérios e secretarias. Dilma estendeu a rede.

O que se vê hoje? Um desequilíbrio entre a hiperatividade parlamentar (o Congresso está proativo) e a lerdeza da burocracia governamental. A economia, atravancada, paralisa os canais burocráticos.

Obras paralisadas, repasses de recursos atravancados, atrasos no cumprimento de decisões, pouca motivação e disposição de burocratas, falta de sinergia, confusão de competências, receio de ministros de tomar decisões e ausência de controles convergem para estabelecer as bases do império da inércia – são alguns dos sinais expressos pela atual administração.

Veja-se a questão de ocupação dos espaços a serem ocupados por perfis indicados por partidos da base aliada. Continuam na retranca, à espera de decisão. Sob a crescente insatisfação da base governista.

A reforma na administração, de caráter endógeno, seria a grande lição de casa a ser feita nesse momento em que o governo se esforça para aprovar seu pacote fiscal. Se a máquina fosse mais enxuta, lubrificada e ágil, o Governo ganharia aplausos e aumentaria sua credibilidade junto à socieda­de, garantindo o impacto que reformas mais complexas, como as da pre­vidência e tributária, só alcançarão no longo prazo. Esta decisão da Câmara de conceder correção para as aposentadorias, ao contrário da linha de austeridade, apenas acelera a corrida do país no caminho no despenhadeiro.

A crise de governabilidade, tão proclamada quando dela se faz uso para justificar a necessidade de se promover o ajuste fiscal e tributá­rio, tem um forte componente na esfera da execução das políticas públicas, na incapacidade de fazer valer as leis e no descumprimento das decisões mais altas.

A herança patrimonialista do Estado brasileiro e o sentido cartorial que ainda inspira padrões burocráticos encontram reforço nos quadros partidários, que confundem espaços públicos com territórios privados, loteados entre políticos.

Há mais de 20 mil cargos comissionados na administração federal, a maior parte ocupada por pessoas sem preparo e expressão. A maior parte delas integra as hostes petistas a que Lula se referiu quando diz que elas “só se interessam por cargos”. Ou seja, estamos perpetuando o conceito de capitanias hereditárias.

Sob esse quadro desalentador, não há como estabelecer controles adequados para fiscalizar a aplicação de recursos e menos ainda garantir a continuida­de de programas administrativos. E assim o país navega ao léu, somando os custos da descontinuidade, do desperdício, do tráfico de influência e da improbidade administrativa. Daí a importância do amplo processo de investigação a que é submetido na atual quadra.

A máquina governamental é um exemplo da distorção. Trata-se de uma cabeça agigantada com um corpo debilitado. Trata-se de um arremedo de Proteu, o deus marinho, que tinha forma extravagante, daí sendo associado ao homem-elefante, com sua cabeçorra.

O modelo de gestão é inadequado a um ciclo que recomenda racionalização, enxugamento, síntese e convergência.Tempestividade, resultados, mérito são conceitos inexistentes no vocabu­lário da administração.

A avaliação de um governo é feita por meio de quatro campos de viabilidade: o político, o econômico, o social e o organizativo. O equilíbrio entre eles é responsável pela fortaleza ou fragilidade das ações programáticas.

O governo Dilma acumulou, no primeiro momento, força descomunal, mas não soube transformá-la em ferramenta de eficácia da gestão. A administração deixa escapar a condição de usar o poder como “capacidade de fazer com que as coisas aconteçam”, como ensina Bertrand Russel. Os furos se expandem nos quatro cinturões do governo.

A área política é um território semeado de tensões e pressões, que levam à instabilidade. A área econômica tenta, com a ajuda do coordenador político, Michel Temer, aprovar o pacote fiscal. O campo social sofre com o desemprego e a inflação crescente. A administração mais parece uma colcha de retalhos.

Muito além do jardim, pedalando a bicileta

Na solidão do poder, buscando a ilusão de que está indo para a frente


Em “Muito Além do Jardim”, o ator britânico Peter Selles desempenha seu mais extraordinário papel, vivendo a estória de um personagem que passa toda a vida recluso a uma casa, cuidando de seu jardim; não tem existência social, nem política, sequer legal. Seu contato com o mundo se resume à TV, que assiste. Mais, tarde quando descoberto – em virtude da morte do patrão –, responde por meio de lugares-comuns e clichês que retirou da televisão. É, então, inadequadamente, confundido com um gênio. O filme é triste, embora se trate de uma comédia; o alheamento do protagonista é revelador da solidão e também da ignorância de um mundo que carece de inteligência.

Observando as imagens da presidente Dilma pedalando sua bicicleta ao redor do Palácio, foi inevitável lembrar de Peter Sellers, em “Muito Além do Jardim”. A presidente parece igualmente só, isolada mesmo; sem identidade social e política. Está reclusa, não vai às ruas, mesmo a casamentos chiques não pode ir. Desistiu de aparecer na TV por conta do efeito de panelaços que sua imagem produz. Cercada por seguranças, resta-lhe pedalar sua bicicleta ao redor do Palácio, nos jardins da residência oficial.

Talvez, nem seja tanto assim o seu alheamento, mas a imagem tem força de uma revelação: Dilma sem ânimo para reagir, incapaz de enfrentar a plateia; pedalando a bike ilude-se na impressão de que faz o mundo rodar sob seus pés. Mas, na verdade, está só e imóvel. Como na poesia de Drummond, “a noite esfriou, o dia não veio (…) não veio a utopia e tudo acabou, e tudo fugiu e tudo mofou”. E a identidade política murchou, e as vacas tossiram, e tudo parece se resumir a essa defensiva prisão política que tem na bicicleta contida aos jardins o símbolo de movimentos apenas ilusoriamente amplos, mas limitados na verdade.

Não se trata de discutir o justo, o certo ou o errado da situação; se, em resumo, os governos do PT fizeram mais bem ou mais mal ao país. Política nunca é justa. E, ademais, anjos decaídos são anjos mas também decaídos; anjos decaídos e ponto! Feita de versões, a história é a versão que mais emplacou e aquela que constará nos livros. A menos que consiga provar o contrário, a versão corrente hoje é muito ruim para o PT, Dilma e Lula, que vivem o pior momento de suas histórias: a presidente está só; o partido, atabalhoado, busca em desespero a coerência perdida. Ambos vivem a vertigem de um ônibus desgovernado — até por isso a preferência pela bicicleta.

E Lula, é claro, tampouco está isento disso. Recentemente, revi o filme “Peões”, de Eduardo Coutinho. É ao mesmo tempo emocionante e triste: Lula faz parte da história do Brasil, irremediavelmente. E já o faria mesmo sem a presidência da República. No documentário, emerge do depoimento de seus ex-companheiros como herói, sábio, deus. Traduz a luta dos humildes e também suas esperanças. O filme é de 2004. Mas, é triste perceber que aquele Lula é, como tudo na vida, datado. Aquele tempo, obviamente, também. Tudo mudou e os sonhos, se é que se realizaram, se realizaram apenas parcialmente – ainda que sonhos parciais não possam ser desprezados. A inclusão, de fato promovida, será sustentada e sustentável?


A cultura política do país não mudou: o mesmo patrimonialismo, a mesma sanha de poder – que faz os anjos decaírem. Sem mudanças estruturais, o ajuste fiscal chegou “impávido que nem Muhammed Ali”, mas de modo algum “tranquilo e infalível como Bruce Lee”.; é um remendo no pano roto que o PT só fez ampliar. Gostemos ou não, ao longo de mais de uma década, a direção do PT se rendeu aos “usos e costumes” da real politique. Muitos de seus quadros parecem ter feito tudo aquilo que um dia imaginaram que os adversários fizessem. Deu no que deu. Se é verdade que os adversários realmente faziam – e é plausível que o fizessem –, o mais condescendente comentário que se pode fazer a respeito do PT é que “malandro é malandro e mané é mané”. Não tem jeito de ficar bem na foto.

É doloroso porque nisso tudo tem muita sente séria que não meteu a mão nos estrume, que foi de boa-fé, que deu seus melhores anos. Uns ideologizados, outros nem tanto. Ambos militantes. Mas, a militância não basta. E hoje aquela parcela que não depende dos cofres públicos se afasta ou – alguns — resiste com argumentos frágeis buscando retornar as bombas caídas no seu quintal, para o quintal da oposição. Não parece ser um bom raciocínio apenas admitir que a oposição, no poder, também é assim. Admitindo que fizeram o mesmo, são réus confessos. Só isso.

Voltando a Lula, o herói de antanho: o antigo metalúrgico e experiente político sabe que está numa enrascada. A massa de humildes sempre foi sua força e sua proteção; o tal e suposto “dispositivo popular” do PT, por muitos anos, foi sua blindagem. “O que fazer quando Lula colocar sua massa na rua?”, perguntavam-se as tais das elites. Mas, depois de 12 de março de 2015, quando o “exército do Stédile” não foi às ruas – ou foram uns gatos pingados, muitos às custas de “quentinhas”–, se percebeu que também Lula começou a ficar só; um tigre banguela? Em tempo de Lava Jato, o pesadelo consiste em sentir a lâmina aproximar-se do pescoço, sem defesa. DE volta à poesia de Drummond: essa “Minas não há mais”; a força mingou. E agora, Luís?

Hoje, o apoio ao governo do PT resume-se a algo ao redor de parcos 10%, os congressos do partido estão esvaziados; prefeitos pedem que seus diretórios municipais os expulsem como forma de se desvencilharem da legenda; os primeiros ratos sentem o cheiro do naufrágio e se retiram. Neste contexto, Lula, o PT e Dilma sentem que precisam recuperar a massa e que necessitam de um discurso de esquerda e de abrigo social para a massa que, somente ela, poderá abriga-los. A força da massa na rua, forçando o recuo dos adversários, o pacto, a conciliação diante da tal “correlação de forças”. Política clássica e manjada: saída pela esquerda.

Mas, como fazê-lo se, ao corrigir os erros do governo – ajustando também programas e políticas públicas –, retira-se direitos, corta-se recursos, escasseia o colchão de proteção social em que dormiram e sonharam pobres e militantes? Como sinais são um desastre em ano pré-eleitoral: cortar pensões e o seguro desemprego, reduzir verba para educação e saúde?!?!

Como compensação restaria o surrado discurso ideológico que, defensivo, precisa pelo menos fingir que foi ao ataque. Demonstrar que também houve aperto aos “de cima”: impostos sobre lucros e fortunas. Algo contra-produtivo, quando se quer recuperar credibilidade e investimentos, mas uma necessidade de quem precisa de, pelo menos, uma tangente retórica.

O ajuste fiscal parece ser, então, tão inevitável quanto fatal. Inevitável para o governo, fatal para o PT. Se não se faz, a economia afunda – e com ela toda a sociedade; se o faz, a sociedade que referendou a experiência petista afunda primeiro. Claro, o ajuste pode trazer, lá na frente, a recuperação geral, a retomada do crescimento econômico e social. Mas, seu tempo político, lento e gradual, é uma tragédia para Lula e para o PT suas centenas de prefeitos e milhares de vereadores. No longo prazo, é possível que estejamos vivos, mas nessa fórmula o PT morrerá antes. A equação contrária consistiria na hipótese de que todos morramos para que o PT sobreviva e agonize por mais tempo.

Difícil dizer. Uma canção de Lenine, cantor o homônimo do mito de tantos petistas, afirma com precisão: “ninguém faz ideia do que vem lá”. Ninguém faz. Só os charlatães arriscam palpite. Mas, há muitas variáveis sem controle e toda essa turbulência não encontra coordenação central para contê-la. O fato é que Lula, PT e Dilma estão numa cilada lógica: um ajuste tão inevitável quanto fatal.

Este parece ser o mundo além do jardim de Dilma, que no entorno de seu palácio pedala as angústias remoendo erros ou regurgitando os sapos que tem engolido. Busca encontrar, na bike, o equilíbrio que parece ter-lhe faltado no exercício da presidência, na eleição e no pós eleitoral; procura o movimento sincronizado e constante que perdeu nas incontáveis trapalhadas que patrocinou nesse início de segundo mandato. Será isso mesmo, ou estará tão alheia quanto o personagem de Peter Sellers? Só a história dirá o que vem lá!

Millor, o filósofo

Lula herda a si mesmo


Em sua palestra a religiosos, semana passada, Lula queixou-se do ambiente de ódio ao PT, que teria se instalado no país. Mencionou episódios de petistas vaiados e hostilizados em restaurantes e locais públicos – e até em hospitais.

Esqueceu-se apenas de um detalhe: de que tal ambiente é construção dele próprio e de seu partido, que, no poder, investiram na máxima maquiavélica de dividir para governar.

A fala de Lula deu-se dias após o 5º Congresso Nacional do PT, em que um dos temas era justamente “Um partido para tempos de guerra”. A guerra instalou-se com a posse de Lula, em cujos discursos a constante era o “eles”, as elites (da qual, diga-se, ele próprio e a cúpula do PT fazem parte), contra “nós”, o povo.

Ao adotar o discurso de vitimização do povo, indispunha os setores que o PT contemplava contra o restante da sociedade. Chegou ao extremo, na eleição passada, de tentar indispor São Paulo, que massacrou eleitoralmente o partido, contra o Nordeste.

Não percebia que, agindo assim, criava uma cilada contra si próprio, gerando focos de rejeição entre os não abrangidos pelo seu projeto de poder. A agressão perpetrada pela professora Marilena Chauí, na presença de Lula – que achou muita graça e aplaudiu –, contra a classe média, considerando-a “fascista, ignorante” e “uma abominação”, é um dos momentos mais patéticos desse processo.

Agressão despropositada e politicamente desastrosa, já que a estabilidade política se ancora exatamente na classe média - e por uma razão simples: não se trata de um todo homogêneo; ao contrário, é caleidoscópica, reunindo as mais diversas tendências político-ideológicas. Ao ofendê-la, a professora, um dos ícones do partido, conseguiu a façanha de uni-la – e atirar no próprio pé.

O PT, assim como a esquerda brasileira em seu conjunto, é bem mais classe média que proletário. Foi no ambiente de classe média dos intelectuais da USP e de outras academias que o partido foi gestado, ganhou corpo e chegou ao poder.

Lula é um mito da porção intelectualizada da classe média, que idealiza o operário, como Jean Jacques Rousseau e outros intelectuais europeus do século XVIII idealizaram o “bom selvagem”, a população nativa dos territórios colonizados. O mito é uma construção, um símbolo, não uma realidade.

Nada o desfaz mais rapidamente que a própria realidade. E esta se apresentou, nesta era petista, por duas vias, simultâneas e inapeláveis: a incompetência gerencial e a corrupção. O PT estruturou-se a partir de um discurso moralista, que tinha como palanques a imprensa e as CPIs.

Ali, transmitiu à sociedade – e especialmente à classe média – a convicção de que só a moralização político-administrativa daria jeito no país. Degolou, ao tempo em que era oposição, diversas lideranças políticas, culpadas ou inocentes (pouco importava), tendo em vista a construção de sua própria credibilidade moral.

Enquanto o fazia, ensaiava mensalões nos âmbitos municipais e estaduais onde já era governo. Santo André e Campinas, cujos prefeitos foram assassinados, em tramas políticas gestadas dentro do partido – e ainda carentes de maiores esclarecimentos -, precedem a chegada do PT ao poder federal. Os métodos se mantiveram, se expandiram e saíram do controle.

Hoje, o partido se vê às voltas com a polícia e o Judiciário. Parte de sua cúpula foi à cadeia. Outra parte deve segui-la. O próprio Lula admitiu, nessa mesma palestra aos religiosos, que “o próximo” (referia-se à prisão de seu amigo Marcelo Odebrecht) seria ele. Há dias, o advogado Maurício Ramos Thomaz impetrou habeas corpus preventivo contra eventual prisão de Lula.

Pode ter sido pegadinha, mas o simples fato de levantar dúvidas mostra a que nível chegou a credibilidade do ex-presidente. O PT é vítima do próprio veneno: investiu no discurso moralista e agora é seu principal alvo. A delação premiada de Ricardo Pessoa – que poupa Lula – evidencia as conexões criminosas do partido, suas relações incestuosas com as empreiteiras.

O governador de Minas, Fernando Pimentel, um dos políticos mais próximos de Dilma, enfrenta também o Código Penal, com escassas chances de sucesso. Sua vitória em Minas não apenas garantiu a de Dilma como serviu para a tentativa de desmoralização política de Aécio Neves, derrotado em sua própria terra.

O que se vê, no entanto, é que não se tratou propriamente de uma vitória eleitoral, mas de uma bem sucedida operação criminosa. Pimentel corre hoje o mesmo risco de sua amiga Dilma, de não concluir o mandato. O partido, que usou à exaustão a desculpa de “herança maldita”, é hoje herdeiro de si próprio.

Não tendo a quem acusar, Lula acusa sua sucessora, na tentativa de se descolar de um legado que o inviabiliza politicamente. Dilma, a “mulher sapiens”, é obra de Lula, não do PT, que teve que engoli-la. O país que entrega aos brasileiros é bem pior – econômica, política e moralmente – que o recebido das mãos de Fernando Henrique, ainda que este estivesse longe do ideal. 

Obituário e testamento petista

Pelo que se pode notar nas declarações públicas de petistas notórios, a estratégia para os próximos anos já está traçada. Começou o abandono do partido e a construção de uma versão alternativa dos fatos. Tudo para que o sonho socialista siga vivo em outro partido, redimido por uma narrativa dos fatos que, embora fantasiosa, seja suficiente para animar o militante. O testamento entrega a outros partidos a busca do socialismo; o obituário deixa uma mentira no lugar da história.

O obituário petista proporá que houve duas causas para a morte. Uma, a insatisfação por não ter entregue tudo o que prometeu. Outra, a oposição das elites dominantes ameaçadas em seu poder. Ambas são falsas, mas serão eternamente repetidas pela baixa intelectualidade esquerdista.

A rejeição do PT não ocorre por suas “promessas irrealizadas” – ela é resultado direto daquilo que ele realizou. Os governos petistas, no plano econômico, apostaram no fomento ao consumo sem produção, na concessão de crédito sem poupança, na distribuição sem criação de riqueza, na satanização do empregador e na aliança do BNDES com os empresários amigos. A conta haveria de bater, e a crise que já vivemos é a fatura desta conta. Como Thatcher disse, o socialismo acaba quando termina o dinheiro dos outros. Como todo economista sério alertava que iria acontecer, o modelo petista ruiu. 


No plano político, o PT apostou na corrupção como principal forma de dar “liga” na base de apoio. Ao passo em que concentrava poder no executivo federal, acreditava que enquanto a base estivesse com os bolsos cheios, não incomodaria. A ruína das instituições brasileiras aconteceu aberta e deliberadamente, com sustentação na pretensão de reconstruir um Brasil mais parecido com os amigos bolivarianos. O mensalão e o petrolão não são acidentes na história petista – são a principal política petista de formação de uma base de apoio no Congresso. Vários partidos estenderam a mão para receber as propinas milionárias, mas a mão pagadora sempre levava uma estrela.

A terceira estrofe do falso obituário é a tese da direita dominante e seu ódio ao PT. Bastaria, para desmenti-la, olhar para as manifestações de rua e a imensa pluralidade de pessoas que saíram de casa reclamando do PT. Bastaria, talvez, abrir as contas do BNDES – até hoje fechadas – para entender como a verdadeira elite dominante esteve abraçada a Lula e Dilma para ter a chave do cofre à sua disposição. E seguramente bastaria caminhar pelas ruas e ouvir as pessoas, para entender que o antipetismo tem matiz moral, e não econômica; pede decência, e não privilégios.


Com a história recontada, como a esquerda gosta de fazer a cada desastre do socialismo, o PT deixará a outro partido a missão de levar o Brasil à desgraça. Esse é o seu testamento. Sua missão foi cumprida – é hora já dos parasitas abandonarem o corpo para buscar outro hospedeiro.

Novas formas de aprender e de ensinar

Enquanto você lê esse texto, milhares de jovens brasileiros estão conectados, trocando mensagens, baixando e vendo vídeos, ouvindo música. E criticando a escola. Reclamam da falta de sentido e da desconexão entre o que aprendem em sala e aquilo que vivenciam fora dela. Alguns chegam a um ponto de tamanho desinteresse que desistem e abandonam os estudos. 


Esse cenário revela um grande desafio para a educação contemporânea: oferecer uma escola aberta às questões da atualidade, às novas tecnologias e à comunidade, que seja um espaço do encontro e do diálogo, que priorize a construção coletiva do conhecimento e que seja, portanto, um centro irradiador de novos saberes.

Tal desafio nos remete a uma necessidade urgente e dupla: reorganização da escola e mais foco na formação do professor. Entre os muitos caminhos para isso estão a adoção de estruturas mais horizontais nos ambientes educativos, com a construção colaborativa do conhecimento, diálogo permanente, interdisciplinaridade e ocupação do espaço público. Dessa maneira, a escola se conecta mais à comunidade onde está inserida e, assim, pode conceber, coletivamente, soluções novas e criativas para suas questões.

Sob esse novo olhar, o professor, por sua vez, atua como um importante co-criador de conhecimento, a partir de uma visão holística e transversal. Ele deve ser alguém que domina as novas tecnologias e que está apto a tocar em assuntos como mobilidade urbana, economia, saúde, meio ambiente e política e a ajudar os estudantes a formarem um olhar crítico sobre o mundo. Ele deve propor tarefas desafiadoras, usar exemplos e casos reais, estimular o discernimento e o questionamento e proporcionar ao jovem a experiência, a vivência e o protagonismo que ele tanto anseia.

Essas práticas de um novo ensino-aprendizagem são resultado não só de uma boa formação inicial do docente, mas também de uma boa formação continuada. No Brasil, ambas ainda precisam integrar mais os conhecimentos teóricos à prática da sala de aula e à vivência do mundo atual. É exatamente aí que entra a responsabilidade fundamental das secretarias de educação de proverem ao professor as condições para que ele assuma esse novo papel, dando-lhes apoios pedagógico e administrativo.
As políticas públicas têm de apoiar e assegurar ao docente as condições objetivas para o desenvolvimento de sua atividade. E isso vale desde o início, na graduação, que, na maioria das vezes, não prepara o educador para atuar na realidade da sala de aula, gerando, muitas vezes, uma sensação de insegurança, solidão e desamparo.

Sabemos ainda que, durante os anos de atuação, o professor enfrenta outros obstáculos: plano de carreira pouco estimulante, remuneração insuficiente e perda de prestígio social da profissão. Tudo isso precisa ser enfrentado de frente e com persistência. Nosso Plano Nacional de Educação já contempla em suas metas e estratégias a necessidade de darmos um salto na formação inicial (meta 15), na formação continuada (meta 16), no salário (meta 17) e na carreira (meta 18). Sem a concretização desses propósitos, continuaremos a navegar nesse imenso mar de desconexões entre o jovem, a escola e o mundo.

Neca Setubal