terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Produtores de tragédia

Não havendo no Brasil acidentes naturais por decisão divina, o Estado e a elite brasileiros produzem desastres
José Nêumanne

A hora do safanão

No início, fresco ainda dos seus 28 anos de lobby para obter vantagens para militares e policiais no Congresso, Jair Bolsonaro não sabia se jogava no ataque ou na defesa na questão da previdência. O assunto foi cuidadosamente evitado na campanha. Ficou soterrado nas emoções do debate comportamental, na cumplicidade entre a direita, a esquerda e o centro contra a reforma e na inapetência da imprensa pelo tema.

Brumadinho, “rachid”, privilégios. Qualquer tapete levantado revela um monte de sujeira; qualquer arranhão olhado com lente confirma extensa infecção. Quem quiser focar nas diferenças entre a “esquerda” e a “direita” brasileira desta boca de 3º Milênio, que as há, tem todo o direito. Mas o país só apontará para o fim do tunel quando focar no que ha nelas de idêntico e partir para a reforma democrática (a política) que porá o povo no poder.

Por enquanto vamos de previdência sem o rearranjo da qual não sobrará nada para ser reconstruido adiante.


O “governo de transição” é uma avalanche de números que faz qualquer sonhador despencar até do céu que protege Brasilia para uma aterrissagem de emergência na calamidade geral que governadores e prefeitos estão encontrando. A verdade foi aos poucos contaminando o governo e, por meio dele, extravasando para a imprensa e dela para o país. A fase de alienação teve um ponto final quando Paulo Guedes encerrou “o baile” que a parcela Brasilia do governo Bolsonaro ameaçou dar-lhe em público. Ali o presidente teve a primeira oportunidade de provar o quanto se comove com fatos, coisa a que o país das “narrativas” ha muito tempo se desacostumara. E confirmou: a melhor qualidade de Jair Bolsonaro é sua capacidade de voltar atras e corrigir o rumo. A ficha caiu com tanta clareza que os militares, sempre os primeiros a incluírem-se fora de toda e qualquer tentativa de reforma anterior, espicaçados nos brios diretamente pelo comandante-em-chefe, declararam sua disposição de contribuir com um sacrifício para o esforço de salvação nacional.

É a primeira vez nos 519 anos de Brasil que alguma corporação da privilegiatura se dispõe a dar um passo atras, gesto que pode ter consequências telúricas. Mas o problema para desencadear o terremoto ainda é a conclusão do despertar do presidente. Bolsonaro saiu do Congresso mas o Congresso ainda não saiu de Bolsonaro. Ele continua dirigindo-se tão somente ao país oficial para tudo quanto extrapola as picuinhas da turma do excesso de salivação com escassez de raciocínio das redes sociais. Apesar da firmeza com que corroborou a ordem para o realinhamento do governo à Prioridade Zero da previdência, ele ainda subestima a capacidade de discernimento do povo. Segue dimensionando sua reforma pela expectativa da sua receptividade pelo Congresso e não pela real necessidade do país ou interesse do povo.

O Congresso não tem de ser o primeiro, deve ser o último a ser consultado. Ele pode tudo, até derrubar governos “inderrubáveis”, mas só faz isso quando o impulso vem da rua. Para levar os políticos a atos como esse, que não são de coragem são de sobrevivência, é preciso que a população passe antes pelo mesmo banho de informação que fez o próprio governo mudar de atitude. Dar à privilegiatura uma negociação anônima, de bastidor para, no final, apresentar como sua uma reforma que dê conforto a ela seria uma grossa traição aos 58 milhões de votos recebidos. É o contrário. Os mais altos representantes da privilegiatura têm de ser convocados todos à boca do palco, com o resto da nação, colocados de frente para os números pelos quais cada corporação é responsável – Judiciário, Ministério Publico, Legislativo e o resto – e então serem instados a se manifestar encarando o público como os militares já se manifestaram. Tem de ser um ônus para quem quiser assumi-lo recusar contribuir ou impedir a aprovação de alguma coisa que o país inteiro estará perfeitamente consciente de que se não for feita nos mata.

O congresso, assim como toda instituição encarnada em seres humanos, age sempre em função dos imperativos de sobrevivência dos congressistas. Por isso mesmo é que a democracia, depois de alguns ensaios românticos fracassados, foi redesenhada para por diretamente nas mãos do povo a condição de sobrevivência dos congressistas. Mas como aqui falta entregar o cetro ao povo é ao presidente que, por exclusão, cabe essa função.

Esse roteiro não precisa ser encenado em tom de confronto. Convocar a Nação para apresentar-lhe a verdade dos fatos, medir as consequências de cada alternativa e pedir humildemente que ela indique a direção a seguir é a função por excelência do governante democrático. E cabe firmeza nisso. O general DeGaulle, que mais de uma vez ergueu do chão o orgulho nacional francês em frangalhos, disse numa dessas ocasiões o seguinte: “A democracia exige que a gente convença as pessoas. Quando as circunstâncias permitem, essa é a forma preferencial de agir. Então deve-se trabalhar para fazer evoluir as consciências. Mas ha circunstâncias em que não é possível dar-se esse luxo e então é preciso comandar. É como na educação das crianças. Se a gente tem tempo o melhor é argumentar. Mas se não tem, para o bem delas, a gente vai lá e dá um safanão“.

A reforma da previdência – que vai definir o que será do governo Bolsonaro, do Brasil e dos brasileiros nos próximos 30 anos – está, obviamente, precisando desse “safanão”.

Post scriptum:
Cansado de ouvir a baboseira em torno do desarmamento nos jornais e nas televisões, peço licença ao leitor para enfiar aqui este lembrete:

Bolsonaro e seus opositores não têm tocado no essencial da questão do desarmamento. A discussão NÃO É em torno de saber se armar a população “resolve” ou não (e é claro que não resolve, nem para melhor, nem para pior) o problema da segurança pública. É o princípio que é inegociável pois, se o estado pode proibir o cidadão de defender sua vida sob pena de prisão, como faz hoje no Brasil, nenhum dos seus outros direitos vale nada.

Quando carro ou geladeira valem mais que as vidas sacrificadas em Brumadinho

Aos que acompanhamos a tragédia da represa da mineradora Vale que desmoronou em Minas Gerais, e o número de vítimas mortais que aumenta a cada momento, só resta a indignação, a dor e a solidariedade com as famílias enlutadas. Indignação porque a catástrofe poderia ser evitada, como indicam todos os especialistas, e dor e solidariedade com as famílias em pranto.

Ficou evidente, apenas três anos depois do crime de Mariana, cujas feridas continuam abertas, que mais uma vez o lucro e a corrupção prevaleceram sobre a preocupação quanto a possíveis vítimas. E isso gera indignação e desespero para aqueles que se viram afetados e se sentem imponentes frente a esses gigantes complexos mineradores protegidos pela impunidade.

Em meio ao luto vivido pelo Brasil e ao sentimento de impotência que sacode as pessoas normais, a grande solidariedade das pessoas com as famílias atingidas serviu como único sopro de esperança de que a consciência solidária dos brasileiros não morreu e continua palpitando frente à dor causada pela avareza do capitalismo selvagem.

Em meus muitos anos de jornalismo, estou acostumado a relatar e analisar muitas outras catástrofes mundo afora, mas mesmo assim houve uma declaração de um político mineiro que me causou um mal-estar difícil de expressar. Eu a li no blog do jornalista, escritor e agudo polemista Reinaldo Azevedo. É um tuíte de Evandro Negrão Jr., vice-presidente do Partido Novo no Estado de Minas, cenário da tragédia. Precisei ler várias vezes o texto, que Azevedo qualificou como “latrina”, para me convencer de que não estava alucinando.

Nele, o político, correligionário do atual governador de Minas, Romeu Zema, escreve que de fato os mortos de Brumadinho dão pena, mas que o importante é essa maravilhosa empresa que arranca minérios do coração da terra. Ou será que os brasileiros preferem ficar sem carros e sem geladeiras em vez de perder um punhado de vidas? E conclui que o importante é que a empresa retome sua atividade o quanto antes, para continuar produzindo materiais sem os quais ficaríamos privados de eletrodomésticos.

E as vítimas? Que a Vale pague uma multa. O político foi até generoso com os mortos: pede que seja uma “grande multa”. E a prisão para os possíveis responsáveis? Isso seria um castigo exagerado para uma empresa tão fantástica que, conforme escreve, torna o mundo “muito melhor”.

Não, não é uma fake news. Eis o texto literal:

“Lamentável, muito dolorido e MUITO sofrido o desastre de Brumadinho, mas n/ podemos demonizar a Vale. É uma baita empresa, sem minério n/ tem carro, avião, nem geladeira e o mundo é muito melhor c/ empresas como ela do q sem. Ela errou, deve pagar 1 grande multa e voltar a funcionar asap.”

Enquanto a vida de um só ser humano valer menos que um eletrodoméstico, continuaremos todos apanhados e sem esperança de redenção no túnel sem saída da barbárie. O texto do político do Novo é a melhor elegia do capitalismo em estilo puro, para quem o lucro é seu único bezerro de ouro digno de culto. O resto, o pranto das pessoas que tiverem que ser sacrificadas em seu altar, são um apêndice, um parêntese, uma insignificância. Menos que uma geladeira.

Afinal, o que são algumas dezenas de vítimas a mais ou a menos, em um país com mais de 200 milhões, frente à felicidade de poder ter nossas casas repletas de eletrodomésticos? Não se trata de condenar o sistema capitalista, sempre melhor que o da Coreia do Norte, mas sim de fazermos isso convencidos de que uma só vida humana sempre continuará valendo mais que todo o ferro e o ouro do mundo.

Gente fora do mapa

Bombeiro puxa um corpo em meio aos rejeitos (Antonio Lacerda - EFE

Mariana, Brumadinho e...

No triste fim de semana passado, lembrei-me de um texto de George Santayana, filósofo e poeta espanhol. Uma das frases é instigante: “...quando a experiência não é retida, como acontece entre os selvagens, a infância é perpétua.”

De fato, três anos após a tragédia de Mariana, apesar das inúmeras advertências da academia, dos ambientalistas e do Ministério Público, o que aprendemos?

Foram 19 mortos e nenhuma condenação; empresas envolvidas em desastres ambientais quitaram apenas 3,4% dos R$ 785 milhões aplicados em multas; das 24.092 barragens cadastradas no país, apenas 3% foram vistoriadas em 2017 e, dentre essas, 723 apresentam riscos de acidentes e danos potenciais altos; famílias que tiveram suas vidas destruídas pelo rompimento da barragem do Fundão (2015) ainda aguardam indenizações, pois o acordo entre a promotoria e as mineradoras foi fechado apenas em outubro do ano passado, quase três anos após a tragédia.

Na Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, somente um dos três projetos de lei apresentados pela Comissão Extraordinária de Barragens foi aprovado. Dormem em gavetas os outros dois, que preveem restrições para a construção de barragens e direitos para os atingidos. No Senado, projeto que endurecia a política de segurança de barragens foi arquivado.

Muitas perguntas objetivas continuam sem respostas consistentes: o que foi feito para recuperar o Rio Doce? Quais as medidas adotadas para aprimorar a fiscalização das barragens?

Nesse marasmo irresponsável, lamentavelmente a história se repetiu em Brumadinho. A impunidade em relação ao que ocorreu na barragem do Fundão, em Mariana, é certamente uma das causas da tragédia de Brumadinho. O rompimento da barragem da Vale na Mina do Feijão não foi, obviamente, um acidente ocasional. Em Mariana e Brumadinho, o que ocorreu foram crimes, praticados pelas empresas que negligenciam na construção, manutenção e no monitoramento desses empreendimentos e pela leniência do Estado na concessão de licenciamentos e na fiscalização. Dessa forma, além da indignação e da vergonha que sentimos como brasileiros, precisamos cobrar as punições dos agentes privados e públicos.

O enredo e o filme são conhecidos. As autoridades sobrevoam a área devastada, declararam estado de calamidade e prometem providências e recursos. Os dados orçamentários, porém, também espelham o descaso do poder público.

Conforme dados pesquisados pela Associação Contas Abertas, com base em critérios de um estudo de técnicos do Senado, nos últimos 19 anos (2000 a 2018) dos R$ 444,4 milhões autorizados no Orçamento da União para ações destinadas às barragens, efetivadas pelos ministérios da Integração, Minas e Energia e Meio Ambiente, somente R$ 167,3 milhões (37,6%) foram realmente pagos. Logo após o maior acidente ambiental do país, em Mariana, em 2015, no auge da consternação, o orçamento conjunto das pastas destinado às barragens praticamente dobrou, passando de R$ 62,3 milhões para R$ 121,9 milhões (2016). No entanto, no fim de 2016 o valor efetivamente gasto somou apenas R$ 22,7 milhões, praticamente o mesmo de 2015. Em 2017, o gasto efetivo ficou no mesmo patamar, tendo aumentado para a casa dos R$ 32,8 milhões em 2018. Para 2019, pasmem, o valor autorizado é de apenas R$ 67,9 milhões, praticamente o mesmo de 2015, o ano da tragédia de Mariana!

Para que o leitor tenha uma ideia de quanto são insignificantes esses dispêndios, o valor pago no ano passado (R$ 32,8 milhões) é inferior às despesas da União com festividades e homenagens (R$ 40,4 milhões).

O minguado orçamento para ações relacionadas às barragens é mais uma evidência de que não absorvemos as experiências passadas. Assim, vale a pena reler as frases finais de um parágrafo do texto do espanhol George Santayana, publicado em “A vida da razão” (1905): “...quando a experiência não é retida, como acontece entre os selvagens, a infância é perpétua. Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”. Quando irá acontecer a próxima tragédia?

Os supermercados

Angel Boligan
Os supermercados são os palácios dos pobres. Não são só os azarentos e os mal alojados, os que ao longo das gerações foram reduzindo os gastos da imaginação, que frequentam e, de certo modo, vivem o supermercado, as chamadas grandes superfícies. As grandes superfícies com a sua área iluminada e sempre em festa; a concentração dos prazeres correntes, como a alimentação e a imagem oferecida pelo cinema, satisfazem as pequenas ambições do quotidiano. Não há euforia mas há um sentimento de parentesco face às limitações de cada um. 

A chuva e o calor são poupados aos passeantes; a comida ligeira confina com a dieta dos adolescentes; há uma emoção própria que paira nas naves das grandes superfícies. São as catedrais da conveniência, dão a ilusão de que o sol quando nasce é para todos e que a cultura e a segurança estão ao alcance das pequenas bolsas. Não há polícia, há uma paz de transeunte que a cidade já não oferece.
Agustina Bessa-Luís, "Antes do Degelo"

O crime independe de classe

Engana-se quem pensa que tráfico de drogas é exclusividade dos morros, das favelas e das periferias excluídas. Não é de hoje que jovens de classe média e média alta frequentam o noticiário policial. Crimes, vandalismo, espancamento de prostitutas, incineração de mendigos, consumo e tráfico de drogas despertam indignação e perplexidade. O novo mapa do crime transita nos bares badalados, vive nos condomínios fechados, estuda em colégios e universidades da moda e desfibra o caráter no pântano de um consumismo descontrolado.

Frequentemente, operações policiais prendem jovens de classe média vendendo ecstasy, LSD, cocaína, maconha. Segundo a polícia, eles fazem a ligação entre os traficantes e os vendedores de drogas no ambiente universitário.

O tráfico oferece a perspectiva do ganho fácil e do consumo assegurado. E a sensação de impunidade -rico não vai para a cadeia - completa o silogismo da juventude criminosa. A delinquência bem-nascida mobiliza policiais, psicólogos, pais e inúmeros especialistas. O fenômeno, aparentemente surpreendente, é o reflexo de uma cachoeira de equívocos e de uma montanha de omissões.

O novo perfil da criminalidade é o resultado acabado da crise da família, da educação permissiva, do consumismo compulsivo e de setores do negócio do entretenimento que se empenham em apagar qualquer vestígio de normas ou valores. Os pais da geração transgressora têm grande parte da culpa. Choram os desvios que cresceram no terreno fertilizado pela omissão.

É comum que as pessoas se sintam atônitas quando descobrem que um filho consome drogas. Que dirá, então, quando vende. O que se diz, no entanto, é que muitos lares se transformaram em pensões anônimas e vazias. Há, talvez, encontros casuais, mas não há família. O delito não é apenas o reflexo da falência da autoridade familiar. É, frequentemente, um grito de revolta. Os adolescentes, disse alguém, necessitam de pais morais, e não de pais materiais.

Alguns pais não suportam ser incomodados pelas necessidades dos filhos. Educar dá trabalho. E nem todos estão dispostos a assumir as consequências da paternidade. Tentam, então, suprir o vazio afetivo com carros, mesadas e presentes. Erro fatal.

A demissão do exercício da paternidade sempre acaba apresentando sua fatura. A omissão da família está se traduzindo no assustador aumento da delinquência juvenil e no comprometimento, talvez irreversível, de parcelas significativas da nova geração.

Não é difícil imaginar em que ambiente afetivo terão crescido os integrantes do tráfico de classe alta. Artigos, crônicas e debates tentam explicar o fenômeno. Fala-se de tudo, menos do óbvio: a brutal crise que machuca a família. É preciso ter a coragem de fazer o diagnóstico. Caso contrário, assistiremos a uma espiral de delinquência. É só uma questão de tempo.

Psiquiatras, inúmeros, tentam encontrar explicações para os desvios comportamentais nos meandros das patologias. Podem ter razão. Mas nem sempre.

Independentemente de eventuais problemas psíquicos, a grande doença dos nossos dias tem um nome menos técnico, mas mais cruel: desumanização das relações familiares. A delinquência, último estágio da fratura social, é, frequentemente, o epílogo da falência da família.

Teorias politicamente corretas no campo da educação, cultivadas em escolas que fizeram a opção preferencial pela permissividade, também estão apresentando um perverso resultado. Uma legião de desajustados e de delinquentes, crescida à sombra do dogma da tolerância, está mostrando suas garras. Gastou-se muito tempo no combate à vergonha e à culpa, pretendendo que as pessoas se sentissem bem consigo mesmas. O saldo é toda uma geração desorientada e vazia.

A despersonalização da culpa e a certeza da impunidade têm produzido uma onda de infratores e criminosos. A formação do caráter, compatível com o clima de verdadeira liberdade, começa a ganhar contornos de solução válida. É pena que tenhamos de pagar um preço tão alto para redescobrir o óbvio: é preciso saber dizer não!

Impõe-se um choque de bom senso. O erro, independentemente dos argumentos da psicologia da tolerância, deve ser condenado e punido. Chegou para todos, sobretudo para os que temos uma parcela de responsabilidade na formação da opinião pública, a hora da verdade. É necessário ter a coragem de dar nome aos bois. Caso contrário, a delinquência enlouquecida será uma trágica rotina. Colheremos, indefesos, o amargo fruto que a nossa omissão ajudou a semear.

O consumismo desenfreado, tolerado e estimulado pelas famílias, produz uma geração sem limites. O desejo deve ser satisfeito sem intermediação do esforço e do sacrifício. As balizas éticas vão para o espaço. A posse das coisas justifica tudo. É uma juventude criada de costas para o trabalho. O fim da história não é nada bom.

A irresponsabilidade pragmática de alguns setores do negócio do entretenimento fecha o triângulo da delinquência bem-nascida. A exaltação do sucesso sem limites éticos e a consagração da impunidade, marca registrada de algumas novelas e programas de TV, têm colaborado para o crescimento dos desvios de caráter. Apoiados numa leitura equivocada do conceito de liberdade artística e de expressão, alguns programas de televisão exploram as paixões humanas. Ao subestimar a influência negativa da violência ficcional, levam adolescentes ao delírio em shows e programas que promovem uma sucessão de quadros desumanizadores e humilhantes.

Como já escrevi neste espaço opinativo, recuperação da família, educação da vontade, combate à impunidade e entretenimento de qualidade compõem a melhor receita para uma democracia civilizada.
Carlos Alberto Di Franco

Brasil tem pior desempenho em sete anos em índice de corrupção

A pontuação do Brasil no Índice de Percepção da Corrupção (IPC), divulgado pela Transparência Internacional nesta terça-feira, voltou a recuar e atingiu seu pior patamar desde quando passou a ser possível fazer comparações anuais, em 2012. A ONG classificou o Brasil de "país em observação", alertando para possíveis ameaças a conquistas democráticas no governo do presidente Jair Bolsonaro.

Em 2018, o Brasil despencou nove posições em relação ao ano anterior, ficando em 105º lugar no índice de 180 países. A classificação brasileira apresenta tendência de queda desde 2014, quando o país ocupava a 69ª posição.


Para a Transparência Internacional, os esforços contra a corrupção no Brasil, como a operação Lava Jato, foram notáveis, mas não representam uma resposta às causas estruturais do problema. "Para o país efetivamente avançar e mudar de patamar no controle da corrupção, são necessárias reformas legais e institucionais que verdadeiramente alterem as condições que perpetuam a corrupção sistêmica no Brasil", afirmou a ONG.

A escala do IPC vai de zero (altamente corrupto) a 100 (muito íntegro). No índice divulgado nesta terça, relativo a 2018, o Brasil ficou com pontuação 35, pior resultado em sete anos e bastante aquém de outros países da região, como Uruguai (70 pontos, na 23ª posição) e Chile (67 pontos, na 27ª posição).

"Em meio a promessas de acabar com a corrupção, o novo presidente deixou claro que vai governar com pulso firme, ameaçando muitas das conquistas democráticas alcançadas pelo país", disse a ONG em referência ao governo de Bolsonaro.

"É muito mais provável que a corrupção floresça quando os fundamentos democráticos estão enfraquecidos e, como temos visto em muitos países, onde políticos antidemocráticos e populistas podem usar isso para sua vantagem", afirmou a diretora da Transparência Internacional, Delia Ferreira Rubio.

A Transparência Internacional afirma que índices elevados de corrupção podem contribuir para um maior apoio a candidatos populistas.

Assim como o Brasil, os Estados Unidos também foram mencionados entre os países em observação pela entidade. Ambos foram apontados como exemplos de países onde "líderes populistas fizeram campanha contra a corrupção, mas agora ameaçam minar as instituições que foram eleitos para representar, abrindo caminho para mais corrupção".

Os EUA ficaram com uma pontuação de 71 e na 22ª posição no IPC, tendo deixado pela primeira vez desde 2011 a fazer parte da lista dos 20 países mais bem colocados no índice.

Segundo a ONG, o sistema de checagem do poder público vem sendo ameaçado nos EUA, o que se soma à "erosão de normas éticas nas esferas mais altas de poder".

Contudo, Brasil e EUA não são os únicos motivos de preocupação. Mais de dois terços dos 180 países avaliados pela Transparência Internacional ficaram com pontuação abaixo de 50, sendo que, desde 2012, apenas 20 países tiveram melhora substancial nas suas posições.

"O fracasso contínuo da maioria dos países em controlar a corrupção de forma significativa está contribuindo para uma crise da democracia ao redor do mundo", disse a ONG.

Somália (pontuação 10), Sudão do Sul (13) e Síria (13) foram os países com o pior desempenho, enquanto, na outra ponta, Dinamarca (88 pontos), Nova Zelândia (87) e Finlândia (85), Cingapura (85), Suécia (85) e Suíça (85) foram os que melhor pontuaram no índice em 2018.

O IPC mede como a corrupção no setor público é percebida por empresários e especialistas em cada país – sem levar em conta dados quantitativos, como o montante de dinheiro desviado, e sem medir se, na prática, o problema se agravou ou não na região. O índice de 2018 foi calculado utilizando 13 fontes de dados de instituições que capturam percepções de corrupção.

Para alcançar progresso real contra a corrupção e fortalecer a democracia, a Transparência Internacional recomendou que governos ao redor do mundo fortaleçam instituições de checagem do sistema político; reduzam a distância entre a legislação anticorrupcão, a prática e a fiscalização; além de apoiar organizações da sociedade civil e uma mídia livre e independente.
Deutsche Welle

Imagem do Dia

Meineke Reinders

O valor do silêncio do general calado

A eleição de Jair Bolsonaro propagou o vírus da anarquia militar. Aqui e ali ouve-se falar em “núcleo militar” influindo no governo e “desconforto” fora dele. Desde que o presidente disse ao ex-comandante do Exército que “o que nós já conversamos morrerá aqui”, disseminou-se a curiosidade em torno do que conversaram. O fato da vida é que, para impedir-se a eleição de um candidato do PT, com suas obras e suas pompas, levou-se ao Planalto um capitão de pouca disciplina que, em 1988, baldeou-se para a atividade parlamentar. Ele levou na vice um general de quatro estrelas (da reserva) que anos antes perdera o comando das tropas do Sul por ter feito um discurso político.

O general tal acha isso, o general qual acha aquilo. Falta registrar que todos os militares que ocupam cargos civis estão na reserva e comandam apenas poderosas mesas. Chefe militar acha, mas não fala. Ninguém ouviu uma só palavra do general Enzo Peri, que comandou o Exército de 2007 a 2015. O mesmo se pode dizer de Gleuber Vieira, comandante de 1999 a 2003. Ambos tipificam o general calado. Não falavam antes de assumir o comando, nem falaram depois. O general calado é um enigma em si mesmo. Move-se dentro das normas da corporação. Manda, mas não fala, mesmo em épocas em que falam generais que não mandam ou, pelo menos, não mandam tanto quanto se pensa. Olhando-se para trás, é fácil ver o peso do general calado.

Castelo Branco só falou em março de 1964, dias antes da deposição do presidente João Goulart. Emílio Médici foi o silêncio da orquestra e chegou à Presidência sem dizer uma palavra fora das reuniões de generais. Os irmãos Geisel, Orlando e Ernesto, nunca falaram.

O general Euler Bentes, que em 1978 foi candidato a presidente pelo MDB (o de Ulysses e Franco Montoro, não o que está aí) nunca falou enquanto esteve na ativa. Derrotado, retirou-se no seu “Sítio do Pica Pau Amarelo” e morreu em 2002. Seu curto necrológio foi publicado abaixo da notícia da morte de “Mocinha”, a inesquecível porta-bandeira da Mangueira.

No ocaso da ditadura e da anarquia militar, havia alguns generais falantes, mas ninguém se lembra, por exemplo, de Ademar Costa Machado e de Jorge de Sá Pinho. Estavam no Alto Comando que barrou as bruxarias da anarquia e garantiu a eleição de Tancredo Neves (pode ser verdadeira a história segundo a qual Tancredo pediu para conversar com Costa Machado, a quem queria colocar no governo. Ele pediu que se encaminhasse a solicitação ao Ministério do Exército). Para dançar um tango e para alimentar a anarquia, não basta um militar, mesmo que seja da reserva. É indispensável uma vivandeira paisana. Durante a campanha eleitoral do ano passado, um general organizou uma reunião para ouvir uma palestra de paisano sobre obras de infraestrutura. Na sessão de perguntas, um oficial quis saber qual dos dois candidatos a presidente teria mais qualificações para tocar o assunto. O comandante da guarnição pediu que a pergunta fosse ignorada e que o oficial saísse da sala.

Ouvir o silêncio do general calado é tarefa impossível, mas uma coisa é certa: ouvir as falas dos generais da reserva em funções civis ou mesmo fora delas, como se falassem pelos quartéis, estimula a anarquia, embaralha os problemas e confunde a audiência. dos movimentos do “Mestre” também conhecido como “Cardeal”.

Nos últimos meses de 1963, teve pelo menos três conversas com o embaixador americano Lincoln Gordon, que via nele um conselheiro e redator de discursos do presidente João Goulart. Serpa testemunhou o ocaso de Jango na madrugada de 1ª de abril de 1964. Em julho, encontrou-se com o general Golbery do Couto e Silva, estrela da ditadura nascente. Anos depois, frequentava o gabinete de um coronel da confiança do general Emílio Médici. Em 1969, ao ser nomeado para a Presidência, o general fez um discurso oferecendo-se para praticar um “jogo da verdade” e restabelecer a democracia. Quem escreveu? Jorge Serpa (mais tarde, Médici defenestrou o coronel para liquidar a influência daquilo que o SNI chamava de “Grupo Serpa”).

O poderoso Jorge Serpa baixou à sepultura no cemitério São João Batista na terça-feira. Havia menos de dez pessoas na cena.

Política

Política é aquela atividade em que uns falam dos outros e todos estão certos em tudo que dizem
Raul Drewnick 

Tragédia provoca guinada ambiental no governo

O Diário Oficial da União publica em sua edição desta terça-feira resolução que representa uma guinada nos planos do governo de acabar com o que Jair Bolsonaro batizou de "indústria das multas", suavizando as normas ambientais para instalação e funcionamento de empreendimentos privados. A resolução recomenda aos órgãos de controle a fiscalização imediata de todas as barragens do país que representam riscos à população. A iniciativa é do conselho interministerial criado por Bolsonaro para reagir ao desastre de Brumadinho (MG).


Na campanha eleitoral, Bolsonaro esgrimira discurso anti-ambientalista. No varejo, defendera o estímulo a setores como mineração e agronegócio. Ambos prosperam testando a capacidade do Estado de conciliar interesses empresariais e respeito ao meio ambiente. No atacado, Bolsonaro defendera a flexibilização das regras sobre o licenciamento ambiental. Queria &quot;tirar o Estado do cangote&quot; dos empreendedores. Sob a coordenação da Casa Civil da Presidência, o grupo criado depois do estouro da barragem de Brumadinho opera não para soltar, mas puxar as rédeas.</p><p>

Além da fiscalização das barragens, a portaria determina que os órgãos de controle exijam das empresas a atualização dos seus planos para assegurar a segurança das barragens. Recomenda também a remoção de instalações erguidas em áreas do empreendimento que submetam trabalhadores e visitantes a riscos em caso de acidente. Essa providência foi inspirada pelo refeitório que a Vale instalou na rota da lama vertida por sua unidade de Brumadinho. Um número ainda não contabilizado de empregados da mineradora foram soterrados enquanto almoçavam.

Uma segunda portaria da comissão interministerial cria um grupo de trabalho incumbido de sugerir mudanças na lei de 2010 que instituiu a Política Nacional de Segurança de Barragens. Há no Congresso meia dúzia de projetos com o mesmo propósito —um no Senado e pelo menos cinco na Câmara. Foram apresentados nas pegadas do desastre de Mariana (MG), em 2015. O lobby das mineradoras impediu que chegassem à pauta de votações. Súbito, o Planalto intessou-se pela matéria.

A substituição do ânimo liberalizante pelo ímpeto intervencionista levou o governo a analisar a sério a hipótese de articular a destituição da diretoria da mineradora Vale. Mais: autoridades como o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, passaram a defender que a Vale e demais mineradoras substituam as barragens de contenção de rejeitos, como a de Brumadinho, por instalações mais modernas e menos sujeitas a desastres.

Antes, o governo parecia observar as transgressões ambientais como se considerasse que não adiantava chorar o leite derramado. Isso significava que não se deveria ficar lamentando eventuais descalabros e procurando culpados. Em vez disso, planejava-se asfixiar a fiscalização e oferecer rotas de fuga aos empreendedores.

Agora, empurrado pela comoção social provocada pelos cadáveres que os telejornais despejam no tapete da sala desde a noite de sexta-feira, o governo age como se considerasse essencial saber quem derramou o leite —ou a lama—, por quê, em cima de quem e em que circunstâncias, para que Brumadinho, uma reincidência de Mariana, não se repita pela terceira vez.

É a lama

O que há em comum, além da cafajestice, entre o PSOL insinuar que Flávio Bolsonaro tem parte na morte de Marielle Franco e o clã Bolsonaro sugerir que Jean Wyllys está envolvido no atentado do Adélio Bispo contra a vida de Bolsonaro? Brumadinho. Brumadinho, Mariana, o levante dos criminosos no Ceará e outros flagrantes de não civilização mantêm o país integrado, fazem-no um só. Esqueçam a cópula incessante entre os primitivismos contrários e complementares, a língua portuguesa maltratada, a bandeira e outros símbolos nacionais, o Carnaval que nos anestesia ou nos incendeia por uma semana, o almoço de domingo na casa da sogra, o saci no bambual e o curupira indo quando está voltando, a malemolência do brasileiro e a ginga da brasileira: o que nos torna e nos mantém brasileiros é o desmoronamento que nos joga na lama que provoca o desmoronamento. Uma sina? Sim, enquanto o poder público, em conluio com elites depravadas por descaso e ganância, não tratar Mariana e Brumadinho com cadeia para os chefões de multinacionais. Mas não temos essa tradição por aqui, tudo se restringindo à comoção e discurseira.

Assim, o Brasil, sai governo-entra governo, desmorona em torno de si e se distrai com os próprios escombros discutindo a poeira que se ergue até que ela assente. Conseguimos a façanha de combinar lama e poeira: com o Brasil ninguém pode! O país desmorona, desmorona até que chega um dia em que continua desmoronando. Nesta terra-lama sem Estado em que nunca faltou governo para nosso desgoverno consumado na ausência de políticas públicas, discutimos se o desmoronamento é de direita ou de esquerda, como se o PT - a manifestação perfeita de negligência com a coisa pública, mas não seu inventor - tivesse reinado 13 anos por ser de esquerda, e não porque ancorado no carisma do jeca, na fraude multiforme, no roubo profundo e nos bons resultados da Economia dos primeiros anos da era petista.

Era da qual, sempre cobertos de poeira, saímos ainda divididos em coxinhas, mortadelas, isentões, bonsominions, esquerdopatas, bolsopatas, direitopatas, imprensa-extrema, armamentistas, desamarmentistas, órfãos do Amoedo, viúvas do Alckmin, para entrarmos na anunciada nova era assim divididos porque seu líder aposta na estratégia infértil - a continuidade beligerante da divisão dos empoeirados em que a poeira se torna um vício por meio do qual evitamos a terrível contemplação do desmoronamento - para enfrentar o inimigo imaginário: o dragão extinto do comunismo. Nem sequer há o cadáver imaginário desse inimigo que nunca nos ameaçou nos últimos 50 anos, há sim o Estadossauro Rex - o fardo de um Estado sequestrado por corporações cujo custo demolidor traduz a única forma da presença do Estado: é o privilegismo-estadismo, a ideologia-mãe nesse rascunho de nação.

Vi uma mulher com a perna quebrada ser resgatada da lama em Brumadinho. Fisicamente distante da lama, sem parentes queridos sumidos na tragédia, na segurança da minha casa, não faço ideia do que aquela mulher está passando, mas me vi na lama com ela de onde foi resgatada e de onde não sai. Não saímos. Estamos todos lá, olhem bem, é um espelho esta nova tragédia antiga, a cotidiana e histórica: nos vemos todos nessa lama do atraso. Coxinhas, mortadelas, bolsomínios, isentões, mídia-comprada-vendida, todos nós em nossas caixinhas voluntárias ou atribuídas, estamos lá. Vi o presidente agir corretamente quanto ao crime em Brumadinho; Bolsonaro agiu com rapidez, montou um gabinete de crise e se fez presente. Mas vi também o tweet em que esse presidente correto desmorona ao postar "mistérios" sobre Adélio Bispo e aquele tenebroso 6 de setembro.

Ele tem direito a questionar, mas que o faça pela via institucional: deixe que de Adélio a Justiça cuida, ou o presidente não confia em seu Ministro da Justiça sob o qual a Polícia Federal trabalha? Levar isso às redes sociais revolve a lama em que escumalhas contrárias disputam, uma dando sentido à outra. Para que senão maquiar o vazio deixado pelo desmoronamento da noção de governo, Estado e sociedade? Bolsonaro não disputa mais nada: venceu, sobreviveu e foi eleito para governar, não para arrastar a instituição da Presidência à latrina das redes sociais onde não faltam bajuladores num patético campeonato de sabujice tão sabotador quanto a crítica hipócrita financiada por quem nos roubou.

E daí? Nada, cada um escolha como se mover na lama, ao presidente cabe jamais perder de vista que 14 milhões de desempregados migraram da era petista à espera não de seus tuítes dirigidos perigosamente pelos dois filhos mais novos bêbados de primitivismo, mas de suas decisões contra o Estadossauro, o confronto real que interromperá o desmoronamento e a lama que têm nos constituído como nação e formado uma visão de mundo. Quem pode travá-lo é o presidente que reagiu a Brumadinho, não o governante caricaturado pelo filho bolsonarismo nas redes sociais.