domingo, 1 de dezembro de 2024

Comprar, descartar, repetir: reflexões sobre o mundo material

Estou lendo, há algumas semanas, o livro Mundo Material: uma história substancial do nosso passado e futuro, de Ed Conway, e ele traz reflexões que raramente fazemos nos dias de hoje. E olha que eu penso bastante. Às vezes, até sinto uma certa dor de cabeça de tanto pensar — o famoso “overthinking” ou, como dizem alguns amigos em Portugal, “magicar”.

Mas, voltando ao livro, além de nos fazer “magicar” sobre o mundo, logo no início, algo me chamou atenção e certamente não vou esquecer: Ed Conway comenta que, para se produzir uma aliança de casamento de ouro vulgar, podem ser necessárias entre 4 e 20 toneladas de rocha. Apesar de pensar muito, nunca tinha refletido sobre isso — sobre a quantidade de ouro necessária para para produzir uma aliança ou brinco, por exemplo.

Em um momento em que se fala muito em transição energética, em digitalização de tudo, raramente nos damos conta de que, para abastecer esse mundo digital que está tão presente em nossas vidas — e que, ao mesmo, parece tão etéreo —, muitas matérias primas são necessárias. Nada no digital existe sem o material.


Assim como Ed Conway, percebo que passei grande parte da vida em outro mundo. Embora seja parte de um “ABC das fábricas” e da produção, diferentemente dos meus pais, grande parte da minha vida se desenrolou no mundo das ideias e dos serviços. Nesse mundo, também etéreo, vendemos serviços. É um mundo confortável: escrevemos textos, damos aulas, transferimos dinheiro, gravamos vídeos, entregamos pizzas aos finais de semana e desenvolvemos aplicativos.

Mas, quando você observa a cadeia produtiva de um semicondutor, por exemplo — que é apenas uma parte, porém fundamental, de praticamente todos os dispositivos eletrônicos que usamos no dia a dia —, percebe que ela envolve processos extremamente complexos e uma ampla gama de materiais. Desde a mineração de metais raros, passando pela fabricação em ambientes controlados, até a distribuição global, tudo depende de recursos materiais e humanos que estão muitas vezes distantes de nossa percepção cotidiana.

Aqui, cabe uma nota pessoal. Há alguns meses, passei a viver em um bairro com poucas opções de lazer. A principal atração por aqui é um grande shopping, que abriga também uma enorme loja de uma marca global de decoração. Eventualmente, vou até lá apenas para dar uma volta e tomar um café — afinal, não há muito mais o que fazer em bairros dormitórios. O curioso é que, mesmo aos domingos pela manhã, quando vou, tentando evitar a multidão, tanto o shopping quanto a loja estão sempre lotados. Sempre. As pessoas parecem estar em uma busca incessante por algo.

Com meu olhar sociologicamente treinado, observo as pessoas em suas rotinas e fico ali algum tempo anotando o que vejo. Às vezes em um caderninho, às vezes no celular. Não é algo que faço por acaso; sou também um produto dessa sociedade digital que tanto estudo. E se a loja e o shopping estão sempre lotados, eu também estou ali, ou seja, há uma ausência de algo em nossas vidas que, ao menos neste bairro, leva todos ao mesmo lugar. Porém, como socióloga, tento me esconder na análise para deixar que o fenômeno se revele.

Vejo gente comprando móveis, decorações, trocando tudo o que têm. Por quê? Talvez porque, de repente, a vida lhes tenha parecido sem graça. Talvez porque mudar as coisas seja um escape.

Quem sabe? E essa febre de consumo — e a necessidade que ela revela — me faz pensar também que é difícil não consumir nada em lojas que seguem o chamado “layout de percurso”. Ou seja, você entra na loja e é guiado por um único caminho que o obriga a passar por todas as seções, aumentando as chances de vermos uma variedade de produtos desfilando na nossa frente e pensarmos em comprar algo.

É uma rotina tão automática que parece hipnótica. Consumimos o tempo todo, mas quase nunca paramos para refletir sobre a origem material do que consumimos. E é isso que o livro Mundo Material nos obriga a fazer. Como diz Conway, se o Instagram ou a rede X desaparecessem, o mundo continuaria. Mas, se o aço ou o gás acabassem, tudo mudaria drasticamente.

Somos absolutamente dependentes desse mundo material. É aqui que entra outra reflexão que tenho pesquisado nos últimos meses: a exploração de lítio no Brasil e em Portugal. Em conversas com geólogos, especialistas de áreas técnicas e ativistas anti-mineração, percebo que, apesar das divergências e de se colocarem em lados opostos, há um ponto em comum: uma crítica ao modelo atual.

Os geólogos sabem, como bem aponta o livro, que é impossível viver hoje em dia sem as matérias-primas. E estão certos: a mineração é uma atividade da qual dependemos. Isso não significa que concordem com as formas de extração e as consequências que essas práticas geram no mundo. Por outro lado, os ativistas, muitas vezes com argumentos ancorados na “solidariedade mecânica moral”, criticam a extração infinita — e com razão, afinal os impactos causados pela expansão dos projetos não são poucos.

Mas, quando olho além desses dois grupos, para o shopping lotado ou para as pessoas consumindo desenfreadamente, percebo que, no meio da cadeia — entre quem extrai e quem consome —, fomos derrotados. Ninguém parece se importar com este grupo, que é a imensa maioria, daqueles que apenas consomem e consomem de maneira irrefletida.

Poucos param para pensar de onde vem a gasolina do carro ou quais são as consequências deste nosso estilo de vida que sequer alcança a todos. Longe de mim transformar este debate em um sermão moralista. Não é isso. Mas precisamos entender o mundo em que vivemos e nos implicar nele. Nós também o construímos. E, se a construção é coletiva — como não poderia deixar de ser —, precisamos olhar para todos os envolvidos, não só para aqueles que concordam conosco.

O livro nos lembra que durante a pandemia, enfrentamos uma crise que deixou marcas profundas. Faltou tudo: máscaras, zaragatoas, reagentes. Escassearam cimento, aço, papel, semicondutores. Trabalhadores, ao longo de uma cadeia global que começa nas minas e termina nas fábricas, evitaram um colapso maior. Mas, ainda assim, vivemos de maneira trágica o impacto da nossa dependência deste mundo material e a necessidade de salvar vidas quando todos precisavam ser atendidos quase que simultaneamente.

Esse mundo material nos é alienado. Sabemos muito pouco sobre ele — ou sobre o destino dos seus resíduos. A maior parte de nós simplesmente consome. Compra, descarta, repete… E é essa reflexão que o livro provoca. Porque, sem dúvida, vivemos em um mundo material. E, de maneira alarmante, parecemos mais conectados digitalmente e cada vez mais desconectados dele.
Elaine Santos, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP

Nenhum comentário:

Postar um comentário