O rapaz olha-a, tentando decifrar o que lhe soará por certo a uma algaraviada. Abre muito os olhos. A rapariga põe-se, então, a explicar, sempre em Inglês (claro), que o saco é para o caso de sobrar comida. Não lhe ocorre que, do lado de lá, possa estar alguém que, ganhando um salário mínimo português, não entenda a língua de Shakespeare. “Ela quer um saco de papel para levar os restos”, digo, por fim. O rapaz abre-me um sorriso. Ela atira-me um “thank you” displicente, enquanto revira os olhos. “O meu Inglês não dá para tanto”, justifica-se-me ele, encolhendo os ombros. “Que saiba sequer falar Inglês já é impressionante”, digo-lhe eu, devolvendo um sorriso de cumplicidade.
A cena passa-se numa pastelaria onde o café é “de especialidade” e onde os ovos mexidos biológicos convivem com os pastéis de nata e os bolos de arroz que ainda resistem. Desapareceram para sempre as torradas cortadas em três, uma fatia sobre a outra, pingando manteiga sobre uma fina folha de guardanapo. E talvez um dia as meias de leite se convertam para sempre em cappuccinos. Se há ameaça de uma grande substituição que nos devia afligir é essa.
Ao final do dia, os pais juntam-se ali, com as crianças saídas da escola e a conversa vai parar quase sempre ao mesmo. “Está impossível viver em Lisboa”. Discutem-se os preços impraticáveis dos T2 e T3. Comenta-se a escola que está a recusar vagas aos pais portugueses do programa de creches pagas pelo Estado e a dar prioridade aos estrangeiros prontos a pagar sem olhar a custos. Há uma amiga que garante que no colégio do bairro já não se fala Português e uma história de uma escola privada que pede o CV a crianças de três anos. “Se os pais são os dois portugueses e não é bilíngue, não vai conseguir entrar”. Há quem pense em ir para o interior viver e quem não imagine deixar Lisboa. Mas ficar é uma história de resistência. Somos os que resistem. Até ver.
“Não há ninguém com uma arma apontada à minha cabeça a dizer-me para sair. Mas, economicamente, não tenho escolha”. A frase é dita por um rapaz de 25 anos que não vive em Lisboa. Está em Tenerife e fala numa reportagem do The Guardian sobre a pressão que o turismo está a pôr sobre a ilha, onde alugar um quarto chegou a custar-lhe 70% do rendimento antes de decidir voltar a viver com os pais.
Em Ibiza, uma notícia do ElDiario.es mostra uma família, com dois filhos pequenos a ser despejada. A mãe e as crianças choram descontroladamente, enquanto são arrastados. Ao fundo, desfocadas, estão mais famílias, empurradas como se uma maré as levasse em direção à lente que lhes capta o desespero. O naufrágio, explica o texto, é provocado pela descoberta de que o proprietário do terreno em que viviam alugava ilegalmente pequenas parcelas de terra por 400 euros, onde viviam em tendas ou caravanas 200 pessoas, que agora terão de ir para a rua. “Somos os trabalhadores que levantam a ilha”, grita-nos o título.
Num mundo de especulação desenfreada, viver torna-se num exercício de equilibrismo. O pedaço de terra que temos debaixo dos pés pode ser difícil de manter se a cobiça dos muito ricos o tiver na mira. Não temos uma arma apontada à cabeça, como diz o rapaz de Tenerife, mas não é difícil sentir que nos expulsam.
Não temos uma arma apontada à cabeça? Há quem a tenha. São os que “levantam as ilhas” onde uns poucos se podem deitar à sombra das bananeiras. Dormem em tendas em terrenos ilegais em Ibiza ou nas camaratas do Martim Moniz. E a esses não os expulsam para longe, a esses mantêm-nos por perto, acorrentados à fome e à ilegalidade que os tornará dóceis à exploração e baratos, como se quer.
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