quinta-feira, 19 de novembro de 2020

A esperança no combate ao ódio está nos livros

Estou lendo “O infinito num junco”, da escritora espanhola Irene Vallejo, uma história do livro e da leitura, já publicado em Portugal, mas, tanto quanto sei, ainda não disponível nas livrarias brasileiras. A páginas tantas, a propósito da insistente prática humana em queimar livros e bibliotecas — desde a destruição da Biblioteca de Alexandria até as fogueiras nazis —, Irene Vallejo cita uma frase do cartunista Andrés Rábago, El Roto: “As civilizações envelhecem, a barbárie renova-se.”

Concordo no que diz respeito às civilizações, mas não estou tão certo quanto à barbárie. A barbárie é sempre a mesma, move-se às cegas pelas ruas, gritando idênticas frases de ódio contra qualquer transformação. A estupidez não evolui. Transmite-se, como uma doença infame, ao longo dos séculos. Só as circunstâncias se renovam.


Uma das várias versões sobre a destruição da Biblioteca de Alexandria implica no crime o então governador provincial do Egito, Amer Ibn Alas. Quando lhe perguntaram o que fazer com tantos livros, Amer teria retorquido: “Se esses livros estiverem de acordo com o Corão, então são redundantes e, portanto, supérfluos. Se não estiverem, são heréticos.” Esta mesma versão assegura que os livros foram utilizados para aquecer os banhos públicos. Terão sido necessários seis meses para queimar todos os papiros.

Irene Vallejo mostra-nos que a história do livro é também uma história contra o livro — ou seja, contra o pensamento. Há as grandes fogueiras e há as pequenas fogueiras. Normalmente, as grandes começam por ser pequenas. Pensemos no Brasil: hoje, fundamentalistas cristãos queimam os livros de Paulo Coelho e de João Paulo Cuenca. Amanhã, estarão ateando fogo à Biblioteca Nacional. Depois de amanhã, se os deixarem, arrastarão até à fogueira os próprios escritores.

Na essência, não há diferença alguma entre a deformidade espiritual de um fundamentalista islâmico e de um fundamentalista cristão.

Uma única nuvem do tipo cumulus — aqueles flocos de algodão, bem definidos, que se destacam no azul do céu — pode pesar tanto quanto uma manada de elefantes. Obviamente, uma dessas nuvens é muito maior do que um elefante. Um cumulonimbus pode alcançar até 15 quilômetros de altura. Junta, a água esmaga. Dispersa, levita.

Acontece o mesmo com o ódio. Isolado, mal se dá por ele. O ódio isolado quase não tem peso. Um único homem tomado pelo ódio suscita mais facilmente troça do que terror. O problema é quando surgem homens que atuam como catalisadores de ódio. Estamos a ver isso acontecer neste preciso momento em países como Moçambique, onde, no último fim de semana, um grupo associado ao Estado Islâmico decapitou 50 camponeses.

Embora num contexto muito diferente, estamos a ver também isso suceder nos EUA, em torno do inacreditável delírio de Donald Trump, ocupado agora em criar uma laboriosa realidade paralela que lhe permita perpetuar-se no poder.

A única esperança no combate ao ódio e à loucura — como se conclui lendo “O infinito num junco” — está nos próprios livros. Como canta o português Manuel Freire, “não há machado que corte / a raiz ao pensamento. // Nada apaga a luz que vive / no amor, no pensamento.”

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