terça-feira, 30 de março de 2021

O enigma pós-pandemia

O futuro imediato está sendo desenhado pela forma como cada país lida com a crise sanitária global, mas ainda é um enigma. Toda a tecnologia utilizada para manter a atividade econômica maior possível num ambiente de distanciamento social já existia; todo o conhecimento científico empregado para a produção de vacinas numa velocidade inédita, também. Apesar da tragédia que se abateu sobre a humanidade, especialmente aqui no Brasil — que se destaca pelo número de infectados, de mortos e de negacionistas, entre os quais o presidente Jair Bolsonaro —, é preciso pensar no pós-pandemia. O novo coronavírus escancarou ainda mais as contradições da globalização, principalmente o agravamento das desigualdades, e colocou em xeque a ideia neoliberal de que o mercado sozinho é mais eficiente do que o Estado para cuidar das pessoas.


Provavelmente, se indagarmos a um jovem brasileiro se tem esperança de um futuro melhor, o risco é termos dele um categórico não. É uma visão completamente diferente do otimismo de seus pais e avós quando tinham a mesma idade, embora a maioria talvez tenha condições de vida até melhores, inclusive nas favelas e periferias. Há, porém, menos perspectivas. Frustrou-se o exagero patriótico do Conde Afonso Celso em Porque me ufano do meu país: “Há em ser brasileiro o gozo de um benefício, uma vantagem, uma superioridade”. Também o progressismo de um Stepan Zweig, ao escrever Brasil, o país do futuro. Recordo-me do relato sarcástico de um amigo sobre a emoção de seu pai no dia da reunificação da Alemanha:

— Chorando de alegria, pai?
— Não, de tristeza por vocês terem nascido aqui.

Desde a Revolução Francesa (1789- 1799), o Ocidente apostou no amanhã melhor do que hoje. O Brasil de Juscelino Kubitschek e da Bossa Nova parecia ser a encarnação dessa utopia. Com sinal trocado, o “milagre econômico” do regime militar também. Hoje, quantos jovens brasileiros de todas as classes sociais sonham com a possibilidade de migrar para outro país? Quantos desejam a dupla nacionalidade como principal herança de seus pais? E aqueles que não têm essa possibilidade e perdem completamente a perspectiva, diante do apagão de oportunidades? Disso decorre uma lógica exacerbada durante a pandemia: é preciso viver agora. Todo prazer adiado será perdido. Mesmo que, nas baladas, o vírus seja como uma bala solitária da roleta russa.

O “amanhã será melhor” era a base comum para todas as utopias, do liberalismo à social-democracia, do comunismo ao fascismo. Seus valores comuns eram: produtividade, crescimento, trabalho e urbanização. Em torno deles, os interesses nacionais e de classe teciam a identidade dos indivíduos. Nossa sociedade é fruto disso aí. O que dava sustentação à nossa identidade se desagrega: as nações, as classes sociais, a família; as relações entre gerações e entre os sexos. A vida privada — família, casa, carro, gastronomia, viagens — é a última trincheira da felicidade. A liberdade tornou-se um fim em si; o trabalho, apenas um desagradável meio de financiamento. E aqueles que não têm nada disso? São “invisíveis”.

O encontro da História com as utopias gerou uma espécie de beco sem saída. Bandeiras da velha esquerda foram capturadas pelo reacionarismo: o intervencionismo, o estatismo, as grandes obras, o nacionalismo. O que antes era um projeto de futuro se tornou anacrônico, foi ultrapassado pelas novas forças produtivas. Diferentemente das anteriores, porém, a crise civilizatória não anuncia nenhuma superação do capitalismo nem uma revolução redentora. Somente mais e mais tecnologia. Esse é o caldo de cultura para tanto negacionismo e a atual distopia. Definir um novo projeto de civilização, mais pluralista e justo, e reconstituir o nosso projeto de nação em bases democráticas não serão uma tarefa fácil, embora as condições materiais para isso existam, em termos de conhecimento e criatividade humana. Assim como um paciente da covid- 19 necessita de oxigênio, nossos jovens precisam de uma nova utopia para prosseguir em busca da felicidade.

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