O auge do delírio autoritário que nos acomete aconteceu neste domingo. Mesmo com a expressa determinação do Ministério da Saúde para evitar aglomerações, especialmente no Rio e em São Paulo, o presidente endossa e estimula a realização de manifestações pelo país de sua base mais fiel. As imagens de seus seguidores mais aguerridos —centenares, diga-se, nada das multidões contra Dilma Rousseff— desfilam nas redes sociais do presidente. Todos dispostos a gritar “mito” e levar, sem qualquer constrangimento, palavras de ordem contra os outros poderes e a democracia.
Já é um escândalo, feito sob medida para esse novo modelo de governo voltado a uma minoria, mas nosso filme B vai muito além. A marcha imparável da boçalidade levou Bolsonaro a participar ele mesmo do protesto, mesmo tendo indicação de ficar em isolamento social após ter contato direto com meia dúzia de pessoas que comprovadamente contraíram coronavírus. Sem máscara, ele foi cumprimentar seguidores em Brasília, tocou neles, agarrou celulares. Tudo é absurdo e, ao mesmo tempo, tão coerente com a miríada de fake news sobre o país e a doença que sua máquina no WhatsApp estimula: o vírus não é de nada, é uma “fantasia”, como o presidente mesmo disse.
Não é difícil enquadrar, mais uma vez, a conduta de Bolsonaro como crime de responsabilidade passível de impeachment. Para começar, por ferir a dignidade, a honra e o decoro do cargo, pondo em risco seus governados. Depois, a depender de como evoluir a situação da pandemia no país, ele pode ser acusado de cometer um crime contra a segurança interna, estimulando a desobediência a medidas determinadas por órgãos técnicos.
A conduta criminosa não acontece só pelo domingo, mas também pela quinta-feira, quando ele, num dos lances mais claramente chavistas deste Governo, usou uma cadeia nacional de rádio e TV, ou seja, dinheiro público, para promover e chamar de legítimos os atos que ele participa. Isso não é “servir-se das autoridades sob sua subordinação imediata para praticar abuso do poder”?
Choca a normalidade com que os demais poderes e a elite do país, inclusive a empresarial e financeira, encara, dia a dia, esse esgarçamento da democracia. Parte desses atores é cúmplice confesso desde a campanha. Se há alguma coisa que não existe aqui é surpresa. No máximo, eles reagem com uma declaração de ultraje via Twitter, uma nota de repúdio enviado a uma coluna de jornal ou um diligente cientista político engravatado para amaciar o ego da Faria Lima: as instituições estão funcionando.
O impeachment é um mecanismo de controle político, isso é sabido, e a leitura dos agentes agora no poder é que não vale a pena esse desgaste: ainda há apoio sólido do PIB a Bolsonaro, e há uma alta taxa de governismo no Congresso, alinhamento de pautas econômicas e anti-ambientais, especialmente. No Parlamento, ninguém quer mexer qualquer ficha, ainda mais com eleição municipal e enquanto a centro-direita não tiver um plano claro a futuro― de mais a mais, Lula está aí, livre, Bolsonaro alicia as polícias, Hamilton Mourão é uma esfinge... Seja como for, tudo se torna realmente impensável em meio a uma crise sem precedentes, sanitária e financeira. Na Europa, pelo menos desde 1945 não se vivia nada assim. Quem vai se meter a mexer nisso?
É neste panorama que Bolsonaro avança, fazendo estragos. Ele tem capacidade de complicar, e muito, uma situação já volátil. Chega a dar uma certa paz interior vendo o ministro da Saúde falar, honrando a tradição do nosso sólido sistema público. Quem conhece a fundo epidemiologia no Brasil garante que Wanderson Oliveira, secretário de Vigilância em Saúde da pasta, é um dos melhores quadros do país. Mas nem isso está assegurado. Fomos surpreendidos, neste sábado, com o Ministério da Saúde voltando atrás na proibição de cruzeiros que a própria pasta havia anunciado na sexta-feira. Segundo a Folha de S. Paulo, sofreram “pressão” para mudar a determinação. Quem vai parar Bolsonaro, quando vamos parar de fingir, em queda livre, que até aqui vai tudo bem?Flávia Marreiro
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