É como a água na torneira, só valorizamos as coisas que damos por adquiridas quando somos privados delas. Hoje tive de ir à rua, com um misto de sensação de liberdade e culpa. Com quatro miúdos em casa, três dos quais teenagers, tenho de abastecer a despensa mais frequentemente do que seria desejável numa quarentena voluntária. Numa rua de comércio local com uma loja chinesa e uma farmácia, espraiavam-se pela rua duas longas filas com pessoas zelosas a cumprir uma distância de segurança. Muitas com máscara, outras sem ela… todas com medo. Com ar nervoso, faziam de soslaio uma consulta visual rápida e tiravam a febre aos vizinhos de fila e aos transeuntes que passavam demasiado perto.
No supermercado de bairro, um senhor com mais de 70 anos, acompanhado da mulher, dizia a uma senhora mais jovem: “Medo?! Eu não apanhei o tifo quando era novo, estive na guerra e nunca apanhei malária, vou agora ter medo desse bicho!”. É pena, pensei eu, devia ter… O medo é o aliado número um no combate a uma pandemia. São, curiosamente, as pessoas mais velhas – os maiores grupos de risco – que mais oiço desprezar a ameaça do coronovírus. Depois de uma vida cheia, andar de braço dado com a ideia da morte tem muitas vantagens, mas esta não é uma delas.
“A minha mãe deu à luz a gémeos, eu e o medo”, disse Thomas Hobbes, o filósofo político. Hobbes nasceu prematuro – reza a história que o parto aconteceu quando a sua mãe ouviu a invasão da Armada Espanhola em Westport, em Maio de 1588. Foi aliás, a partir do conceito de medo que Hobbes construiu a sua doutrina política e o conceito de estado e contrato social. Afinal, é o medo que, desde tempos ancestrais, nos une em sociedade e é o medo de uma qualquer autoridade que nos faz obedecer às regras.
É bom que o medo entre em ação em alturas de grande risco, como esta que vivemos agora. O medo faz parte de ser animal. É um instinto fundamental à sobrevivência, determinante na autopreservação das espécies. É ele que nos protege, mas também é ele que nos paralisa. Que nos faz perder por vezes a noção, que nos impele para decisões irrefletidas e irracionais. Como esgotar o stocks de máscaras, alcóol e desinfetantes das farmácias e assaltar prateleiras de supermercado, comprando embalagens de papel higiénico, atum e massa para 6 meses.
Não nos podemos deixar toldar nem cegar por ele – é preciso tentar manter a serenidade e a cabeça fria, mas temos de o deixar fazer o seu trabalho. Não nos armemos em corajosos numa altura em que a coragem é uma imbecilidade. Não nos armemos em fortes quando ser forte é um egoísmo.
Há 45 anos que Portugal não decreta o Estado de Emergência. Temos 167 658 casos de coronavírus no mundo, um foco na Europa – um descontrolado em Itália e outro gravíssimo aqui ao lado em Espanha –, já morreram pelo menos 6456 pessoas. Portugal tem 245 infetados, a entrar na curva ascendente de voragem epidémica que arrasa com qualquer sistema de saúde.
Nos próximos tempos, que vença o medo.
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