terça-feira, 20 de outubro de 2020

A história omitida

Ver a bela Taormina sem turistas é tristíssimo. As casas aparecem penduradas nas colinas como se prestes a despencar sobre um mar nublado; os hotéis, os bares, os restaurantes e as lojas choram de desgosto com seus donos e empregados de braços cruzados nas portas, esperando que os impossíveis os salvem da ruína. Mas em meio a essa desolação está essa força da natureza, Antonella Ferrara, que tornou possível este milagre: que o festival literário Taobuk se realize por mais um ano, e com Svetlana Aleksievitch, a jornalista bielorrussa que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, como convidada de honra. A cerimônia terá lugar no belíssimo teatro grego (que é, na realidade, romano), como sempre.

Embora adore Taormina, e a Sicília, estou aqui por Svetlana, sobretudo. Li este ano seu livro sobre Chernobyl (Vozes de Tchernóbil) e, acho que pela primeira vez na vida, tive vontade de conhecer sua autora e conversar com ela. A conversa foi frustrante porque ela fala só russo, além do bielorrusso, e andava com uma tradutora búlgara, o que não facilitava as coisas. É uma mulher muito simples, de 72 anos, que estudou e se dedicou ao jornalismo a vida toda e agora está com problemas com o chacal que aterroriza seu país há 26 anos – Alexander Lukashenko –, porque ela é um dos sete líderes do Conselho de Coordenação dirigido pela oposição contra a fraude eleitoral que ele perpetrou recentemente para se eternizar no poder. 

Depois de Taormina, Svetlana se refugiará na Alemanha porque teme ser detida em Minsk, onde reside. Em Vozes de Tchernóbil, e suponho que em suas outras reportagens publicadas em revistas e jornais, e depois compiladas em livros, ela dialoga com centenas de homens e mulheres sobre o fato central, e depois transforma aquelas conversas em monólogos de pessoas isoladas ou de grupo humanos, que vertem uma grande diversidade de opiniões e exibem um riquíssimo mostruário sobre o ocorrido – no caso de Chernobyl, a explosão de um dos quatro reatores da central nuclear –, que permitem ao leitor formar uma opinião a respeito ou, como neste caso, flutuar em um mar de dúvidas. 


O que se passou realmente naquela pequena cidade ucraniana muito perto da fronteira bielorrussa e russa, em 26 de abril de 1986, à uma hora e vinte e três minutos da madrugada, quando, por causa da explosão, ficaram destruídos o quarto bloco de energia e o edifício que o continha naquela central nuclear? 

Ficamos sabendo do ocorrido de um modo fragmentado: pela esposa, recém-casada, de um bombeiro, que é chamado para apagar o incêndio e que parte para lá do jeito que estava, de calça e camiseta regata. E pelos gatos apreensivos que subitamente deixam de comer os milhares de ratos mortos que aparecem nas ruas. A esposa do bombeiro voltará a encontrar o marido em um hospital de Moscou, dias mais tarde, agonizando, com o corpo coberto de chagas putrefatas, e os gatos de Chernobyl perecerão também, contaminados pelas radiações ou abatidos pelos soldadinhos encarregados de não deixar vivo na região nenhum animal que pudesse contaminar as pessoas. 

Assim vão aparecendo camponeses, professores, dirigentes políticos, adolescentes, idosos, médicos, historiadores, militares, pastores e esses estranhos ofícios surgidos do nada, os saqueadores, as dosimetristas, os liquidadores, e os avozinhos daquela menina aterrorizada que se enforcou. Eram os tempos de Gorbachov e da perestroika, e ele queria salvar o comunismo e a URSS, abrindo o diálogo e com lampejos de liberdade por todas as partes. Mas já era tarde demais, o comunismo e a URSS estavam mortos e enterrados, e as aparições do novo líder na televisão, acalmando os ânimos, garantindo que a normalidade havia sido restabelecida em Chernobyl, não mereciam crédito por parte de ninguém, principalmente daqueles que, na vastíssima zona afetada, continuavam se contaminando, adoecendo, morrendo, e as mulheres dando à luz crianças carecas, sem dedos, sem orelhas e sem olhos. As igrejas se enchiam de gente, e os comissários caiam em prantos com os corpos atacados pelos “rem” e os “roentgen”, que finalmente tinham aprendido a diferenciar, inutilmente. 

Poucas vezes li um livro tão impactante, que tão claramente apresentasse o porvir que nos espera se continuarmos tão suicidas e estúpidos a encher o mundo de centrais nucleares que poderiam nos fazer desaparecer, como as vítimas de Chernobyl, em uma carnificina mundial, da qual ninguém escaparia, salvo, talvez, algumas espécies de bactéria metade ser vivo, metade pedra. A mulher que o escreveu, Svetlana Aleksievitch, está diante de mim e não perdeu a razão escrevendo essas páginas explosivas. 

Come devagar, com certo apetite, afastando os véus que cobrem metade do seu rosto, e que, segundo as línguas viperinas, se devem às radiações que sofreu enquanto colhia aqueles materiais sobre Chernobyl. Não é verdade, claro. Tem o rosto limpo e diáfano. Passando pelo russo e o inglês, que ela mal arranha, lhe digo que seu livro me deixou desperto por várias noites, e ela me pergunta sobre os incas. Existe muita literatura sobre sua mitologia? Digo-lhe que sim, mas, como eles não conheciam a escrita, foram os cronistas espanhóis que recolheram os primeiros relatos sobre os deuses e milagres do Incario. Svetlana não conhece a América Latina e gostaria de ir lá, algum dia. 

Não lhe pergunto, claro, o que não se diz em seu livro e tampouco na esplêndida série que foi feita sobre ele, e que ninguém sabe, e que, claro, ninguém nunca saberá: o que exatamente aconteceu em Chernobyl naquela noite de espanto? Quem teve a culpa? Foi um erro humano? Foi uma máquina mal concebida? Por que explodiu aquilo que não deveria explodir de modo algum? Eram as perguntas que todos se faziam, a começar por Gorbachov, e que tanto no livro como no filme permanecem subjacentes a essa pesquisa extraordinária e quase perfeita da qual resultaram as Vozes de Tchernóbil. Perguntas que não têm resposta por uma razão óbvia, mas inexprimível. Ninguém sabe, ou melhor dizendo, todos sabem, mas não se pode nem se deve dizer. Por quê? Por uma razão muito simples: porque todos somos culpados ao mesmo tempo, por ação ou por inação.

Desde o funcionário de última categoria que falsificava suas informações para se dar valor e justificar seu trabalho até o diretor da central, que fazia o mesmo, e pelas mesmas razões que o último de seus empregadinhos, para fazer saber a seus chefes que ali, sim, as coisas eram bem conduzidas, porque havia alguém que sabia fazer seu trabalho etcétera. Todos alteravam a verdade um pouquinho, ou muito, porque não podiam fazer outra coisa sem se enfraquecer e se tornarem vulneráveis às sanções e à silenciosa luta contra todos, que era a vida dentro do sistema. Quem, o que falhou? Todos e ninguém, ninguém falhou, simplesmente aconteceu assim, e não é possível nem conveniente perder tempo tentando averiguar isso. 

O melhor – e nisso está a genialidade do livro e da série – é calar e tentar fazer frente às consequências do ocorrido, mesmo que seja suicidando-se, como aquele professor que explode os próprios miolos, depois de tirar os sapatos, como todas as noites. Despeço-me de Svetlana Aleksievitch dizendo-lhe que a admiro muito, que poucos escritores fizeram pela literatura deste tempo o que ela fez escrevendo um livro que acreditava ser apenas jornalismo.

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