segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

O que a ciência tem a dizer sobre o Apocalipse

O fim do mundo sempre é pessoal, por vezes social e só uma vez literal. No entanto, a vivência irrefutável de que tudo nasce para decair costuma se trasladar para a ordem cósmica, e a ideia do Apocalipse é onipresente nas sociedades humanas. O universo costuma se encontrar entre uma criação onde tudo era bom e um final, muitas vezes próximo, que chegará porque, com nossa inépcia e maldade, corrompemos os dons que nos foram entregues. Dom Quixote recorda, ante um grupo de pastores, a visão da Grécia clássica quando fala de alguns séculos felizes “aos quais os antigos puseram o nome de dourados”, uma utopia comunista na qual “os que nela viviam ignoravam essas duas palavras de seu e meu”. Agora, após várias degradações, nós nos encontramos na idade do ferro, e a situação vai piorar. Algo similar contam os hindus, que dizem que vivemos no período Kali Yuga, uma era de disputas e hipocrisia que também é a última antes que algum tipo de cataclismo purifique o planeta.

A mesma tendência dos humanos de realizar analogias que confundem o ciclo da vida e do mundo pode fazer desprezar o medo de um desastre de dimensões planetárias. Se tantos povos ancestrais acreditaram que o final estava perto e erraram estrepitosamente, é fácil descartar sem rodeios os arautos do Apocalipse. Isso é o que deveria ser feito, por exemplo, com os pesquisadores do Boletim de Cientistas Atômicos, que na semana passada adiantaram seu metafórico relógio do fim do mundo e o deixaram a apenas 100 segundos do trágico final. Mas as situações nem sempre são comparáveis, e nos últimos séculos a humanidade incrementou sua capacidade de causar desastres planetários —e também de prevê-los.


O relógio do fim do mundo foi criado, fundamentalmente, para advertir sobre os riscos de aniquilação da civilização humana se a Guerra Fria, na qual durante décadas os Estados Unidos enfrentaram a União Soviética, se transformasse num conflito atômico. Hoje, porém, avaliam-se muito mais riscos, como uma inteligência artificial e uma biotecnologia descontroladas. E, segundo escreveu o físico Lawrence Krauss, membro do conselho de cientistas do relógio do fim do mundo, “essa multiplicação das ameaças elevou a sensação de alarme”. “O relógio do juízo final está hoje mais perto da meia-noite que durante a crise dos mísseis de Cuba (na época, ficou a sete minutos do final, contra os 100 segundos atuais), quando o mundo esteve realmente à beira do holocausto nuclear”, acrescentou, num artigo publicado no The Wall Street Journal em que duvidava da validez do instrumento.

Nem todas as ameaças são iguais, e nem os cataclismos têm as mesmas dimensões. Como o próprio Krauss dizia, a mudança climática associada à atividade industrial, uma das supostas grandes ameaças para a continuidade da civilização, terá provavelmente efeitos devastadores, mas eles serão sentidos no longo prazo e não serão iguais no mundo todo. María José Sanz, diretora do Centro Basco para a Mudança Climática, afirma que o aumento de mais de dois graus na temperatura média do planeta “pode provocar danos muito importantes para as sociedades humanas, que terão dificuldade de se adaptar a uma frequência de fenômenos climáticos extremos nunca vistos”. Mas isso não significa que a Terra se transformará num planeta hostil à vida, como Marte, nem que uma espécie como a humana, que já conta com mais de oito bilhões de indivíduos e uma capacidade tecnológica impressionante, terá sua continuidade ameaçada.

Sanz aponta, no entanto, alguns perigos difíceis de prever. “Além do aumento progressivo da temperatura, o sistema climático tem alguns pontos de inflexão”, explica. A quantidade de gelo dos polos, o sistema de monções tropicais e a corrente norte-sul, que faz com que Nova York seja muito mais fria que Madri apesar de estarem na mesma latitude, e que tem a ver com a quantidade de água doce que desemboca nos oceanos —que, por sua vez, está relacionada com o gelo dos polos—, são mecanismos que regulam o clima planetário e que podem mudar de repente. “Se esses pontos forem ultrapassados, pode haver mudanças muito abruptas, e isso é o que não se pode prever. Sabemos que estão aí, que estamos acelerando o trajeto rumo a esses pontos de inflexão, mas não sabemos o que vai acontecer se eles forem ultrapassados. Nem as consequências disso”, completa.

Como deixa claro o sucesso do gênero zumbi, as doenças infecciosas, como o coronavírus de Wuhan, são também uma fonte de terror apocalíptico. E, nesse caso, o medo não vem sustentado apenas por possíveis padecimentos futuros, mas por milhões de mortos. Durante grande parte da história, quando não se sabia o que provocava as infecções, alguns micróbios podiam dizimar a população que atingiam. O historiador Eric Hobsbawm estimou que apenas 6% ou 7% dos marinheiros ingleses mortos entre 1793 e 1815, durante as guerras contra Napoleão, faleceram nas mãos dos franceses. “Oitenta por cento morreram por causa de doenças e acidentes”, escreveu. A sujeira, os serviços médicos e a falta de higiene eram inimigos muito mais temíveis que os canhões franceses.

Calcula-se que a peste negra, provocada por uma bactéria, acabou com um terço da população da Europa. A gripe espanhola matava até 20% dos infectados e aniquilou 6% da população mundial. Para muitos dos habitantes da América pré-colombiana, embora não os exterminassem completamente, os vírus provocavam uma espécie de fim do mundo. “Na colonização da América, o principal soldado foram os vírus”, afirma Víctor Briones, professor de saúde animal da Faculdade de Veterinária da Universidade Complutense de Madri.

“Que uma infecção coloque em perigo a continuidade de uma espécie é muito difícil, embora isso quase tenha acontecido com doenças às vezes banais, como a sarna na camurça-dos-pirineus [uma espécie de caprino]. E a peste bovina provocou tanta mortandade na Europa que levou à fundação das faculdades de veterinária”, prossegue Briones. Em humanos, a gripe espanhola de 1918 “despovoou as zonas rurais”, e a praga de Justiniano do século VII pôde ter influenciado o final do Império Romano. “Reduziu a população de tal maneira que não havia braços para cultivar a terra nem gente para defender a fronteira. A ordem social se alterou”, diz Briones. E conclui: embora ele veja a possibilidade de que uma doença provoque uma grande mortandade, considera muito difícil a extinção da humanidade por essa via.

Ainda que não haja extinção, algumas doenças que não chamam a atenção do público nos países desenvolvidos matam centenas de milhares de pessoas. Somente o HIV, a tuberculose e a malária acabam com a vida de cerca de 2,5 milhões de pessoas por ano, a maioria nos países pobres. “Em cidades como Jacarta, Dar es Salaam [Tanzânia] e Cairo, onde a maior parte da população não mora em edifícios de vidro e aço, mas de chapa e latão, onde há uma imigração em massa, uma gestão deficiente dos resíduos e pouco acesso aos recursos sanitários, há doenças que provocam uma grande mortandade”, afirma Briones. A hecatombe ali não é um medo difuso no futuro, mas a vida cotidiana.

A gripe espanhola, uma das maiores pandemias conhecidas, acabou com apenas cerca de 6% da população mundial

Durante as guerras napoleônicas, 80% dos marinheiros ingleses mortos faleceram por doenças e acidentes, não pelas armas inimigas.

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