sexta-feira, 6 de novembro de 2020

América: A Bela e o Monstro

Escrevo no dia mais loooooooongo sem saber como irá acabar ou, melhor, como terminará a corrida às urnas, de certeza uma prolongada incógnita. Cresci ouvindo falar nesse outro infindável dia, de um tempo quando nem ainda concebido eu era. Tive dele conhecimento via o cinema. Sob fogo intenso, os americanos assaltando a costa da Normandia, impelidos pelo ideal de resgatar a Europa das garras de Hitler.

Obviamente, a causa da luta de hoje não se presta a comparações. Não estamos em guerra nem propriamente diante de uma reencarnação de Hitler. Há, é certo, milícias armadas junto de algumas urnas, todavia nada é semelhante àquele cenário ultradantesco do desembarque de 6 de junho de 1944.
E, no entanto, os pontos de contacto e de contraste não deixam de ser flagrantes.



O que aconteceu à América? Que é feito dos ideais que produziram a luta pelos direitos civis, os hippies, a cruzada contra a guerra do Vietname? Que construíram uma aparentemente sólida e indestrutível democracia, institucionalizando os valores da modernidade assumidos pelos Founding Fathers – Thomas Jefferson sendo apenas um deles –, postos em prática aqui ainda primeiro do que em França, sua terra de berço?

Quem conhece a História norte-americana sabe bem que ela se desenrolou sempre em profunda tensão entre as forças biológicas da natureza humana, que impulsionaram os europeus a espalhar-se pelas Américas, e o vigor dos ideais que procuravam conter o lado animal dos humanos, capazes dos piores crimes.

Eles – os ideais e os seres humanos – não mudaram. As mesmas forças continuam em presença. E nem sequer podemos pensar em simplistas divisórias entre direitas e esquerdas, mas entre biologia e ética. Cada grupo constrói o seu ideário, entretecendo-o de verdades que se ajustam às suas crenças e aos seus desejos mais profundos, e entrega-se à luta por eles.

A minha geração deixou-se embalar na ingénua esperança no “homem novo”, mas ele é uma utopia e, como todas as utopias, fundamental para nos fazer imaginar e sonhar, à Platão, com algo que nos faça sair desta caverna em que vivemos. Thomas Hobbes usava uma metáfora melhor, a da selva. E preveniu-nos, alertando-nos para a edificação de um Estado forte – o Leviatão –, porque os ideais, por mais belos que sejam, não bastam. Os Estados Unidos da América (e a Europa Ocidental mais os países que se entusiasmaram pelo projeto da modernidade) acreditaram que a criação de instituições democráticas sólidas, independentemente das pessoas que as geriam, seria suficiente para suster os embates das forças que, segundo a lógica da biologia, continuariam a digladiar-se. E a ideia resultou até à explosão das redes sociais, que puseram um microfone diante de cada cidadão, retirando o filtro que as instituições democráticas haviam estabelecido, a fim de debelarem os exageros que a biologia desbragada pode gerar. Nietzsche nunca terá decerto imaginado que advogava a retirada dos tapumes segurando o toiro.

O espaço que me é concedido não me permite explicitar este arrazoado, apenas me deixa umas dezenas de caracteres para advertir: sempre olhei para a América do Norte como um cadinho onde a Humanidade vem experimentando o futuro. Dantes, as experiências demoravam a chegar ao mundo todo. Agora, são instantâneas. O que significa: hoje aqui, amanhã em qualquer parte do globo.

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