domingo, 8 de dezembro de 2024

Do que nos livramos

Longe de poder ser comparada às divertidas obras do cinema italiano na década de 1950 protagonizadas por Alberto Sordi ou à comédia em que o diretor Woody Allen desmoralizou os golpes de Estado numa republiqueta da América Latina na década de 1970, a tentativa de Jair Bolsonaro e seu bando de gente torpe de rasgar a Constituição, planejar o assassinato de seu sucessor, do vice-presidente eleito e de um ministro do Supremo Tribunal Federal e de substituir a democracia por uma ditadura militar despertou o País para o fato de que suas instituições políticas podem não ser tão sólidas quanto parecem.

A tentativa de golpe não se limitou a revelar crises de insubordinação no Exército, Marinha e Aeronáutica, a explicitar o risco de corrosão do princípio da autoridade nos tribunais superiores e a apontar os perigos inerentes às substituições das liberdades públicas e das garantias fundamentais pela irracionalidade, pela violência e pela impunidade. O mais grave é que o obscuro projeto de poder desse grupo golpista já circulava publicamente desde 2022, sob a forma de um documento elaborado por militares e áulicos vinculados ao Instituto General Villas Bôas. Tendo comandado o Exército entre fevereiro 2015 e janeiro de 2019, esse foi o militar que ameaçou investir contra o Supremo Tribunal Federal caso a corte não mandasse o ex-presidente Lula para a prisão, em abril de 2018.


Essa pressão não se limitou apenas a interferir radicalmente nas eleições daquele ano, retirando da eleição presidencial um dos candidatos mais competitivos à época. Ela também estimulou o pessoal desse Instituto, quatro anos mais tarde, a acreditar que teriam condições de permanecer no poder até 2035 – com Bolsonaro, por quatro anos, e algum outro militar nos dois mandatos presidenciais seguintes. Apresentando-se como um conjunto de “cenários prospectivos” formulados com base numa “revitalização dos valores morais, éticos e de civismo”, no “fortalecimento do sentimento de pátria como instrumento de coesão social”, no “combate à revolução cultural” e no propósito de “resgatar a identidade nacional”, o documento do Instituto General Villas Bôas – assinado por militares, juristas, embaixadores, educadores e doutrinadores – é um primor de delírios, de inconsequências e de absurdos. “Não se trata de uma vã tentativa de adivinhar o futuro, mas, sim, de um exercício baseado em métodos consagrados para alargar mapas mentais e identificar ameaças e oportunidades”, diz o texto em sua apresentação.

Como ele é longo, seleciono aqui algumas poucas passagens que ilustram bem a mentalidade golpista desse pessoal. Uma delas é a identificação do “globalismo como um movimento internacionalista cujo objetivo é massificar a humanidade, para dominá-la; para dirigir e controlar as relações internacionais e as dos cidadãos entre si”. No centro do globalismo estaria uma “Elite Financeira Mundial” – um “ator não estatal constituído por megainvestidores, por bancos transnacionais e por megacapitalistas”, alinhado com organismos internacionais e com ONGs e empenhado em utilizar pautas ambientalistas a reboque de seus interesses, enfraquecendo assim “a Nação em sua busca de seu desenvolvimento”.

Entre outros pecados, o globalismo e o movimento internacionalista teriam patrocinado “campanhas internacionais caluniosas para comprometer a imagem do Brasil como não cumpridor de critérios de preservação ambiental”. O globalismo e o movimento internacionalista também teriam deflagrado no Brasil “o ativismo judicial político-partidário”, levando “parte do Poder Judiciário, do Ministério Público e das Defensorias Públicas a atuarem sob um prisma exclusivamente ideológico, reinterpretando e agredindo o arcabouço legal vigente”.

No campo da educação, o documento diz que uma parcela das crianças e adolescentes brasileiros está sujeita a “uma doutrinação facciosa efetuada por professores militantes de correntes utópicas e radicais” e que as universidades públicas se transformaram “em centros de luta ideológica e de doutrinação político-partidária”. Enfatiza a “valorização dos vultos históricos do Brasil como forma de resgate da identidade nacional”, o aperfeiçoamento da “formação ética, moral e cívica dos docentes” e os esforços necessários para se “coibir a ideologização nociva do ensino que “divide a Nação”. E afirma que a percepção de liberdade no Brasil está sendo “confundida com liberalidade e falta de cidadania e espírito cívico” e com uma “liberdade de expressão sem as correlatas responsabilidades”.

Também assevera que o sistema jurídico brasileiro está submisso a “lideranças corrompidas”, razão pela qual ele “não garante leis iguais para todos”. Defende uma formação “conservadora evolucionista” para as novas gerações, ao mesmo tempo em que desqualifica os movimentos sociais e afirma que certos órgãos públicos estariam tomando “decisões ideologizadas”. Em outras passagens, o texto defende a tutela da sociedade por um estamento militar que é visto como uma “autoridade moderadora acima das instituições democráticas”.

Com uma visão de mundo da altura de um rodapé, os autores do documento se esqueceram do que a história aponta: quando um Estado dirigido com base em tanto civismo, patriotismo e formação moral define quais são seus inimigos, na prática ele tende a se converter num Estado totalitário. Não era isso que se podia depreender da leitura do AI-5, quando foi baixado em 13 de dezembro de 1968? Quando um regime político como o proposto pelo documento do Instituto General Villas Bôas almeja que todos os cidadãos cantem pelos hinos militares, o que pode ocorrer com quem quiser liberdade? Não era justamente este um dos lemas da ditadura militar de 1964 – “Brasil: ame-o ou o deixe”?

São esses os valores sombrios e as políticas sinistras a que estaríamos submetidos caso a tentativa de golpe de Bolsonaro e de seu grupo tivesse dado certo. É dessas ideias tão ultrapassadas quão perigosas para a democracia – como se depreende desse documento – que nos livramos. Se as nossas instituições funcionaram a contento, se o golpe falhou em decorrência das circunstâncias e de contingências e se o Estado brasileiro está preparado para deter novas conspirações autocráticas – estas são outras questões que ainda precisam ser discutidas com profundidade.

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