segunda-feira, 18 de maio de 2015

Um trem para Bangladânia



O Brasil queria ligar suas duas maiores cidades com um trem-bala. Uma obra de bilhões de dólares para ser inaugurada até a Copa do Mundo. Um empresário italiano acusado de fraude e um político brasileiro se apresentaram como solução, encenando uma peça de mistérios até hoje indecifrados.

Um dos homens apontou o dedo para a ferrovia como se indicasse a estrada para o futuro. A ligação entre Milão e Turim ainda estava em obras quando Moreno Gori — italiano parcialmente careca, de queixo retangular e boca retilínea — garantia que sua empresa, a Itaplan, tinha experiência de mais de 25 anos no setor de transporte ferroviário, especialmente de alta velocidade. A ferrovia diante dele seria apenas uma parte daquele extenso currículo empresarial.

Com o braço estendido, o diretor da Italplan explica ao homem a seu lado que seria possível construir uma ferrovia como aquela no Brasil, ligando São Paulo e Rio de Janeiro. José Francisco das Neves é conhecido como Juquinha. Em todas as fotos, com todos os políticos e autoridades, cercado por todos os papagaios de pirata da vida pública brasileira, Juquinha surge como o mais baixinho de todos. Ele é o presidente da estatal Valec, empresa subordinada ao Ministérios dos Transportes encarregada de “coordenar, controlar, fiscalizar e administrar” a construção de ferrovias no Brasil, entre elas a que seria a joia do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva: o trem de alta velocidade entre Rio de Janeiro e São Paulo.

Gori e Juquinha haviam jantado juntos em Milão na noite anterior, 26 de outubro de 2004, e agora admiravam os dormentes da ferrovia Milão-Turim — que seria inaugurada pelo premier Silvio Berlusconi cinco anos depois. No Brasil, décadas de sonhos e projetos inacabados chegariam ao fim pelas mãos daqueles dois homens e graças à experiente Italplan. O país finalmente teria seu trem-bala.

O vexame húngaro

O trem de alta velocidade é um sonho antigo dos governos brasileiros. Sobre estradas de terra e asfalto, os 500 quilômetros entre as duas maiores cidades do país são perigosos e engarrafados. De avião, o voo de 40 minutos é caro. Por um breve período, no entanto, o sonho se materializou. Folhetos distribuídos aos passageiros que partiram às 17 horas do dia 11 de março de 1974 da Estação da Luz, em São Paulo, garantiam que os vagões da composição húngara da empresa Ganz-Mávag chegariam à Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em apenas quatro horas e meia. Alta velocidade sobre trilhos, para os padrões da época.

Aqueles trens haviam sido negociados pelo governo brasileiro em troca de uma de suas moedas correntes desde o Império: café. A linha Rio-São Paulo recebeu seis composições, embarcadas da Europa depois de serem fabricadas na Hungria. A tecnologia foi celebrada na imprensa — desde o desembarque dos vagões no porto do Rio de Janeiro, em 1973, até as viagens inaugurais no ano seguinte, aproveitando a velha estrada de ferro com trechos inaugurados por Dom Pedro 2º. Anúncios publicitários convidavam os cidadãos a deixar de lado os momentos de tensão ao volante em troca de “minutos de relax” a bordo dos Ganz-Mávag. Os carros eram, de fato, seguros e confortáveis, mas se mostraram uma bomba mecânica em poucas viagens. O sistema de tração era fraco para as subidas íngremes, sobretudo entre Japeri e Barra do Piraí, uma serra inclemente aos trens projetados para deslizar nas planícies magiares. As rodas patinavam, os motores esquentavam, e a composição precisava parar no meio do caminho. Apesar de ser fabricado na Hungria, o trem-bala tinha motor alemão, controles suíços e freios italianos — problemas multinacionais na hora de repor peças em um mundo ainda não globalizado. Quatro anos após a inauguração, deixou de circular. Em 1978, os trens foram deslocados para linhas menos exigentes e, anos depois, viraram sucata.

O governo decidiu buscar um substituto. Ainda em 1978, o então ministro Dyrceu Nogueira anunciou uma viagem ao Japão para conhecer o primeiro trem-bala do mundo. O veículo japonês havia sido inaugurado em 1964, mesmo ano em que os militares assumiam o poder no Brasil. Nogueira era comandante do 1º Batalhão Ferroviário e tinha predileção pelo tema. A visita, que selaria um pacto feito pelo presidente Ernesto Geisel em viagem ao Oriente dois anos antes, foi duramente atacada em um discurso do deputado Pacheco Chaves (MDB): ele citava a penúria dos cofres públicos em contraste à megalomania do projeto. “O presidente Geisel não deve permitir. Isso apenas redundaria em novas e graves dificuldades para o futuro governo, cuja herança já é assustadora!”, gritou Chaves da tribuna da Câmara dos Deputados na sessão do dia 23 de agosto.

Chaves foi ignorado, e o trem-bala ganhou impulso. O projeto foi levado à imprensa dezenas de vezes, apresentado como a porta de entrada do Brasil na modernidade. Reportagens de página inteira mostravam a capacidade de carga dos vagões, a velocidade dos motores, o conforto e a sofisticação das cabines. Anúncios de agências de viagem nos pés-de-página vendiam pacotes turísticos para brasileiros que quisessem conhecer o Japão e andar no trem oriental.

O esforço do ministro Dyrceu Nogueira foi em vão. Nos anos seguintes, japoneses, espanhois e franceses tentariam negociar com o Brasil a instalação da linha rápida, oferecendo tecnologia e crédito, mas as condições financeiras do país eram assustadoras aos estrangeiros.

Morte prematura de presidente, inflação descontrolada, dívida externa impagável, impeachment e secura financeira seriam problemas mais prementes ao Brasil da segunda metade do século 20 do que ligar suas duas principais cidades por trilhos. “Bangladânia, meio Bangladesh meio Albânia, é a Terra Não Prometida para a qual alguns constituintes estão querendo arrastar 130 milhões de brasileiros”, escreveu Mário Henrique Simonsen, banqueiro e ex-ministro de governos militares, no artigo O trem-bala para Bangladânia, publicado em 1987 no jornal O Globo. Simonsen criticava a sanha dos políticos em querer resolver contingências do capitalismo na base do canetaço, o que poderia levar o país para uma terra sombria, a Bangladânia, e batizou o artigo fazendo alegoria a mais uma tentativa do governo em construir o trem — projeto abandonado no mesmo ano.

Poucos anos depois, em 1990, no entanto, uma das oportunidades mais concretas para o projeto aportou na Baía de Guanabara a bordo do Le Pharaon, um iate de 60 metros capaz de acomodar 12 convidados e 11 tripulantes. Na ponte de comando estava o bilionário saudita Ghaith Pharaon, educado no Ocidente com dinheiro do reino, acionista de um banco de investimentos e sócio da família Bush em uma empresa de geração de energia.

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