quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

O Espírito dos Natais Futuros

Há um traço comum que os portugueses têm dificuldade em ultrapassar, fruto de séculos de História e quatro décadas em ditadura. Somos adeptos de um Estado paternalista, que nos indica o caminho, conduz e orienta. Reclamamos baixinho, mas baixamos a cabeça e até nos confortamos com certos argumentos de autoridade que nos desresponsabilizam na hora de decidir. Habituados a ter de obedecer e não a pensar, esperamos que nos digam o que podemos e não podemos fazer, porque deixados à nossa consideração, tendemos a ficar à toa com tanta liberdade.



A discussão em torno do que vamos poder ou não fazer no Natal e no Ano Novo lembra-me esta nossa incapacidade crónica para nos autogovernarmos. Não devia competir ao Governo decidir como podemos passar as nossas festas de família, e a que riscos devemos, cada um de nós, estar sujeitos. Não é preciso ser médico ou epidemiologista para perceber que a situação está ainda muito complexa, basta olhar para os gráficos e relatórios diários. Não é só em Portugal, é em toda a Europa. A Holanda vai entrar em confinamento total, na Alemanha serão impostas novas restrições apertadas, no Reino Unido a situação é “extremamente preocupante”, em Espanha e Itália deverão ser impostas mais medidas. Até na Suécia, resistente crónica a planos de contingência, o ressurgimento da doença exigiu a adoção de medidas excecionais e fez soar os alarmes da necessidade de um pedido de auxílio aos países vizinhos.

Ao contrário do verão, em que os novos casos diários e o número de mortos desceram muitíssimo, o risco de contaminação agora é elevado. As novas medidas impostas pelo Governo resultaram, mas não baixaram de forma drástica os contágios nem os mortos. Sou adulta e capaz de entender que situações excecionais exigem soluções excecionais. Não preciso que um primeiro-ministro me diga que tenho de adotar todos os cuidados possíveis nesta quadra festiva, reduzindo ao máximo o número de pessoas na festa (outrora com mais de 40 pessoas), mantendo as máscaras sempre colocadas, os desinfetantes sempre à mão e as salas arejadas. E escolho fazê-lo porque sim, porque sigo a Ciência e os médicos, e não porque me mandam.

Esta semana, soube de uma história próxima que me tirou o sono. Uma amiga de uma amiga apanhou Covid, infetou a mãe num jantar de família, e a progenitora, já idosa, veio a falecer. É uma situação que pode acontecer a qualquer um, por mais cuidadoso e bem intencionado que seja. O pior pesadelo da Covid é a ideia de contaminar familiares e amigos e estes passarem muito mal ou até morrerem. Viver com esse peso e gerir essa dor é algo que não consigo sequer imaginar. Isso acontecer num Natal é arruinar todas as festas daí em diante. Mesmo sem receber a visita do Espírito dos Natais Futuros, como no conto do Charles Dickens, este é um risco que ninguém minimamente informado e no seu perfeito juízo deveria estar disponível para correr. Com ou sem medidas impostas pelo Governo.
Mafalda Anjos

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