sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

2024, vai e não voltes

Olho para 2024 e vejo uma galeria de horrores.

A guerra da Ucrânia continuou e até se intensificou, com soldados norte-coreanos servindo de carne para canhão de Putin e ataques ucranianos dentro das fronteiras russas. O conflito Israel e Hamas tornou-se um conflito também com o Hezbollah no Líbano e, em baixa intensidade (pelo menos oficialmente), com o Irã. Cerca de cem reféns continuam aprisionados e maltratados em Gaza, incluindo um bebé de um ano, uma criança e a mãe de ambos. Gaza foi praticamente terraplanada e as mortes e as consequências para a população, também incluindo crianças, e mesmo descontando as contas aldrabadas do Hamas e das ONG amigas, são de gelar o coração.

Um agressor sexual foi eleito (pela segunda vez) para a Casa Branca. A Síria depôs um ditador sanguinário, expôs involuntariamente a fraqueza russa e iraniana, mas dificilmente terá um futuro político risonho à espreita.

No meio deste vendaval internacional, dois acontecimentos mais específicos, mais micro, mostram um contínuo preocupante entre a amoralidade individual, a comunitária e a transnacional. O primeiro foi de Lily Phillips. (Não sei como a descrever. Influencer sexual? Estrela de pornografia na plataforma Only Fans? ‘Trabalhadora do sexo’, eufemismo para mulher que se prostitui?) Esta jovem adulta, com centenas de milhares de seguidores no Only Fans, promoveu um evento onde teve sexo pago com 100 homens num dia. E agora prepara-se para o ainda mais apoteótico acontecimento de ter sexo com 1000 homens num dia.


Para celebrar tal feito, fez-se o documentário (traduzo) ‘Dormi com 100 homens num dia”. Neste, Lily Phillips termina a chorar contando a sua experiência. Foi mais ‘intenso’ do que estava à espera, diz e começa a chorar. ‘Não é para as fracas’ e ‘’não sei se recomendo’ – outras expressões que nos ofereceu. Também assevera que ‘foi duro’ e que estava ‘robótica’. Não quero desta vez entrar na discussão da prostituição ser um ‘trabalho sexual’ ou uma exploração de mulheres pobres (que não é o caso de Lily Phillips).

Uma coisa é certa: Lily Phillips, com ‘robótica’, ‘foi duro’ e ‘não sei se recomendo’, não estava a descrever nenhuma experiência sexual agradável. Na verdade, descreve algo parecido com o que contam as mulheres que se prostituem por não terem outra alternativa. Vários homens não pararam a interação sexual depois dos poucos minutos alocados a cada um. Phillips só se recorda de seis a dez homens dos cem com quem teve sexo. Se não houvesse vídeos, não teria registo no cérebro do que aconteceu. Ora isto é a típica memória fragmentada (ou apagada) dos eventos traumáticos.

Donde, o apoteótico feito de Lily Phillips não tem nada que ver com libertação e a liberdade sexual das mulheres, que pretende tirar a sexualidade feminina só dos casamentos e da procriação, tornar menos espartilhada a relação das mulheres com o seu corpo e o sexo mais frequente e prazenteiro. Não há neste feito de Phillips, e menos ainda no documentário, nada de empoderador ou libertador para as mulheres.

E, se devemos torcer o nariz aos homens que acedem participar em sexo nestes termos, também não podemos isentar Phillips de críticas pelos seus atos, de resto publicitados. Imaginemos o escândalo (justificado) se um misógino do calibre de Andrew Tate tivesse sexo com cem mulheres num dia e fizesse documentário a seguir. Lily Phillips pode ter questões de saúde mental. Porém saltam igualmente perguntas sobre a necessidade patológica de fama neste mundo digital e sobre ideias cada vez mais absurdas e arrepiantes para sobressair (porque o que é moderado é banal). De qualquer maneira, é perturbador.

O segundo acontecimento: o assassínio de Brian Thompson CEO da seguradora de saúde americana United Healthcare, aparentemente por Luigi Mangione, jovem de Baltimore proveniente de uma família endinheirada. Muita gente nas redes sociais acorreu a celebrar este assassínio e o seu provável autor. É certo: as redes sociais potenciam a polarização e a radicalização. Contudo, a apologia de violência gráfica e mortal é todo um outro nível – e revela como a esquerda vai por caminhos de extremismo tal qual a direita.

Mas pior que as reações populares a este assassínio foram as reações de políticos. Elizabeth Warren, senadora democrata, comentou ‘people can only be pushed so far’. Ou seja, as pessoas só podem ser atropeladas até certo ponto. Além desse ponto a reação é sempre ao som de tambores. Warren tem a sua razão. Sobretudo – como em temas de saúde – se se trata de assuntos de dignidade humana e de respeito (ou desrespeito) básico por outro ser humano. Os torcionários talentosos, digamos assim, têm essa noção: os abusos têm de ficar ali numa área q.b., ou geram reação incontrolável.

Bernie Sanders veio defender o comentário de Warren. Ambos sancionaram tacitamente, portanto, um assassínio ideológico. A partir de agora deve-se bater palmas quando um executivo de uma empresa poderosa for assassinado.

A solidariedade assassina de Warren e Sanders é tanto mais indecorosa quanto a distópica política de saúde americana, assente em seguros de saúde e empresas com pouca regulação quanto ao que têm de cobrir e ao que podem recusar, é responsabilidade dos políticos – tanto republicanos como democratas –, e inclusive dos eleitores (de ambos os partidos) preferindo pagar impostos mais baixos que aumentá-los para acomodar gastos públicos significativos com saúde, não de um executivo – mesmo se de seguradora abutre. Os Estados Unidos têm uma mortalidade materna mais alta que qualquer país desenvolvido. Caso único no mundo fora guerras, a esperança média de vida à nascença tem decrescido. Tudo resultado dos deficientes cuidados de saúde. Diria eu que são problemas de magnitude para governantes e legisladores resolverem; empresas – e pouco reguladas – não conseguem (nem têm de).

Aplaudir assassinatos e assassinos. Celebrar a prostituição de mulheres. Confesso-me desalinhada com o estado de espírito do mundo nos finais de 2024. Boa notícia neste fim de ano só mesmo a do aumento da leitura entre os mais jovens. Ler ficção é um instrumento perfeito para desenvolver empatia. Talvez evitasse Luigi Mangione e os seus adoradores. Já a falta de amor próprio de Lily Phillips vai além do poder da leitura.
Maria João Marques

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